Com apenas 23 anos, Nami é um nome que ao longo dos últimos tempos se tem vindo a tornar notório nos créditos de muitas canções do mercado norte-americano, da pop ao rap. Ariana Grande, Travis Scott, Sam Smith, Chris Brown, Lil Yachty, JID, Big Sean, Benny Sings, Jack Harlow, Bryson Tiller, Vince Staples, YG, Busta Rhymes, Smino ou Aminé são alguns dos muitos artistas que foram agraciados pela composição ou produção deste músico cabo-verdiano radicado em Los Angeles.
Nami também não tem deixado os seus compatriotas sem a sua preciosa matéria-prima — tem sido um colaborador frequente de June Freedom, mas também trabalhou com Dino D’Santiago ou Nelson Freitas nalgumas canções. Em pouco tempo de carreira, conseguiu quatro nomeações para os Grammys e uma série de singles de multi-platina.
No mês passado, a 9 de Maio, lançou-se em nome próprio com o seu álbum de estreia, WARM, editado pelo seu próprio selo, ONDAS — Dylan Ismael Teixeira escolheu “Nami” como nome artístico por ser a palavra japonesa para a rebentação do mar, um elemento tão fundamental do ADN cabo-verdiano.
Em entrevista por vídeo chamada, na primeira vez que conversa com um meio de comunicação português, Nami conta a sua impressionante história, descreve aquilo que o move, explica o que quis fazer com este primeiro disco (de múltiplas influências sonoras, do R&B à pop, passando pelo rock psicadélico) e aponta uma série de caminhos para o futuro, que só pode ser radiante para quem em tão pouco tempo já conseguiu concretizar tanto.
És de Cabo Verde, da cidade da Praia. Mas como e quando é que foste para os Estados Unidos da América?
Vivi na Praia a minha vida toda, até aos 17 anos. Estudei em Cabo Verde, desde a escola primária até ao secundário. E antes de acabar o secundário, vim para os Estados Unidos fazer o meu último ano de liceu, porque se viesse depois e quisesse continuar a estudar, teria de fazer um ano só de inglês. Depois vim para Los Angeles. Primeiro estava em Boston — lá há mais cabo-verdianos, tinha alguns tios e tias. E depois vim para Los Angeles uns seis ou sete meses antes da COVID-19. Não fazia ideia de que iria acontecer, mas estava a trabalhar em contrarrelógio. Fiz o máximo de sessões e reuniões que consegui e, mesmo antes de a COVID acontecer, já tinha algumas pessoas muito interessadas em assinar comigo como produtor. Quando tinha 18 anos, quase a fazer 19, acabei por assinar com um produtor. E passei a maioria da primeira metade da COVID-19 a trabalhar com esse produtor, a fazer músicas e a ter algumas grandes oportunidades pela primeira vez. Isso ajudou-me a conseguir duas músicas no álbum da Ariana Grande, o Positions, e agora tenho o disco de platina dessas músicas, o que me deixa orgulhoso. Também me valeu uma das minhas primeiras nomeações para os Grammys. E desde então, todos os anos tenho conseguido dezenas, se não mais, de oportunidades igualmente boas como compositor e produtor. Tem sido uma carreira bonita e em crescimento, com altos e baixos. Mas até agora, já estou profissionalmente em Los Angeles, a produzir e a compor para outras pessoas, há seis anos. E estou muito orgulhoso de como, no início, parecia que estava tudo contra mim. Em média, a maior parte das pessoas demora mais tempo a pôr as coisas a andar. Mas, não sei, fui abençoado com as oportunidades certas mesmo antes de começar a pandemia, e depois consegui aproveitá-las durante esse período. Quando a COVID acabou e as coisas reabriram, estava a olhar para uma vida completamente diferente. Foram anos muito intensos para mim. Ver muitos sonhos e a vida a mudar através do telefone… As minhas primeiras nomeações para os Grammys foram pelo telefone. Nem pude celebrar, nem vestir um fato.
Mas quando decidiste mudar-te para Los Angeles, o teu sonho e objectivo já era trabalhar como compositor e produtor para grandes artistas?
Bem, em parte. Como quase todos os miúdos dessa idade, estás sempre a negociar com os teus pais. É sempre um jogo de dar e receber. Eu estava pronto para estudar algo de que não gostava para o resto da vida e seguir uma carreira nisso. Mas, à última da hora, ganhei coragem e decidi comunicar aos meus pais que tinha uma verdadeira paixão pela música. E que estava disposto a apostar tudo. A condição do meu pai foi que, se eu ia fazer música, então tinha de ir para uma escola. Candidatei-me à Berklee, em Boston. E a Berklee não me aceitou, o que acabou por ser uma bênção. Decidi ir para uma escola de música, e a escola de música, pelos vistos, achou que eu não era suficientemente bom. E, nesse mesmo ano, apareceu-me uma oportunidade que me atirou muito mais para a frente do que eu estaria se tivesse acabado esse curso. O mundo funciona de formas misteriosas. Eu não as questiono, mas foi uma bênção. A Berklee não me aceitou, acabei por vir para Los Angeles, inscrevi-me numa escola de engenharia de som. Mas quando veio a COVID, nada daquilo fazia sentido. Aprender engenharia de som pelo Zoom parecia-me inútil. Então acabei por desistir…
E começaste a trabalhar.
