pub

Fotografia: Rik Vannevel
Publicado a: 27/02/2024

Uma longa conversa em torno do capítulo que findou a trilogia Empowerment of a Generation.

Nástio Mosquito sobre 0: “Este álbum foi uma viagem de reconhecimentos”

Fotografia: Rik Vannevel
Publicado a: 27/02/2024

Nástio Mosquito confia nos processos e no que eles fazem emergir. Nas pessoas e no campo energético que elas transportam. Nas relações e no que elas criam em conjunto. Num mundo povoado pela confusão, preferiu nutrir-se com a busca de uma ideia de clareza. Num tempo contaminado pela ansiedade, arriscou mover-se por uma ideia de reconhecimento e reinvenção. O resultado é 0, um álbum ousado, corajoso e radicalmente livre, que encerra a trilogia Empowerment of a Generation, iniciada há uma década com Se Eu Fosse Angolano (2014) e a que Gatuno Eimigrante & Pai de Família (2016) deu continuidade.

Explorando uma noção de polifonia avessa a fronteiras estéticas e estilísticas, 0 sintetiza e expande o envolvimento artístico e emocional de Nástio Mosquito num processo de escuta e criação desafiante e que o obrigou a estudar, a aprender e a percorrer o mundo à procura de cúmplices para este seu gesto. Desde logo Ndu e Anders Filipsen, âncoras desta construção onde, surpreendentemente, a palavra perde protagonismo para uma sonoplastia meticulosamente limada entre os sons e os silêncios, os coros e a respiração, a inquietude e a transcendência, o reconhecimento e a descoberta. Tudo isso, diz-nos, não em busca de imagens e respostas prontas, mas de uma democratização da imaginação.

Ancorado nessa procura, o músico desenvolve uma atitude de fuga à mesmidade das perguntas de sempre, provocando-nos para uma ideia de reconhecimento que não procura no mundo, e nas identidades que este estrutura, uma qualquer forma de legitimidade existencial. A contrapelo, o som que emerge nestes seis gestos dirige-se antes ao organismo, ao ponto de partida, ao que é verdadeiramente fundacional no nosso viver. Até porque, como aqui lembra, nós não somos uma narrativa, mas um fenómeno orgânico dos cosmos. Talvez, então, aí resida também uma ideia de luz e de esperança, improvável nos dias que correm, mas inevitável num discurso inscrito nas pulsões vitais pelas quais almejamos viver, ou pelas quais estamos disponíveis para morrer. Afinal, quão inescapável é tentarmos viver uma vida que seja nossa? De tudo isto e muito mais falámos, nesta longa entrevista que partiu de 0, inquiriu o caminho percorrido, e ainda deixou tempo para falar de um futuro repleto de possibilidades e caminhos em aberto.



Anunciaste 0 como o final de uma trilogia a que chamaste Empowerment of a Generation. Que empoderamento foi este que percorreu estes 10 anos e que caminho trilhou esta geração?

O título é uma referência a algo que eu desejo para mim e para a minha geração. Esse empoderamento, de uma forma concreta, são as propostas, as sugestões e as perspetivas que esses três álbuns têm e trazem à superfície. Era a noção de que, ao expor as pessoas a essas narrativas, tanto sónicas como textuais, o resultado dessa exposição seria um empoderamento. A minha preocupação desde o início, apesar de não ter começado a fazer o primeiro álbum a pensar numa trilogia… 

A ideia de trilogia não foi premeditada? 

Não. Tornou-se evidente, ela revelou-se a mim. O que consegui discernir foi que, desde esse primeiro álbum [Se Eu Fosse Angolano, 2014], eu estava extremamente preocupado com alguma clareza. Parece-me que uma geração empoderada é uma geração que tem uma vibração aguda e precisa sobre uma certa qualidade de clareza em torno daquilo que está a experienciar. 

No teu discurso tens dado muita relevo à palavra clareza. É uma palavra importante para ti?

