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Publicado a: 11/04/2016

Napoleão Mira: uma ode à palavra

Publicado a: 11/04/2016

[TEXTO] Manuel Rodrigues [FOTOS] Camille Leon

Escrever e descrever sentimentos, para que estes possam viajar do emissor ao receptor com a mesma intensidade com que são sentidos, não é tarefa fácil. Não é à toa que uma das mais célebres estrofes de Fernando Pessoa, inserida no poema “Autopsicografia”, verse sobre o assunto. O fingimento aqui referido não é o do engano ou da mentira, mas sim o da capacidade de abordar as mais variadas emoções e – até – transformar-se nelas.

Seguindo esta ordem de ideias, é legítimo afirmar que Napoleão Mira, poeta e dizedor de poesias que subiu ao palco da Casa Independente na passada sexta-feira para apresentar ao vivo o álbum que lançou em conjunto com o rapper Reflect, 12 Canções Faladas e 1 Poema Desesperado, é um competente fingidor. Que o digam as cerca de duas dezenas de pessoas que se deixaram contagiar pelo intenso magnetismo das declamações do artista, numa noite em que a palavra falou mais alto.

Contudo, houve uma empatia que se criou entre público e Napoleão Mira que ditou uma boa parte do bom sucesso do espectáculo. Se os minutos que antecederam a subida ao palco foram dedicados à confraternização com os presentes, o tempo efectivo de concerto foi reservado à partilha de histórias na primeira pessoa – do déjà vu que lhe trouxe à memória uma actuação com uma banda de baile há quarenta anos no mesmo espaço (“correram comigo do colectivo por não saber cantar”, disse a dada altura), à homenagem que fez a Álvaro de Campos, heterónimo de Pessoa que mais admira, com a declamação de “Poema Em Linha Recta” e “Tabacaria”. Coube a Rafael Correia, também conhecido por GiJoe, a tarefa de garantir o disparo e a interpretação live dos instrumentais que serviram de leito aos versos de Napoleão.


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Os mais aficionados do hip hop português já estarão há muito tempo familiarizados com a voz serena e aprazível do homem que partilha o mesmo apelido do rapper Sam the Kid. O poema “Slides (Retratos da Cidade Branca)”, que podemos encontrar no terceiro álbum do rapaz prodígio de Chelas é de sua autoria – e a voz que o recita pertence-lhe. O regaste destas estrofes para o projecto que partilha com Reflect, e, por conseguinte, para o concerto da passada sexta-feira, seria inevitável (ainda que não beneficie da nova roupagem), ou não fossem estas linhas merecedoras de uma vénia por parte de todo o amante deste género de composição literária.

Napoleão tem no seu aparelho vocal, mais precisamente no timbre, uma importante arma. Mas tem nas pausas, no respirar e nas expressões faciais uma muleta quase vital. São estes os pequenos pormenores que marcam a diferença entre o banal e o singular. E tal distinção acabaria por se evidenciar na forma como o artista serviu o poema “Desesperança” à plateia, naquele que foi, muito provavelmente, o momento mais intenso da actuação. A sentida introdução ao tema, que levou o artista a repescar a história de Manuel António Domingos, um amigo próximo que certo dia decidiu colocar termo à vida, não deixou margem para dúvidas: cada frase recitada viria das entranhas de alguém que um dia perdeu uma parte de si. E assim foi. Num crescendo de emoção que teve no ritmo e na dinâmica sublinhados aliados, Napoleão partilhou aquilo que o próprio acredita terem sido os últimos minutos de vida do seu amigo. Mas este “Desesperança” teve, na sexta-feira, nova dedicatória. “Soube hoje que a minha amiga Isa Viriato, de 30 anos, também desistiu de viver – hoje, esta canção é para ela”, partilhou com o público, que, por sua vez, não poupou nos aplausos. Belo momento.

Nem todos os que escrevem poemas ou que os dizem são exímios na arte de fingir. Napoleão consegue juntar ao seu carisma e gentileza a capacidade de personificar a dor, de se transformar em sentimentos. As histórias que vai partilhando nos intervalos entre declamações são a chave que nos ajuda a descodificar os versos e as figuras de estilo que embelezam a sua obra. Está lá tudo. Da dor agoniante da viagem sem retorno, ao sorriso cintilante da esperança. Como nos diz em “Máscaras D’Orfeu”, o último poema a visitar os nossos ouvidos na sexta-feira, “finjo tanto que até a pensar finjo que penso”. E que fingidor, este.


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