A trabalhar e a trabalhar. Eu já estava a trabalhar mesmo antes de sair da escola. É engraçado, foi hilariante. Eu estava ao telefone com o meu pai, a negociar, eu a dizer: “Acho que preciso de sair da escola”. E ele: “Não, tens de continuar na escola. É assim que garantes uma carreira”. E eu: “Mas eu estou no meio de uma carreira agora, e tenho de a dividir com a escola. Isto não faz sentido. Os meus colegas de turma estão à espera de se formar para fazer o que eu já estou a fazer quando sair da escola. Acho que tenho de sair”. E acabei por sair. Tivemos ali uma pequena discussão durante uns minutos, mas ele acabou por perceber. Porque eu não saí da escola de mãos a abanar. Quando saí da escola, já tinha duas nomeações para os Grammys de engenharia de som. E eu a pensar: “Estou a estudar para fazer isto, mas já estou a fazer isto.” Por isso, acho que devia parar de estudar.
E como é que conseguiste essas primeiras oportunidades em Los Angeles? Já conhecias alguém no sector?
Essa é a parte mais fixe da história. Porque são coisas que tento continuar a fazer até hoje. É muito normal, depois de uma coisa resultar, ires deixando de fazer o que funcionou no passado. Mas percebi que, se mantiver algumas dessas rotinas e técnicas, posso continuar a avançar na carreira, porque são técnicas que nunca ficam fora de prazo. Quando aterrei em Boston, conhecia muito pouca gente. Mas quando voei de Boston para Los Angeles, não conhecia rigorosamente ninguém. Tinha uma mala, três colegas de casa que nunca tinha visto na vida, estava a dividir um quarto com um deles. E a casa era péssima. Os colegas eram péssimos. Tinha pouco dinheiro. A comida que comia era péssima. Tudo era péssimo. Mas havia uma coisa que era forte — a minha crença na minha música. Então o que fiz foi enviar mensagens no Instagram e emails para, talvez, cem pessoas por mês. Sempre. Ia ver as minhas músicas favoritas, via quem tinha trabalhado nelas, procurava as redes sociais dessas pessoas e mandava mensagem a cada uma delas. Agora, se mandas mensagem a cinco pessoas, é muito provável que nenhuma te responda. Se mandares a cem, quatro podem responder. E era com isso que eu contava. As minhas hipóteses eram muito baixas. Então aumentei a quantidade de tentativas. E as que respondiam, eu fazia questão de manter a relação. Estava sempre a enviar música, ideias, a fazer follow-up. E passado quatro, cinco meses, não só já tinha pessoas interessadas em assinar comigo, como já conseguia dividir o meu tempo entre as aulas e ir conhecer essas pessoas. Entrei numa rotina em que ia às aulas das 8h até às 14h. E depois, às 16h, já estava numa sessão com alguém a quem tinha mandado mensagem. Se fossem sessões pop ou mais viradas para música radiofónica, eram de tarde. Mas as sessões de rap eram à noite. Então, ao fim de seis meses, já estava a fazer aulas das 8h às 14h, sessões pop das 14h às 20h ou 21h, e depois sessões de rap das 21h às 4 da manhã. Dormia três ou quatro horas e estava tudo bem. Estava a viver o sonho. Era aquilo que sempre tinha imaginado. E essas primeiras sessões não eram com artistas famosos. Eram artistas que também estavam a tentar começar. Mas o que acontece naturalmente é que, quando fazes muito, o teu nome começa a espalhar-se, e as pessoas começam a requisitar-te. E pronto, nessa altura, já havia alguma atenção e procura.
Deve ter sido uma época mágica mas, ao mesmo tempo, muito exigente.
Sempre que conto esta história a produtores e compositores, quer estabelecidos, quer a começar, digo-lhes que foi uma das fases mais difíceis da minha vida. Mas eu fazia aquilo a sorrir porque inscrevi-me para esse desafio. Fui eu que escolhi fazer aulas e sessões no mesmo dia, dia após dia, durante meses. E quando veio a COVID, o que mais me custou foi não poder continuar, porque significava menos oportunidades para fazer a carreira crescer. Mas, felizmente, impressionei as pessoas certas nesse pouco tempo e consegui continuar a produzir remotamente e, às vezes, presencialmente, durante a COVID. A meio da pandemia, em 2020, já tinha duas músicas grandes com a Ariana Grande, mas também uma com o Bryson Tiller, com o Aminé, Unknown Mortal Orchestra, EARTHGANG, Jack Harlow…
Essa é de facto uma grande história. Mas como é que começaste a fazer música? Suponho que tenha sido enquanto adolescente na cidade da Praia.
Sim. Bem, tenho a certeza de que já conheceste muitos cabo-verdianos. Muita gente pode dizer que gosta de música. Mas tu consegues perceber que os cabo-verdianos vivem a música. Não há muita coisa que aconteça sem música onde eu cresci. Por isso, a música não foi algo que eu precisei de descobrir. Percebes o que quero dizer? Muitas culturas têm música, claro. A música é uma parte enorme do mundo. Mas os cabo-verdianos usam música para tudo. Se estás a almoçar, há música. Se vais a um funeral, vão cantar. Se vais trabalhar de manhã, os táxis têm música — e alta. E depois a nossa música tradicional é lindíssima. Temos escritores incríveis na nossa história. E músicos que conseguiram tocar o mundo inteiro — desde a Cesária Évora à Sara Tavares, a Mayra Andrade… artistas incríveis que conseguiram mostrar ao mundo a riqueza que existe na cultura cabo-verdiana. Por isso, quando me fazem esta pergunta, especialmente pessoas que não conhecem Cabo Verde — e tu conheces, portanto estou com sorte — tento sempre explicar: eu não tive de ser apresentado à música. A minha mãe cresceu a dançar várias vezes por dia com a família e os amigos. O meu pai tinha uma coleção de 400 CDs lá em casa.