Sim, porque parece-me que a confusão é aquilo que mais nos aflige neste início do século XXI. Inclusive a confusão que é quando tu dizes que é com uma noção de clareza e esclarecimento com que te queres mover. Passas uma energia meio arrogante, não é? As pessoas ouvem clareza e muitas vezes o que percebem é certeza. Mas clareza e certeza não são a mesma coisa. Certeza é uma ilusão, mesmo de um ponto de vista matemático, por isso falamos de probabilidade. Clareza é uma escolha operacional. Para mim ficou claro que o que eu tinha para oferecer no espaço público, nessas três obras, é a ideia de que a ambiguidade não é inevitável. Tu podes-te mover com um grande grau de clareza e eu creio que é isso que me tem motivado. Esse é o empoderamento. Para ir de encontro à tua pergunta, o empoderamento é saber o que é poder e isso é extremamente importante. Por exemplo, a frase “Que se foda a polícia, a polícia não tem poder!” é uma frase um bocado estúpida. Uma frase esclarecida poderá ser: “Que se foda a polícia, ela não tem poder sobre mim!”. São duas coisas diferentes. Essa declaração revela posicionamento, revela consequências, boas ou más, mas é uma frase esclarecida. Eu acho que isto é poder, esse esclarecimento é poder. 

E quando falas em geração, é uma palavra que remete para um conjunto de pessoas nascidas num período histórico mais ou menos comum, ou não remete tanto para uma questão etária, mas mais para um momento partilhado no mundo? 

Talvez seja mais a segunda opção. Talvez tenha a ver com esse momento partilhado deste tempo e deste espaço em que se absorve aquilo que está a ser produzido e posto no espaço público. Acho que é mais isso. 

Quando ouvi o disco, fiquei surpreendido com um aspeto relativamente estruturante e que é a ausência, ou pelo menos o pouco protagonismo, que é dado à palavra, ao texto e à poesia. Ao contrário dos álbuns anteriores, este é um disco muito mais centrado em torno de sons, silêncios, ritmos, texturas e narrativas sonoras. Porquê é que no final desta trilogia foi importante regressar ao som e à sua centralidade? 

Eu, na minha vista artística, tenho tentado exercitar alguma relação com o reconhecimento, em vez de ter uma relação com a tomada de escolhas. Se tu estiveres atento, tens que decidir muito pouco. Ou então, deixa-me colocar de outra forma, a decisão está numa prateleira diferente. Se tu estás a querer decidir, parece-me que estás num exercício de racionalidade: consideras os ingredientes e variantes que tens à mão e tomas uma decisão. Mas se estás a reconhecer, a única decisão que tu tens que tomar é a de obedecer ao que tu reconheces. Será que tu decides gostar de brócolos? Ou gostas ou não! Claro que, como seres humanos, podemos ser condicionados numa série de coisas, mas numa primeira relação, ou tu gostas ou não gostas, ou obedeces a esse reconhecimento ou não. Eu te confesso que havia colaboradores, pessoas que quero assumir que me amam, que estavam preocupadas: “Brother, sem palavras? Não faças isso”. Eu acho que [diziam isso], por um lado, por uma questão identitária em relação àquilo que eu represento, e por outro lado, acho que também por alguma insegurança, se eu teria as costeletas suficientes para fazer um álbum onde a palavra não está no centro, que é aquilo que consigo fazer com alguma competência. Isso desafiou-me, mas foi tudo o processo. O processo revelou que, no que eu queria comunicar, a palavra ia atrapalhar mais do que ajudar. E depois eu estava-me a divertir tanto a aprender, a desafiar-me enquanto criador de melodias, ritmos e narrativas sónicas… Eu estava a cuiar muito o processo de aprendizagem, o desafio, a confiança que vários profissionais estavam a ter na minha produção e nessa montagem. Esse atrevimento passou por uma série de diferentes reconhecimentos sobre que momento era este na trilogia. No fim do Gatuno Emigrante & Pai de Família (2016) ficou evidente que estava alguma coisa a acontecer, estava aqui algum padrão a rolar. Eu tinha uma noção de como é que queria acabar, só não tinha uma noção do formato. Então o processo revelou que a palavra não iria ajudar. Acho que no tema que fecha o álbum eu quase que me justifico um pouco e dou uma razão construída, uma razão racionalizada. Mas na verdade é o processo. 

No final dessa música dizes “We are not a narrative, we are a phenomenon, the processes of things”. Houve também prazer nesse processo de que falas? Imagino que o processo do álbum tenha sido uma descoberta de outros lados teus que se calhar já estavam lá, mas só se descobrem na prática. 

Sim mano, alguns estavam lá, mas alguns não estavam. Alguns exigiram que eu tivesse capacidade de aprender. Por isso é que demorei três anos para colocar isso na rua. Tive que aprender mais no aspeto da produção e esse foi o atrevimento desse álbum. O facto do título ser 0 não pretende ser uma referência do “ano zero”, não é sobre uma coisa que acontece no exterior de nós. É um 0 interior. O álbum não tenta criar uma relação com a construção sociopolítica, isso o primeiro capítulo fez e o segundo capítulo reconhece a dinâmica entre esses dois campos. Este álbum está no cerne do “eu organismo”, e não do “eu organismo” que se encontra numa arena sociopolítica. Este é o 0 que interpreta tudo isso, que atribui significado e atribui autoridade. Entendes o que eu quero dizer? É importante porque é para isso que quero que a obra convide. O telejornal, as notícias, tudo isso está no primeiro capítulo. No segundo capítulo também há um reconhecimento de que aquilo que te acontece é real, que as cicatrizes que te acontecem são reais. Este terceiro capítulo tenta dizer: “E agora?! Onde é que está a minha capacidade de lidar com as questões sociopolíticas? De onde vem o meu centro? Qual é o meu ponto de partida de relacionamento com a minha realidade contextual? Repete lá o que é eu disse naquela gravação que acabaste de ler agora, we are not what?

“We are not a narrative. We are a phenomenon”. 

Do you know what I mean? We are not a narrative! Se tu colocas este 0 numa narrativa temporal, filosófica, teológica, seja o que for, fodeu brother. We are not a narrative! Nós somos um fenómeno orgânico deste cosmos, quer tu vás para um lado teológico, quer tu vás para um lado metafísico ou científico.

Estava a pensar que o título e o disco também me remeteram para uma ideia de circularidade. Depois da viagem inicial, depois de compreendermos o que é que de fora nos afeta, vamos tentar dar a volta e perceber o que é que está na base. Quando damos a volta, o que é que encontramos? 

Infelizmente, a grande dificuldade é que nem devia ser assim. Nós devíamos começar aqui, por isso é que é 0. Mas na realidade é super difícil começar aqui. Se começo aqui, eu sou um poeta, sou artista, sou desconectado das merdas… Sem saber, meio que eu tive que começar por um exercício de legitimidade, o que é uma perda de tempo tremenda. Mas para que as pessoas possam confiar naquilo que te move, se calhar têm que se aperceber de onde é que tu estás a vir, o que é motiva as tuas intenções. Eu não estou a negar a nossa existência como um ser sociopolítico, mas estou a dizer que nós não somos isso. Isso faz parte de como nós operamos viver, mas nós não somos isso. Eu e a tribo Pirahã, na Amazônia, temos alguma coisa comum. Eles não têm essas sociedades que nós temos, mas nós somos a mesma coisa. Eu que falo português contigo, que é uma língua cursiva, muitos povos na Terra não falam desta maneira, e eles são a mesma coisa que nós. É deep se queres viver uma vida que seja tua, não é?

Lá está outra vez o empoderamento. Empoderamento também é viveres uma vida que seja tua? 

Convém brother. É fixe nós termos as nossas batalhas sociopolíticas, socioculturais, sociomorais, filosóficas, com a consciência de que é um jogo que estamos a jogar. Não sou eu, é uma coisa diferente. Esse é o jogo da sociedade, é o jogo da civilização, é o jogo, se quiseres, dessa ilusão que é a democracia neste início do século XXI. Eu tenho que ter a noção de que há uma diferenciação entre essas duas coisas. É extremamente importante, não é um detalhe. As pessoas estão confusas, elas confundem-se. Como é que eu te vou dizer? Os portugueses se confundem com Portugal e isso é problemático bro! Isso é muito problemático. 

Aliás, sinto que o teu trabalho também é uma espécie de recusa de um certo nacionalismo estético, o contrariar da ideia de que nós, artisticamente, ou como seres humanos, somos as nações que fazemos parte ou que herdámos. No teu trabalho sempre senti uma resposta oposta: “Não, não somos!”. É claro que as nações também nos influenciam, mas enquanto seres humanos, nós não somos essas estruturas inventadas ou que inventaram para nós. Não temos que ser isso.

Completamente mano. Eu acho que isso é uma proposta difícil de se fazer. É uma proposta que se agarra a convicções interiores, ou elas estão lá ou elas não estão. Obviamente que elas podem ser nutridas, mas é um combate complicado. A cultura atual, a cultura económica, a cultura política, a cultura financeira, ocupam um espaço tremendo não só nas vidas que nós vivemos, mas infelizmente também na nossa imaginação. Que loucura, bro

Do ponto de vista das narrativas sónicas que foste construindo, como é que foste descobrindo os caminhos que querias percorrer? Este é um álbum que estará entre o jazz, o afrobeat, o dub — há aqui muitas linguagens. Há ritmos mais expansivos, outros mais calmos, sinto que há propósitos de festa até, mas também momentos de maior introspeção. Ao longo do processo, como é que foste percorrendo estes trilhos?