Estava à tua volta, em todo o lado.
E eu tive uma experiência ainda mais única porque o meu pai trabalha nas Nações Unidas, no World Food Program. Vai para países subdesenvolvidos de quatro em quatro anos e tenta criar programas com os governos para aumentar o financiamento para a nutrição da população. O que isso fazia era que o meu pai, durante anos, ia para países completamente diferentes. Não só Cabo Verde, Senegal, Portugal, Gâmbia… ele ia para a Costa do Marfim, Libéria, Timor, Itália, Brasil… andava pelo mundo todo. E trazia CDs com ele. Por isso, o meu pai construiu uma colecção gigante que tínhamos em casa. E eu, ao crescer, tive a escola musical mais diversa possível. É por isso que a minha música é tão variada e que qualquer língua que eu fale, consigo falar com o sotaque certo — porque tinha o mundo inteiro nos meus ouvidos desde muito novo. Eu podia escolher: hoje apetece-me afro-cubano, vou ouvir este CD; hoje quero Tribalistas, música brasileira; hoje vou ouvir um grupo tradicional congolês. E depois, quando finalmente comprámos um iPod, ele comprava compilações de world hits. Foi assim que conheci os Black Eyed Peas, Justin Bieber, Chris Brown. Não era tipo Radiohead e Imogen Heap. Ele comprava world hits, porque para conhecer artistas mais underground e alternativos, tens de estar lá e estar mais por dentro. Por isso, se estávamos a consumir música ocidental, do Reino Unido e dos EUA, no início eram sempre as maiores músicas, os hits, os Coldplay, a Adele… Foi assim que me apaixonei pela música pop. Depois, quando tivemos um computador em casa, ia ao YouTube ouvir mais coisas. E o meu primeiro contacto foi através da dança. Eu dançava imenso. Dancei durante muitos anos. Depois também fazia desporto. E por volta dos 13, 14 anos, decidi que não queria continuar no desporto. E comecei a fazer beats. E foi perfeito porque eu era DJ na Praia, como miúdo, só por diversão. Vendi o meu primeiro controlador de DJ para comprar o meu primeiro microfone. E decidi: “Vou gravar música”.
A tua ou a dos outros?
Dos 14 anos até sair de Cabo Verde, todas as sextas, sábados e domingos, a minha mãe deixava-me levar qualquer pessoa lá para casa para os gravar. E sem me aperceber, passei os meus anos de adolescência a tornar-me engenheiro de som profissional. Porque gravava rapazes, raparigas, diferentes tipos de vozes, a cantar, a rimar. E fui aprendendo a misturar essas vozes, a gravá-las como deve ser, a ajudá-los a escrever. A fazer capas de álbum. A fazer upload para as plataformas, para a DistroKid, TuneCore. Ou seja, com 16 anos, eu já era praticamente uma editora independente. Pegava em amigos ou pessoas interessadas, gravava-os, misturava, cantava refrões para as músicas deles, fazia as capas e fazia o upload. Porque era nerd. E ainda sou. E aprendi tudo isso antes de vir para os Estados Unidos.
E usavas o nome Dylan The Wave, certo?
Foi esse o nome que usei durante muito tempo.
E nessa altura também fazias música tua?
Cheguei a lançar duas músicas no SoundCloud. O suficiente para as pessoas saberem que eu fazia a minha própria música. Mas nunca nada muito sério. Eu estava apaixonado pelo processo de fazer para outras pessoas. Por isso, quando cheguei a LA, os meus primeiros anos foram só a fazer música para outros. E isso deu-me capacidade financeira, eventualmente, para poder fazer a minha própria música. Mas o que ganhei mais nesses anos foi experiência. Quando cheguei a LA, toda a gente dizia: “Tu já és tão bom, sabes fazer isto tudo”. E parte de mim achava que era um dom. Mas não era. Eu tinha mesmo experiência prática intensa de quatro ou cinco anos. Entrei no mercado de trabalho já experiente, só que nunca contei isso como experiência. Porque, por algum motivo, achava que Los Angeles iria ser diferente, teria de me habituar a montes de coisas. Mas não é assim tão diferente gravar a Selena Gomez ou gravar o teu amigo do secundário. Ela é a Selena Gomez, sim, mas tu só tens de usar a experiência que tens e confiar nela.
Então, quando eras mais novo, o sonho não era exactamente fazeres a tua própria música. Isso mudou agora com o WARM, ou foi algo que foi crescendo em ti ao longo dos anos? Como é que descreves esse processo de passares a querer fazer a tua própria música?
Vou ser muito honesto. Quando comecei a levar a música a sério, era para mim. Mas percebi que era péssimo. Como tudo o que se começa. Então decidi aprender através de outras pessoas — a gravar outros, a escrever para outros, a produzir para outros, a misturar para outros. Ainda em Cabo Verde, antes de vir para os EUA, quando fiz aquelas músicas que te disse que pus no SoundCloud, já tinha bem mais experiência do que quando comecei. Já sabia como me fazer soar bem, como misturar melhor, porque tinha praticado com os outros. Por isso, o sonho de fazer a minha música sempre esteve lá. Só que ficou para segundo plano porque eu achava que ainda não conseguia fazer o tipo de música que queria fazer. E eu vou ser sempre dez vezes mais exigente comigo do que com os outros. Isso vai ser sempre assim comigo. Posso ajudar-te a escrever uma das melhores músicas de sempre, mas se me disseres para ficar com ela, provavelmente não vou. Porque comigo vou ser muito mais difícil. Se calhar sem necessidade, mas é assim que sou. Por isso, fazer a minha música sempre demorou mais, porque precisava trabalhar mais para conseguir chegar ao nível que queria. Fiz anos de songwriting e produção em LA. E chegou a uma altura em que pensei: “Isto traz-me alegria e felicidade, produzir e compor para grandes artistas. Mas acho que chegou o momento de olhar para dentro e fazer exactamente a música que eu quero”. E foi isso que fiz agora.