Meu irmão, qualquer coisa que eu te vá dizer é uma mentira construída para ser cool [risos]. Eu prestei atenção às coisas. Foi uma viagem de reconhecimentos. Eu gravo muitas coisas no meu telemóvel, gravo vozes e melodias, e fui recolhendo material. Iniciei o meu processo, como sempre faço, a trocar uma vibração com o Ndu. Ele é o meu pêndulo. Normalmente ele pega naquilo que eu estou a fazer e arruma um bocado as coisas. Depois eu conheço bué de gente no mundo e sabia que este gesto tinha quer ser plural. Então quis ir a Cabo Verde, à Dinamarca, a Angola, à Holanda, mas tudo isso teve a ver com as pessoas. Trabalhei com várias pessoas, de Portugal inclusive. Eu sou um grande fã das Patrícias, que são umas damas fodidas! Elas são background singers de vários projetos but they fucking kill! Tudo o que elas fazem eleva as obras! Eu queria trabalhar com elas. Gravámos no estúdio do Ivo [Costa], porque o Ivo é do caralho! Gravámos lá o contrabaixo do Hugo Antunes. Fui ter com o Anders Filipsen porque eu tinha sido artista da semana em Copenhaga e toquei com Anders. Ficámos em contato, trocámos várias vibrações e eu disse-lhe: “Tenho que ir ter contigo!”. Com ele nós fizemos os arranjos de cordas e de sopros. O Ndu e o Anders foram âncoras para mim. O processo foram as pessoas com quem queria trabalhar e de onde as coisas vinham. E falas de afrobeat? Claro, o Cabrita ama afrobeat! Como não?

João Cabrita, o saxofonista? Tem um discaço novo incrível! 

Estás a perceber? O disco do Cabrita é uma foda, brother! Enquanto músico, uma das principais características do Cabrita é o grau de generosidade. O Cabrita tocou o que eu queria que ele tocasse e eu disse: “Brother, dás-me dois takes e vai para onde tu quiseres”. Eu acho que pelo menos 65% de tudo o que o Cabrita fez está no álbum. Foram as pessoas que determinaram onde as coisas iam. É óbvio que depois de ter tudo isso, eu fui o ditador de serviço [risos].

[Risos] Deve ser difícil, não? Como é que se faz isso de estar com tantas pessoas, em tantos momentos e contextos, com tanta a liberdade, e depois recolher esse material todo, trabalhá-lo e limá-lo para um objeto?

É aquilo que eu estou a dizer, brother. Eu sei que eu pareço um otário, mas por favor confia em mim: só seria difícil se eu estivesse a querer tomar escolhas. 

É o reconhecimento. 

Ya. Se eu tivesse que estar a escolher, era complicado. Eu tenho que reconhecer qual é o caminho, o que é que nós estamos a contar, e fica inevitável o que está fora e o que está dentro. Eu não sei se é isso que tu sentes no álbum, mas o meu ego quer acreditar que é também essa fluidez que se sente nos temas. Nunca tinha explorado a polifonia desta forma. O processo foi esse reconhecer com quem eu queria trabalhar, e se tu estás a tocar aquilo que tu estás a tocar, é exatamente isso que a música precisa. Eu não fui atrás daquele som de bateria… Eu fui atrás das pessoas, do campo energético, daquilo que era possível ser criado. E depois no processo de polimento da coisa, tive que me enraizar sobre o que é que eu estava a fazer, porque é que eu estava a fazer e o que é que este gesto estava a invocar. 

A imagem também é algo muito importante na tua linguagem artística, mas este álbum não tem uma componente de vídeo. Porque é que decidiste não ter vídeos associados aos temas e ao álbum? 

Não sei se não quis, se ainda não aconteceu, ou se não é preciso. Quando eu estava a desenvolver o produto, não houve nada visual. Eu comecei a trabalhar com a cultura visual em 2000, fiz muito isso. Mas comecei a reparar que hoje em dia as imagens não são grandes aliadas da democratização da imaginação. Até agora não se revelou nada que seja um agregador de valor a estes sons, o que não quer dizer que não vá ter em alguma altura. Foi por isso é que desenvolvi sessões de escuta do álbum e que têm a ver com a ideia que essas imagens são tuas, as imagens pertencem a cada ouvinte. Isto não vende bem, mas é a verdade e eu quero mesmo receber abraços por estar a cuidar da imaginação das pessoas [risos]. As pessoas se calhar acham-me arrogante, mas eu quero mesmo…

Talvez não. É como quando alguém escreve um livro. É suposto leres o livro e imaginares o mundo que o livro te está a convocar. Normalmente quando vais ver um filme sobre um livro, as imagens são sempre mais pobres do que o que a tua imaginação construiu.

Perfeito, tem essa legitimidade, é essa dica. Eu fico contente que nesta gravação, quando tu ouvires, foste tu que disseste, não fui eu, no sentido em que eu não sou escritor de livros, estás a perceber? Anyway ainda não fez sentido uma cena visual e agrada-me de novo esse termo que desenvolvi, por causa de um projeto que fiz para crianças, que é a democratização da nossa imaginação.

Pegando num comentário do Vítor Valenciano, sentes que este álbum é apenas o fecho de um ciclo ou pode ser também o um início de um novo ciclo que se está a formar no teu trabalho musical? 

Não faço ideia brother. Há alguns anos eu fazia a piada de que vai chegar uma altura em que eu só vou fazer aquilo que realmente quero fazer e que são discos de dub [risos]. O Vítor lá sabe porque escreveu isso, eu agradeço sempre que ele dá uma vibração, mas confesso que não sei. O que eu sinto é que tenho um trabalho cumprido. Não sinto que, de forma pública, precise de fazer mais nada na música. Pode parecer um statement arrogante, mas acho que é importante navegarmos na maionese do nosso próprio ser. Eu acho que não preciso fazer mais nada na música em Portugal, ou em Angola. Não preciso, mas quero, quero fazer outras coisas. Não sei o que é que isso quer dizer, o que é que se inicia aqui, e não vou dar ao Vítor, nem a vocês by the way, a satisfação de um sentido qualquer de continuidade ou de responsabilidade. Enquanto pessoa pública, enquanto cidadão que acredita que aquilo que eu faço com o trabalho é também um exercício de cidadania, está feito.



Voltando agora um pouco atrás, ao período que separa o primeiro disco deste, sentes que 10 anos depois já estamos menos sintonizados com uma certa obsessão pela identidade e mais sintonizados com uma ideia de motivação para onde queremos ir? 

[Risos] Claro que não brother. Eu perdi essa luta. Há dez anos eu iniciei uma candidatura que se chamava “Que se foda as identidades” e perdi essa corrida. Se naquela altura tinha a ver com uma identidade territorial — “este país”, “aquele país”, “esta bandeira”, “aquela bandeira” — hoje é territorial, é étnica, é de género. As pessoas estão apaixonadíssimas com as suas identidades e buscam nas suas identidades uma legitimidade existencial que, para ser generoso, é extremamente perigosa.

Mas não sentes que essa resposta não vem também do facto dos Estados e os poderes estarem a usar as identidades também como um instrumento de ataque? Ou seja, num momento em que tens mais violência sobre mulheres, comunidades LGBT, pessoas racializadas, etc., não é expectável que a identidade surja também como um instrumento de resistência perante essa violência? 

Talvez seja. Eu questiono-te só na questão de dizeres que “há mais violência”. Mais violência a comparar com “quando”? A comparar com “onde”? A comparar com “o quê”? Não sei bem do que estás a falar. Por outro lado, respondendo à tua pergunta, sim, é um padrão que já vimos várias vezes, não há nada de espetacular a acontecer aqui. A dica mais preocupante é que nós sabemos, com estes ingredientes, onde é que essas coisas vão parar. A Europa é um caso de esquizofrenia fodido, porque nós, na Europa, estamos obcecados por história, mas estamos cegos para entender esses padrões sociopolíticos, socioteológicos, sociofilosóficos e no que é que essa merda vai dar. Parece-me normal, mas não me parece ser algo muito profundo aquilo que os Estados estão a fazer, aquilo que os cidadãos estão a fazer. Por outro lado, podes-me dizer que nunca se falou tanto de meditação, que não é estranho tu falares com alguém desta separação entre o “eu organismo” e o “eu sociopolítico”. As pessoas sabem do que é que tu estás a falar, há uma literacia maior nessas questões. Eu não quero que isto que estou a dizer soe a pessimismo, temos de estar claros no sentido em que o mundo está melhor hoje do que há dez anos, no boubts. Mas não quer dizer que esteja bom e as duas coisas podem coexistir.

Insistindo um pouco na questão, parece que há sinais um pouco contraditórios. Por um lado, a questão das identidades está muito presente, mas por outro lado, parece que nunca vivemos tanto um individualismo mercantil, quase narcísico. 