Mas já sabias que tipo de música querias fazer? Porque o teu leque sonoro à partida era muito amplo, imagino.
Quando decidi fazer o álbum, tinha uma ou duas músicas que sentia que não queria dar a ninguém. Eram a “Connoisseur”, a faixa três do álbum, e outra música que acabou por não entrar. E depois pensei: “Se calhar devia fazer mais músicas assim”. E fui fazendo mais e mais. Passou um ano, passaram dois. E depois foi do género: “Se continuar assim durante muito mais tempo, vou ficar sem dinheiro. Por isso temos de acabar estas músicas”. E, como fiz o meu álbum todo sem editora, levei a coisa até ao fim.
E porquê? Porque, com as tuas ligações na indústria, podias facilmente assinar com uma editora.
Por duas razões. Um dos meus maiores medos na carreira é não poder tomar decisões sobre a minha própria música. Eu estive tão próximo da indústria que consigo dizer-te o quão feio pode ficar para um artista. Quando vês artistas que o mundo adora e que estiveram quatro ou cinco anos sem poder lançar música porque a editora tinha uma estratégia ou um plano de marketing que, no fundo, não lhes servia… E eu nunca quero estar numa posição em que quero fazer algo com a minha música e alguém me diz que não. A maneira de garantir isso é, desde o início, assumir a liderança. Quando fazes a tua música, pagas a gravação, a mistura, a masterização, escreves e produzes as tuas canções… podes fazer o que quiseres com tudo. E qualquer editora ou distribuidora com quem eu decidisse colaborar no lançamento do WARM — no meu caso, foi a Gamma — a conversa já seria completamente diferente. Se eles produzem o álbum, gravam o álbum, pagam tudo, chegam e dizem-te o que fazer. Se chegas com as músicas feitas, eles perguntam: “De que precisas de nós?” E, nessa altura, é muito pouco. Dizes: “Mete no Spotify e manda para alguns contactos que tenham. E tenho uns videoclipes para pagar — podem pagar isso”. Fica por aí. Eu estou a operar como se fosse uma editora. E apesar de só ter 23 anos, sou novo, tenho muito para aprender, mas já vi e vivi o suficiente para estar confiante nas decisões que tomo. Mesmo que algumas sejam erradas, estou tranquilo com isso. Porque sei que a alternativa não é opção. Eu nunca vou aceitar um mundo onde me dão um estilista, um produtor, um engenheiro e fazem de mim o artista deles. Eu sou o meu artista. E há artistas diferentes — há artistas que desejam isso. Há artistas que querem um estilista, um engenheiro, um produtor, uma editora a dizer-lhes o que fazer. Eu não sou essa pessoa. Isso assusta-me. A ideia de alguém me dizer o que fazer assusta-me. E foi uma decisão difícil, porque isso significava que, dos 21 anos até há poucos meses, tive de pagar cada decisão executiva e financeira de um álbum que quero que consiga competir ao mais alto nível. Eu não fiz uma mixtape aleatória. Queria fazer um álbum competitivo. Isso quer dizer que, como artista independente, estou a tentar competir com as maiores editoras — sonoramente e visualmente. E tentei o meu melhor. Vamos ver o que acontece. O álbum nem tem um mês.
E queres descrever o álbum em si? A música que querias para este primeiro disco, as influências que te serviram de referência? Aposto que te falam muito da notória influência do Michael Jackson. Foste descobrindo o que querias, os temas que querias abordar, ou já tinhas ideias muito definidas como ponto de partida?
Isso são tudo excelentes perguntas. O meu álbum é duas coisas: primeiro, sou eu a criar livremente, depois de anos a criar para os outros. Muito do que ouves no meu álbum é o meu processo de busca, de descoberta. Estás a ouvir-me a experimentar coisas e a pensar: “Isto pode ser a faixa cinco”. É isso que este primeiro álbum é. Porque, se olhares para o meu catálogo como songwriter e produtor, consegues ver que sou bastante objectivo em géneros específicos. Tenho canções desde Sam Smith até Sexyy Red. Se quiser, faço hoje uma música para a Sexyy Red e amanhã para Sam Smith. Mas não queria abordar o meu álbum assim. Quis que o meu primeiro álbum fosse um pouco menos definitivo. Mesmo correndo o risco de parecer confuso — não me importei. E, felizmente, até agora ninguém me disse que soa confuso. Mas quis que o meu álbum fosse o reflexo vivo da minha busca, porque foram muitos anos a ir atrás de sons específicos para os outros. Quis explorar tudo aquilo de que gosto. Por isso, sim, a faixa dois, “Suzette”, pode lembrar-te do Michael Jackson. A faixa oito, o interlúdio, é mais Nirvana. A faixa 10, a “Satellite”, soa a Coldplay. A faixa 13 é quase psicadélica, meio rock. E a faixa cinco volta a ser R&B dos anos 90, a “Heaven”. São mundos diferentes que estou a explorar. Tens a “Hues”, que é só guitarra e voz — canto em inglês na primeira metade e crioulo na segunda. Nós temos um artista de Cabo Verde chamado Tcheka, que fez muitos discos assim. É um belíssimo compositor cabo-verdiano e inspirou a forma como abordei a “Hues”. E depois, a segunda coisa sobre o meu álbum, é que é, curiosamente, muito cabo-verdiano. Alguns cabo-verdianos têm dificuldade em perceber porque é que eu digo isso. Porque Cabo Verde não tem um som fixo. E eu, no início, sentia-me culpado por fazer um álbum todo em inglês, sem soar tanto aos sons tradicionais cabo-verdianos. Mas depois pensei: “O que é o “som cabo-verdiano”? Eu produzi, tenho músicas com o Dino D’Santiago, sou amigo da Mayra Andrade, produzi o primeiro single do June Freedom com o Nelson Freitas…
Trabalhas muito com o June Freedom, que também fez um percurso semelhante ao teu, ao vir de Cabo Verde para se estabelecer em Los Angeles.
Sim, o June é muito meu amigo. Fiz músicas em todos os álbuns dele.
Conheceste-o em LA?
Sim, e foi da forma mais cósmica, quase parecia um conto de fadas. Estava numa Instagram Live naquela altura em que mandava cem mensagens por mês. Uma das pessoas a quem tinha mandado mensagem estava nesse live, tinham alugado uma casa de luxo em LA para trabalhar em música. E eu escrevi no chat: “Posso ir?” Essa pessoa, que nunca me tinha visto, respondeu: “Claro”. Mandou-me a morada e eu fui. No segundo dia lá, disse-lhes de onde era. E a mulher do June estava lá e disse: “És cabo-verdiano? Isso é louco, há tipo quatro cabo-verdianos em LA”. E eu: “Não conheço nenhum”. Até porque, na altura, o June ainda não tinha música cá fora. E ela: “O meu namorado é cabo-verdiano”. Eu disse-lhe para ela o convidar e ele veio. E desde então somos família. A minha namorada já ficou a tomar conta da filha deles quando eles precisavam. Ficámos super próximos. E tudo aconteceu de forma absolutamente aleatória.
Mas interrompi-te, estavas a falar do que é isso do “som cabo-verdiano”.
A música cabo-verdiana é muito interessante, e tenciono no meu segundo álbum — estou a trabalhar no segundo álbum, já ando nisso há algum tempo — trazer um pouco mais daquilo que as pessoas consideram que é música tradicional cabo-verdiana. Mas a questão é que, se fores agora a Cabo Verde, estamos a ouvir muito afrobeats e muita música de festa, que é o que está na moda. Uns nomes engraçados tipo MC Prego Prego e outros assim. O June continua a ser relevante, claro. Mas se recuares uma década ou mais, tens o Nelson Freitas, o Djodje, a Suzanna Lubrano — artistas de kizomba e tarraxinha. Dá para dizer que, há 10 anos, era a isso que soava a música cabo-verdiana. Hoje, a música cabo-verdiana soa mais a afrobeats. Dez anos antes disso, tinhas o Beto Dias, o Grace Évora, o Jorge Neto, o Gil Semedo. Música dos anos 90 muito inspirada pela música americana. O Gil Semedo era o nosso Michael Jackson. Ele soava como o Michael, às vezes parecia-se com ele, e dançava como ele, e tornou-se o nosso maior artista porque tinha essa sensibilidade pop. Era isso que era a música cabo-verdiana na altura em que ele era popular. E o Jorge Neto era quase como o nosso James Brown. Grande personalidade, grandes temas, sempre a dançar. Mas o Jorge Neto estava a acontecer e ao mesmo tempo a Mayra Andrade, que cantava músicas do Orlando Pantera, e muito daquilo que chamamos de música tradicional cabo-verdiana — embora nunca se encontre bem o que isso é, porque… É uma coisa inspirada no afro-cubano, no fado português, misturada com os nossos ritmos e instrumentos nativos, e criámos essa coisa que é a morna. É aquilo a que muita gente se refere quando fala de música cabo-verdiana. Mas se ouvires música feita em Cabo Verde nos anos 70, estávamos a fazer soul puro, ao nível da Motown. E é incrível, super bem gravado, com guitarras funky. Se fores aos anos 60, é uma mistura de morna e soul. Mas, nos anos 70, por alguma razão, houve uma altura em que tudo ficou mesmo muito soulful, à americana. Depois começámos a usar sintetizadores, a ouvir muita bateria ao vivo, linhas de baixo lindíssimas, e muita gaita. Continuamos a usar gaita em alguns dos nossos géneros, como no funaná. Portanto, quando olhas para essa coisa absolutamente louca que é a música cabo-verdiana, nada se pode chamar música cabo-verdiana — mas tudo pode ser chamado de música cabo-verdiana. Porque temos momentos históricos muito significativos, que definem décadas, e que são completamente diferentes uns dos outros. O facto de o Gil Semedo ter surgido mesmo antes da Mayra Andrade, e o Gil a fazer música ao estilo do Michael Jackson nos anos 90, e a Mayra a fazer morna, e os cabo-verdianos nem sequer estranharem — foi só tipo: “Ya, tudo bem”. É isso que eu adoro na música cabo-verdiana, e é isso também que orienta a liberdade com que me expresso na minha música. É por isso que decidi fazer músicas que soam assim e outras que soam assado. Por agora, só fiz um verso em crioulo. Mas vejo-me cada vez mais a aproximar-me de sons que as pessoas reconhecem como cabo-verdianos, à medida que for envelhecendo. Acho que uma boa forma de fazer isso é conseguir trazer o maior número possível de pessoas para dentro, e depois apresentar-lhes algo a que talvez não estejam habituadas. A “Suzette” não foi só inspirada no Michael Jackson, também foi muito inspirada no Gil Semedo, que tinha uma música chamada “Suzy”. O Gil Semedo também se inspirava no Michael, mas eu importava-me mais com o Gil Semedo do que com o Michael. Adoro o Michael, e se disser isto aqui as pessoas vão-me matar porque o Michael é um deus. Mas o Gil Semedo era o meu Michael.
Claro, faz todo o sentido.
Chamei àquela música “Suzette” porque o Gil Semedo tinha a “Suzy”, que eu adorava. E sim, com o tempo, tenciono trazer mais e mais daquilo que as pessoas reconhecem como sons tradicionais cabo-verdianos, estou entusiasmado com isso. Mas uma grande missão minha é conseguir trazer o maior número possível de pessoas para dentro deste universo, porque os cabo-verdianos sempre foram muito respeitados e admirados musicalmente no mundo todo, mas sempre houve uma espécie de tecto. E se eu conseguisse, no meu quarto álbum, fazer um momento com batucadeiras — ter o batuku como secção rítmica de uma faixa? E a razão pela qual estariam a prestar atenção seria porque quatro álbuns antes eu tinha feito a “Suzette”? Tudo aquilo é verdadeiro para mim. Nada parece forçado. Tudo aquilo é só… música. Por isso, interessa-me ver até onde consigo levar a minha música e apresentá-la, à medida que vou crescendo aqui como artista. Quero ligar-me ao meu público cabo-verdiano, ao público português e francês. Porque são culturas e países com os quais estou muito próximo e que falo fluentemente a língua.
Mesmo estando nos Estados Unidos estes anos, a trabalhar intensamente nessa indústria americana, tens conseguido acompanhar o que se vai fazendo em Cabo Verde e entre os cabo-verdianos em Portugal e na restante diáspora?
Nem tenho outra opção, os meus amigos estão todos espalhados. Muitos estudaram em Portugal. Toda a gente com quem cresci, que conheço, está em Lisboa, no Porto, em Coimbra — estão todos espalhados. A minha ex-namorada estudava em Coimbra. Eu costumava ir a Coimbra e ficar lá semanas com ela. Tenho muitas pessoas no terreno, digamos assim. Muitos amigos meus não só partilham a minha música com as pessoas à volta deles, como também me mandam muita coisa de volta: “Olha, isto aqui está a rebentar”. E eu tento participar. Tenho músicas com o Nelson, com o Dino, com o June. Tento sempre estar atento a tudo o que é novo e fresco. Muita da música que está a fazer sucesso agora na Praia é música mais para a brincadeira. Estamos a fazer muita música engraçada, o que também é divertido. Cresci a ir a festas cabo-verdianas, adoramos aqueles hits de Verão em que dizem disparates, é o nosso ADN. Mas estou curioso para ver que artistas vão surgir e crescer com outras tonalidades, para ver quem serão os próximos Dino, Mayra Andrade, Nelson Freitas, Djodje, Hélio Batalha… Todos esses nomes, aqueles artistas que acabam por se tornar referências. Quando estava a crescer, houve uma grande revolução no rap em Cabo Verde, com uns miúdos chamados Rapaz 100 Juiz. E isso apresentou muita gente em Cabo Verde ao rap popular pela primeira vez. Hoje em dia, o rap é provavelmente dos géneros mais populares entre os jovens lá. Há uns anos, começou-se a fazer drill em Cabo Verde. Porque é isso — os cabo-verdianos fazem o que lhes apetecer. E é isso que é bonito. E sempre que vejo novos artistas a surgir de lá, com drill ou sons inspirados no Reino Unido, só penso: “Não os podes censurar”. Fazemos o que queremos e adoro isso.
E como deves saber, em Lisboa também há uma comunidade enorme à volta do rap feito em crioulo. Até já há artistas de origem portuguesa a cantar em crioulo, porque cresceram com cabo-verdianos nas comunidades locais.
A sério? Não sabia disso. Conheci um artista português há uns meses aqui em LA — o Slow J. Muito boa pessoa, com música lindíssima, um artista muito interessante. Temos um amigo em comum e conhecemo-nos aqui.
Trabalharam juntos ou estiveram só a conviver?
Não, só nos conhecemos. Ele estava cá e fomos comer um gelado. Estivemos a conversar e fiz-lhe perguntas, porque também queria perceber como ele fez para se ligar ao público português. Como foi o percurso dele, como era. Deu-me alguns conselhos, porque tenho plena noção que este é o meu primeiro álbum — e tem só um mês — e tenho uma carreira inteira pela frente para me ligar às várias comunidades que quero. Mas faz muito mais sentido primeiro criar uma ligação local, onde estás, e depois expandir. Mas a audiência portuguesa é uma que eu valorizo muito, porque muita gente minha faz parte desse público. Por isso, poder criar essa ligação e que ela seja verdadeira é algo que vou trabalhar continuamente ao longo da minha carreira. E ele deu-me algumas dicas de como as coisas foram para ele. Há um limite para o que se consegue fazer. Está a acontecer música linda por todo o lado da diáspora. E estamos todos espalhados. Os cabo-verdianos em Boston fazem música completamente diferente, com um tom diferente, uma energia diferente, e é incrível. E o que se faz em Portugal é diferente do que se faz na Praia. E tudo é bonito e incrível.
E às vezes a influenciar-se mutuamente, o que também é interessante.
Está sempre em diálogo. E estou entusiasmado, à minha maneira, ao longo dos próximos discos, por ir descobrindo esses fios condutores. E ter o privilégio bonito de poder escolher que partes da história da música cabo-verdiana quero ir trazendo para a minha. E posso brincar com isso. E tem sido bonito porque tenho recebido muito apoio de artistas cabo-verdianos que sempre admirei e ouvi. E, mesmo fazendo música diferente, todos têm-me mostrado amor e apoio por fazer o meu caminho. Eu não sou um americano com uma bandeira de Cabo Verde na bio. Eu vivi na Praia toda a minha vida. Só vim para aqui e tentei fazer algo um bocadinho diferente. E está a funcionar. A Mayra deu-me conselhos lindos. Tivemos uma conversa linda na praia da Quebra Canela há uns anos e ela deu-me muitos conselhos bonitos e palavras de força que ainda hoje carrego comigo. Porque é uma artista com quem cresci, muito influente na minha escrita. Ela é um caso à parte, pela beleza e serenidade da voz. Mas o efeito que ela teve na esperança musical cabo-verdiana é algo que quero continuar a trazer. Temos uma cultura e uma música tão bonitas. E ela deu esperança a muita gente… incluindo a mim. Porque quando vives num país como Cabo Verde, onde as oportunidades parecem limitadas, e onde tantos de nós emigramos porque as nossas aspirações e capacidades são maiores do que o país, e temos gente extremamente talentosa pelo mundo fora… Soube há pouco tempo que a responsável da Epic Records em França é uma cabo-verdiana. E já conheci aqui dois A&R grandes em LA que são cabo-verdianos. Estamos espalhados pelo mundo, em vários cantinhos, sempre a fazer coisas fixes. E poder existir num lugar onde posso talvez continuar essa esperança que me foi dada… é muito bonito. Eu vi a Mayra e o Dino no A COLORS SHOW, agora fui eu lá gravar. Espero que um dia um miúdo cabo-verdiano o possa ver e também se sinta inspirado tal como eu me senti ao vê-los a eles.
Voltando ao álbum, no WARM só incluíste uma colaboração, com o Eddie Benjamin, mas tendo em conta as pessoas com quem trabalhaste ao longo dos anos, não te seria assim tão difícil contares com features sonantes. Porque é que escolheste o Eddie e porque é que não quiseste incluir mais participações? Quiseste que fosse um disco mais a solo, enquanto primeiro registo, para apresentar a tua música e a tua identidade?
O Eddie é um dos meus melhores amigos. Essa é a melhor razão que te posso dar. Ele vem cá a casa, tocamos guitarra juntos. Já fomos em encontros duplos, vamos ao cinema. E o Eddie, na minha opinião, é um dos seres humanos mais talentosos que existe. O mundo, se calhar, ainda só viu 10% do potencial dele. Ele é um unicórnio, e eu estou entusiasmado para ver como é que o mundo vai conseguir digerir um artista como o Eddie, porque o Eddie é aquele tipo de artista que tem tanto a seu favor, que a parte mais difícil é perceber como traduzir isso para toda a gente, percebes? Eu costumo fazer uma comparação insana. Comparo-o ao Prince e toda a gente reage tipo: “Ah, no Prince não se toca”. Mas eu acho que o Eddie está nesse nível. Ele é um compositor absolutamente incrível, um produtor fenomenal. E o álbum dele, que está a caminho, é a primeira amostra disso. Ele tem a minha idade, temos os dois 23 anos, estamos os dois a fazer os primeiros discos, e ele tem um potencial absurdo em várias áreas, e estou entusiasmado para que ele mostre isso ao mundo. Portanto, tê-lo como participação não foi só por ele ser um grande amigo, foi também já como forma de atar esse laço para o mundo e para tudo o que ainda temos por vir. Assim, quando estivermos no nosso quinto álbum, as pessoas podem olhar para trás e ver que já estávamos a trabalhar juntos no primeiro. E estou entusiasmado para o mundo ouvir a música dele e para verem o que ele faz, porque ele é mesmo muito talentoso. Além disso, ele ajudou a escrever a última música do álbum, que vem logo a seguir à faixa onde ele entra, chamada “It Was Magic, You Should’ve Seen It”. É uma música lindíssima e escrevemo-la juntos. E é por isso que ele é a única participação no álbum — porque foi a única pessoa que eu quis ter no disco. E aquela coisa que as editoras fazem nos álbuns de estreia, de pôr grandes participações… isso já não funciona. O mundo está estranho. Qualquer coisa ligada a marketing parece que afasta as pessoas. Não sei porquê. Toda a gente diz que és um industry plant sempre que pagas um anúncio, que tens a máquina por trás de ti. E esquecem-se de como conheceram alguns dos seus artistas favoritos, que toda a gente adora. Esses artistas tinham cinco ou seis participações de grandes nomes no primeiro álbum. A Alicia Keys ganhou um Grammy com o primeiro disco. Muitos dos artistas que hoje toda a gente respeita, os primeiros projectos deles tiveram um empurrão enorme — dinheiro, publicidade, participações de artistas grandes da altura. E o mundo adorava isso. Na altura, era entusiasmante ver um artista em quem acreditavas estar associado a algo grande. Sentias que ele estava a “graduar-se”. E agora o mundo não gosta disso. Não é que me assuste — mas eu já nem trabalho com uma editora grande, por isso não havia ninguém para me convencer a fazer isso. Quando decidi fazer este disco e mostrar a minha identidade, achei que devia ser sobre mim. E só depois é que podemos falar, nos próximos álbuns, de quem podemos trazer para elevar o projecto a outro nível. Nenhuma das outras razões habituais que levam as pessoas a querer grandes features fazia sentido para mim. Porque eu não tinha dinheiro de marketing por trás. Se metesse uma Ariana Grande no meu álbum, não teria o dinheiro para promover isso.
Acabava por não compensar.