Eu creio que essas coisas estão a acontecer, mas eu não vejo um grande problema nas contradições do viver. Nós somos isso. Se nos confrontarmos com o “eu organismo”, ele é uma contradição em si. Há uma limitação física, há uma potencialidade de expansão ilimitada e as duas coisas coexistem em nós. A contradição não é uma coisa problemática. Eu acho que há movimento, não dá para negar, as coisas não estão estagnadas, estamos melhores de um ponto de vista estrutural, apesar dos riscos da extrema-direita que estavas a mencionar em off na nossa conversa… 

Ou da crise climática…

Nunca houve tanta consciência de que isso é um risco em tempo real. Mas ao mesmo tempo eles estão a ganhar. Nós estamos com essa consciência, estamos a falar sobre isso, não queremos que os números do Chega aumentem, mas eles estão a aumentar. As duas coisas estão a rolar. É importante irmos entendendo que relação nós queremos ter com essas coisas. 

Estava a pensar aqui no contexto português em que durante os últimos anos se tem celebrado muito que vozes negras ocupem espaços do centro cultural da cidade onde antes não chegavam. Mas isso acontece na mesma sociedade em que matam o Bruno Candé, onde continua a violência policial, portanto as duas dinâmicas não são mutuamente exclusivas, estão a acontecer em simultâneo. 

Estão a acontecer em simultâneo e vão acontecer em simultâneo. As circunstâncias em Portugal vão-se alterar quando nós entendermos duas ou três coisas. Primeiro, que incompetência é modelo de gestão. Se nós olharmos para Portugal, para a sua história, para a sua trajetória, a incompetência é modo de gestão e é útil. É útil receber atestado de incompetência quando a tua intencionalidade pode não ser de acordo com a lei, ou pode não ser de acordo com a moral regente, e por aí fora. Dois, vamos ter conversas diferentes se mudarmos a conversa do tal problema das “minorias”. Eu atrevo-me a dizer “que se fodam as minorias!”, vamos ver o problema da maioria! Não é problemático a maioria estar a ser ensinada na escola com uma história que sabemos que é mentirosa? A maioria dos portugueses está tranquila com porem aquela merda nos livros? As minorias sabem quem são, bro. Eu disse isso com o Se Eu Fosse Angolano. Enquanto angolano, eu sei quem eu sou. Os portugueses é que estão a ser enganados. Para podermos falar de responsabilidade, temos de nos relacionar com alguns factos. Como é que é possível que a maioria dos portugueses esteja tranquila e à vontade com os seus filhos a serem mentidos, manipulados e ordenadamente direcionados para mediocridade e ignorância? Espero que me percebas que eu não estou a dizer “que se fodam as minorias”, eu estou a dizer, de um ponto de vista sociopolítico, e estrategicamente: “What the fuck are we doing?” Há bué pessoal que está na dica das minorias porque quer poder, não porque quer mudança. E não me entendas mal, é preciso que alguém lute pelo poder, porque o poder é real e os mecanismos de poder são reais. Agora, é importante estar esclarecido. Eu não estou a entender como é que intelectuais portugueses dos jornais continuam a falar das minorias, quando é à maioria a quem está a ser espetado o dedo no cu! E depois surpreendem-se porque é que o “camarada Ventura” consegue trabalhar. Brother, temos que ficar sérios! Ele está a explorar os mecanismos de gestão do próprio país. E dependendo do quão esses mecanismos se querem preservar, acontece a coisa ridícula que estamos a ver.

Entretanto também dizes que o teu disco aponta para a esperança. Hoje em dia, nós olhamos para as imagens do mundo e o que observamos é a guerra, o desastre climático, a violência. Como é que, neste contexto, podemos insistir com uma ideia de esperança, de otimismo, de caminho para a frente? E como é que podemos falar de esperança sem reproduzirmos uma atitude de ficarmos à espera que as coisas mudem? 

Eu não me relaciono com as coisas dessa forma. Se nós considerarmos o facto de que inevitavelmente vamos morrer, como não viver com um sentido de esperança? Esperança em relação a quê? Às experiências que nós queremos ter enquanto coisas que vivem. Eu não te consigo responder em relação às coisas que acontecem no mundo, só consigo responder em relação às coisas que acontecem em mim e à relação que eu tenho com essas coisas. A minha esperança está em querer fazer mais rir do que querer fazer chorar. A minha esperança está aí. Eu quero que a minha mulher se venha mais vezes do que eu quero que ela fique insatisfeita. A minha esperança está nesse sentimento. Eu quero que as coisas corram bem mais do que elas corram mal. A minha esperança está nesse querer. A minha esperança tem que estar intrinsecamente ligada àquilo que eu estou disponível para viver “a favor de”, ou se quiseres de uma forma mais dramática, àquilo pelo qual eu estou disponível para morrer “a favor de”. A minha esperança está na dedicação em que eu me dou a isso. Tem que haver um caminho direto para o meu compromisso com o meu viver. Seja esse compromisso no campo sociopolítico, seja nesta minha descoberta interior. Há pessoal que se muda para o Tibete, para a Índia, vai para os montes do Alentejo e desliga. Estabelece a esperança no sol que nasce, na árvore que brota. Há pessoal que arranca para Genebra para protestar e a esperança é aquilo que os move. O que causa alguns problemas é que nós somos constantemente convidados a fingir que nos preocupamos com merdas que não nos preocupam. E não quer dizer que aquilo que não nos preocupa não seja importante, só quer dizer que não nos preocupa. Isto causa uma certa ansiedade, uma certa neurose, e como não é real, não cria esperança em nós. Quem se preocupa com o ambiente for real tem esperança. Mete-se num barco da Greenpeace e they go do shits! Tem pessoal que está extremamente esperançoso e está muito preocupado e dedicado às abelhas, porque entende o que isso quer dizer. Há sempre alguma coisa que nos chama nesse sentido no mundo. Algumas coisas têm a ver com os nossos desafios sociopolíticos, outras coisas não. Eu acho que esperança não é uma coisa que vem de fora para dentro.

Queria ainda perguntar-te sobre projetos coletivos em que tens estado envolvido. Um deles é o projeto Marimba. Em que fase está o projeto, como é que tem sido o desenvolvimento e que resultados se antecipam? 

Eu sou um embaixador do projeto que tem como missão fazer algumas ligações de pessoas e estruturas e com isso participar na expansão de quem tem acesso a certos recursos dentro da indústria musical de uma forma plural. Em que fase é que se está? Na fase da labuta, família, na fase de tentar comunicar essas coisas, e dentro das próprias estruturas, ver como é que projetos têm oportunidade de agregar valor. Está-se numa fase de aprendizagem, de ver como desenvolver certas relações, por exemplo, com a Rádio Nacional de Angola, para trabalhar e reabilitar algum do arquivo. Passa um bocado por duas vertentes: relações com instituições e com as pessoas e oportunidades de aprendizagem. Têm-se feito coisas incríveis com Timor-Leste ou com a Guiné-Bissau, que tem um embaixador pesadão que é o Patche di Rima. O Patche tem uma energia incrível, move as coisas, e tem uma gana tremenda. Têm-se feito também coisas interessantes em Angola. Eu tive conversas com oito pessoas criativas da indústria musical angolana, oito mulheres, isso foi feito em conjunto entre o meu projeto e o projeto Marimba. Está-se a aprofundar essas relações, a alicerçar pessoas e a continuar a dar oportunidades de aprendizagem, tanto do ponto de vista institucional, como do ponto de vista individual, com concursos e open calls.

E em relação ao Kizomba Design Museum? Como foi a experiência? Vai ter continuidade? Foi um momento na Bienal de São Paulo ou terá desenvolvimentos? 

Brother, fizemos bonito, sabes? E com muito orgulho, porque a única razão pela qual eu e o Kalaf fizemos bonito foi pela confiança dos artistas que decidiram estar connosco. Foi de uma generosidade incrível. E há um desafio. Eu não sei como é que os portugueses se sentem em relação a isso, mas há aqui uma possibilidade de nós olharmos para São Paulo enquanto a capital da língua portuguesa. É a quinta maior cidade do mundo e fala português. E depois falas da capacidade industrial, de telecomunicações, de média, de produção e distribuição dos bens. Para o mundo lusófono, eu não sei como não assumirmos isso como um metal [precioso]. Foi importante nós irmos fazer essa presença, não só por ser um momento histórico, pelo facto o Lula estar de volta, mas teve a ver com muitos parâmetros, por exemplo com quem estava a fazer a curadoria da Bienal de São Paulo, o quão histórico esse momento foi. E depois foi também a confirmação de algo que, de alguma forma, Portugal tem estado a negar à cultura da kizomba. Continuidade? Sem a mínima dúvida. Estamos a trabalhar as nossas parcerias. Eu acho que projetos que são bem-sucedidos correm o risco de querer reproduzir a mesma coisa. Houve a necessidade de eu e o Kalaf darmos um primeiro passo, mas eu e o Kalaf não somos programadores, nós produzimos conteúdos. Kizomba quer dizer celebração, festa. Celebração do quê? Festa a favor do quê? O nosso sentido de missão com o Kizomba Design Museum foi exatamente de alargar como se entende kizomba não só como dança e música, mas como uma cultura. 