Exacto, porque no mundo de hoje, no teu primeiro álbum, ias acabar a ter de justificar como conseguiste aquilo, justificar porque é que mereces, justificar que não pagaste um milhão de dólares por isso. E este mundo está estranho agora — odeiam tudo o que parece marketing. Estão a fazer isso à Doechii, ao Tommy Richman, a montes de artistas que estão a crescer e a acusá-los de serem industry plants. E é estranho, porque essas pessoas esquecem-se de que conhecem muitos dos artistas favoritos deles porque as editoras se importaram. Mas pronto, estamos a passar por essa fase, especialmente com o TikTok. Às vezes um artista sai do nada para o estrelato e, como nunca o ouviram antes, as pessoas ficam desconfiadas porque parece estranho ver o mundo a celebrar alguém de quem nunca tinham ouvido falar. Toda a gente se acha o melhor curador do mundo.
Planeias focar-te mais na tua carreira a solo a partir agora? Já mencionaste o segundo álbum e os que se seguem, por isso imagino que sim. Mas vais continuar a compor e a produzir muito para outros artistas também?
Ambas as coisas. Se o Pharrell conseguiu, eu também consigo. É algo de que gosto muito, por isso nunca vou parar. Vou sempre compor — se for para mim, é para mim; se for para outra pessoa, é para outra pessoa. E quero começar a fazer mais direcção artística e executiva, menos só fazer singles ou três músicas num álbum. Quero tentar fazer discos completos. Porque com a experiência que ganhei ao fazer o meu, acho que agora consigo entregar esse tipo de qualidade a outros. Para ser honesto, antes queria fazer isso, mas não tinha as competências para tal. Acho que agora, depois de ter completado e entregue um projecto meu que produzi e dirigi, posso levar isso para outros artistas. Estou entusiasmado para ver o que posso fazer com alguém completamente diferente de mim — pegar na minha ideia da pessoa, na minha ideia da produção e da escrita, e tentar fazer um disco completo à volta dessa pessoa. Mas isso vai sempre depender da urgência. Se encontrar um artista amanhã que queira que eu faça o disco dele, se calhar dedico quatro, cinco meses a isso sem problema. Mas se isso acontecer no início do próximo ano, se calhar nessa altura já estou focado no meu segundo álbum. Por isso, depende do momento, da prioridade. Estou aberto a tudo e vou sempre fazer tudo. Nós hoje falámos sobretudo do lado da música, mas eu também sou designer. Faço mobiliário e já fiz projetos de design de espaços para empresas. E mal posso esperar para quando surgir o tempo para voltar a dedicar-me a esses projetos.
É algo que também queres continuar a explorar?
Para sempre. Isso é uma das coisas que quero continuar a fazer. Quero eventualmente começar a fazer roupa. Tenho designs em que já ando a trabalhar há algum tempo e mal posso esperar para que isso se torne acessível. Porque claro que, como artista, posso fazer merch, mas quero fazer mais do que merch. E isso vai exigir tempo, dedicação e um processo criativo bem pensado. E só há um tanto que se pode fazer num ano. Mas estou entusiasmado para ver estas ideias todas a ganhar forma. Mas para responder à tua pergunta: sim — vou continuar a fazer tudo o que a minha cabeça me permitir, porque trabalhei muito para ter esse privilégio. E são todas coisas que eu adoro.
Certo. E tens géneros específicos ou artistas com quem gostavas mesmo de trabalhar? Há coisas na tua lista de sonhos enquanto songwriter? Ou já não pensas nisso assim?
Há uns anos escrevia as minhas listas de artistas de sonho. E felizmente já trabalhei com vários deles. Agora opero mais no registo de: quando aparecer a coisa certa. E tento funcionar mais em função da procura. Lancei um disco que considero bom, e quem o ouvir e sentir vontade de trabalhar comigo — esses são os que vou aceitar. Mas adorava escrever para a Beyoncé. E também adorava escrever para um artista novo, cheio de talento, que possa precisar da minha ajuda. Hoje sou mais porta aberta e menos franco-atirador. Estou a trabalhar em alguns projectos — estou a fazer o álbum da minha companheira, que está quase pronto. É um disco muito neo soul, inspirado no hip hop de Nova Iorque do início dos anos 2000, muito diferente do meu. E estou a produzi-lo. Estou entusiasmado por ajudá-la a lançar isso. E depois estou a ajudar outro amigo a fazer um disco mais Y2K, Pharrell, Timbaland style. Estou sempre em sessões. Por isso não há nada gigante no horizonte, e não espero que haja. Estou sempre à espera da coisa certa. E se for a energia certa, faço. Uma coisa que quero muito experimentar é trabalhar em filmes e séries. Quero ver se consigo operar também no espaço das soundtracks e composição para cinema. Vou tentar plantar algumas sementes por aí e ver o que dá. Mas o meu coração está aberto.
E estás sempre a criar e a armazenar sons que podem ir parar a diferentes projectos, sejam teus ou de outros, imagino.
Exactamente, o meu catálogo está sempre centenas de músicas à frente. Quando consegui as minhas primeiras músicas grandes, foram três ou quatro em 150 ideias que tinha feito. Ou seja, ficaram logo imensas dezenas de ideias para trás. E quando consegui uma ideia para o Travis Scott, já tinha feito 30 ideias para ele. Agora tenho 29 dessas que podem ir para outros sítios. Por isso, vou estar sempre a produzir. Porque quem quer trabalhar nisto tem de saber: tens de atirar muito para acertar algumas. E, quando acertas, já és mais talentoso, melhor no que fazes e tens muito material de sobra. Porque é assim que isto funciona. Tens de fazer dez para acertar uma. E ficas com nove balas no carregador. É assim que sempre funcionou comigo.