Uma cultura que está no mundo todo. No Brasil, em Portugal, em Angola, na China…

No mundo todo bro! Eu acho difícil encontrar-se uma capital mundial que não tenha uma escola de kizomba e a dança aí está a ganhar. Mas mesmo a dança está embebida de um pensamento e de uma cultura. Nós queríamos dar essa legitimidade ao movimento e celebrar grandes campeões da cultura. Então “museum” porque é algo que tem de ser estudado, arquivado, catalogado, existem pessoas ligadas a essa cultura do ponto de vista musical, das artes performativas, do movimento, do corpo, da dança, mas também na literatura, na oralidade, em disciplinas como a estiga ou como o rompimento. Há uma série de coisas que vêm da nossa cultura, da forma como entendemos o viver, aquilo que comemos, como comemos, com quem comemos, de que forma comemos, tudo isso faz parte da kizomba. Nós demos um passo para dizer o quão a sério levamos isto. Talvez eu e o Kalaf não fôssemos os embaixadores mais óbvios, muito menos em algo que nós colocamos no mundo e a que decidimos agregar a palavra “design”.

Também foi curiosa a escolha dessa palavra.

Muitos conselhos existiram para nós deitarmos abaixo a palavra “design”, mas não deu. A kizomba música e a kizomba dança são motores que coordenam, orientam, determinam e dão o tom de como as pessoas desenham as suas vidas. Seguimos a definição de Bruce Mau que traz essa consideração de que design não é só o objeto que é criado, mas também a força motora que permite o objeto ser criado. É dessa perspetiva que nós agregámos a palavra design. A kizomba música, a kizomba comida, a kizomba dança, determina como eu considero a minha semana de cinco dias, o que é o meu sábado e o meu domingo, com que disponibilidade é que eu estou aqui ou ali, como é que eu me relaciono com as pessoas. Sem kizomba estrutura, não existiriam as discotecas Luanda, Ai-Uê, Mussulo, e sem isso não existiria um trabalhador na obra, ou uma senhora da limpeza, com tão boa disposição mesmo sendo humilhados, esquecidos e negligenciados. Its a powerfull thing man! O Kalaf é alguém que tem uma relação profunda com isso. Até antes de nós termos começado a falar, ele já escrevia e dizia em entrevistas: “Deem um museu à kizomba!” Estão colocadas várias ideias conceptuais, o Brasil vai continuar a ser o nosso foco de alguma forma, mas obviamente que Lisboa é o lugar maior da kizomba música ou da kizomba dança. 

Mais do que Luanda?

É uma pergunta difícil, são as duas, mas sem Lisboa não tem como. E deixar bem claro que não estou a falar de Portugal, estou mesmo falar de Lisboa! [Risos] Apesar de haver movimentos muito fortes desde os anos 80 no Porto ou em Braga, mas Lisboa é um lugar primordial nessa construção. Então vêm mais gestos que pretendem deixar clara essa abrangência da cultura kizomba, do que é esse pensamento. É preciso continuar a triangular tudo isso, não esquecer a música e a dança, mas trazer ao de cima a cultura. Tem pessoas super competentes que percebem da música, da dança, do negócio. Nós também temos noção disso, mas acho que queremos dar mais um ângulo do que é que essa cultura oferece para que todos aqueles que desfrutam de kizomba e para que consigam ter essa oportunidade de reconhecimento. Tem que se dar love a todos os cabeleireiros e barbeiros do país que estão a cortar cabelo carapinha e que desde o final dos anos 70, durante os anos 80, e até os dias de hoje, construíram negócios que sustentaram famílias, viabilizaram vidas e a participarem da economia portuguesa de uma forma muito tangível. E há muitos outros lados da participação da cultura kizomba em Portugal, em Angola, nos restantes PALOP, no Brasil e no mundo, como as escolas de kizomba. Tens pessoas a viver dessa cultura, isso tem que ser celebrado e em Portugal em particular tem que ser recontextualizado e recelebrado porque isso está a acontecer e está a acontecer com prazer, com troca e com festa.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos