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Publicado a: 15/12/2015

N.W.A.: o grupo mais perigoso do mundo

Publicado a: 15/12/2015

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

 

Para se perceber um pouco melhor o tremendo impacto dos norte-americanos Niggaz wit’ Attitude, mais conhecidos pelas iniciais N.W.A., imagine-se a seguinte história: no Portugal da segunda metade dos anos 80, quando Cavaco Silva chefiava o décimo primeiro Governo Constitucional, aparecia um grupo com um nome como Pretos Com a Mania (ou P.C.M.), oriundo da Cova da Moura, cujo primeiro single levaria o título de “Zona de Pânico” e em que se cantariam frases como “chama-se zona de pânico / isso mesmo, zona de pânico / algumas pessoas chamam-lhe tortura / mas para nós é a realidade dura”. Os P.C.M. haveriam depois de lançar uma música com o título “Que se f*da a Polícia”, venderiam muitos discos, teriam concertos vigiados de perto pelas forças da autoridade, seriam presos sem razão aparente e tornar-se-iam motivo de discussão alargada nos media. Já no presente, um dos membros originais dos P.C.M. tornar-se-ia um popular actor de filmes de comédia, provavelmente com um papel em Pátio das Cantigas, enquanto o outro, que tinha começado por ser DJ, seria para aí administrador da EDP ou da Galp. Dessa história resultaria depois um filme, Acabados de Sair da Cova da Moura, que durante semanas seria o filme mais visto em Portugal.

Esta história fictícia pode parecer rebuscada e inverosímil e a sua conclusão soar absurda, mas na verdade só peca por ser uma pálida comparação com factos bem reais que aconteceram em Los Angeles e, de certa maneira, mudaram o resto do mundo. Straight Outta Compton é o filme que relata esses factos – ou pelo menos alguns deles – e que transformou a história dos N.W.A. num fenómeno de bilheteira contra as mais optimistas perspectivas: o filme orçamentado em “modestos” 29 milhões de dólares (cerca de 11 milhões menos do que 8 Mile, só para se ter uma ideia) ultrapassou os 60 milhões em receitas no primeiro fim de semana em que garantiu exibição em quase 2 mil e 800 salas nos Estados Unidos, tornando-se na quarta melhor performance comercial de um filme estreado em agosto de sempre. Estes dados são importantes, até para se perceber que mesmo quase 25 anos após o seu desaparecimento, os N.W.A. continuam a agitar a América e a tocar num nervo qualquer de uma sociedade ainda não resolvida, com a administração Obama a chegar ao fim de dois históricos mandatos, tensão racial crescente nas ruas e vozes controversas como a de Donald Trump a ameaçarem levar o próximo governo para terrenos ainda mais pantanosos do que aqueles da era Reagan/Bush que o grupo de Compton foi obrigado a navegar entre 1986 e 1991.

 


 

 


 

[OU BANDIDO OU VÍTIMA]

Num recente artigo da Rolling Stone em que Dr. Dre confessou que não precisa de trabalhar nem mais um minuto até ao resto da sua vida, muito graças ao bilionário negócio de venda da sua marca Beats ao gigante Apple, pintava-se o cenário da zona South Central de Los Angeles, onde se situa Compton, para reforçar a noção da distância percorrida desde então por aquele que é hoje um dos homens mais fortes da indústria musical: “Em Compton e South central, nos anos 1980, era mais fácil encontrar uma AK47 do que um emprego e o tráfico de crack, os gangues e a polícia – sob o comando militaristico do chefe do Departamento de Polícia de Los Angeles Daryl F. Gates – estavam todos fora de controlo”. “Era preciso ver porque fazíamos aquela música”, explicou Ice Cube a Brian Hiatt, o jornalista que assina a peça da Rolling Stone, “Sabe, não era apenas por sermos pretos jovens e revoltados de South Central, mas porque fizemos aqueles discos? Vivíamos no meio do tráfico de droga, dos gangues, da brutalidade policial, da porcaria da Reaganomics e não havia por onde escapar”.

É sintomático que na pré-história dos N.W.A. se cruzem os grupos World Class Wreckin Cru, de Dr. Dre e DJ Yella, e os C.I.A. (Cru In Action) de Ice Cube. Referências à capacidade de demolição e a uma notória agência de segurança atestam bem o universo conceptual em que se moviam estes jovens adultos e adolescentes em 1985 – Dre tinha 20 anos e Cube uns meros 16 quando se cruzaram pela primeira vez numa das festas organizadas por Alonzo Williams, promotor que se movia no circuito de clubes de Los Angeles e que foi determinante no primeiro contrato discográfico que tanto o grupo de Dre como o de Cube haveriam de assinar com a CBS.

Foi por volta desta altura que Eric “Eazy-E” Lynn Wright, pequeno traficante de Compton, conheceu Dr. Dre. Insatisfeito com a direcção musical da sua World Class Wreckin Cru, que Alonzo Williams orientava para terrenos mais próximos do R&B à época praticado por grupos como os New Edition de Bobby Brown, e após ficar a dever a Eazy E o favor de o ter libertado da cadeia pagando uma caução devida por acumulação de multas de estacionamento, Dr. Dre aceitou trabalhar para a novíssima Ruthless Records. Tratava-se de um selo discográfico criado por Eazy-E e por Jerry Heller, um manager com sentido aguçado de negócio que percebeu muito rapidamente que as movimentações de pequenos empreendedores junto da fábrica de vinil Macola, situada em Santa Monica Boulevard, poderiam tornar-se em algo muito maior: “Fui lá e descobri que eles imprimiam discos, mas de gente como Ice-T, MC Hammer, JJ Fad, Bobby Jimmy and the Critters e um pequeno grupo chamado World Class Wreckin Cru e os amigos deles, os C.I.A.”, recordou Heller em declarações ao NME em 2006. “Pensei que o que estava a acontecer na Macola era o mesmo que se tinha passado com o rock and roll em 64 ou 65”.

 


 

 


“Panic Zone” foi o primeiro single com carimbo da Ruthless, mas editado ainda sob acordo com a Macola Records, em 1987. Na capa, o colectivo N.W.A. assumia as origens listando todos os projectos associados: “Easy E from the Boyz ‘n’ The Hood, Dr. Dre from the World Class Wreckin Cru, Arabian Prince from Bobby Jimmy and the Critters, Ice Cube from C.I.A.”. A estreia com “Panic Zone” foi auspiciosa e o filme Straight Outta Compton documenta bem esse momento inicial da carreira do colectivo, com as idas à fábrica para levantamento de stock que era sempre pago em dinheiro vivo, certamente angariado através da carreira paralela de Eazy-E como traficante.  Em Ruthless: A Memoir, livro de Jerry Heller publicado em 2006, o manager explica que os negócios ilícitos do seu sócio eram, para quem vivia em Compton, uma ferramenta de sobrevivência: “Ninguém sobrevivia nas ruas sem uma máscara protectora. Ninguém sobrevivia nu. Tinhas que ter um papel. Tinhas que ser “durão”, “engatatão”, “atleta”, “bandido” ou “traficante”. Caso contrário só te sobrava um papel: “vítima””.

 

[FUGIR DE COMPTON]

A Rolling Stone enumera as razões que fizeram de Straight Outta Compton um álbum histórico: o facto de “ter antecipado a chegada do domínio do gangssta rap”;  a criação, com Eazy-E “do arquétipo do dealer-de-droga-tornado-rapper, uma capa que muitos já vestiram desde então, de Jay-Z a Migos”; “a preparação do caminho para The Chronic, Snoop Dogg e Tupac Shakur”; o facto de ter inspirado “filmes como Boyz n the Hood e de ter chegado a milhões de miúdos brancos dos subúrbios sem compromissos”.

Em 2005, Bakari Kitwana defendia no seu livro Why White Kids Love hip Hop (ed. Basic Civitas Books, Nova Iorque, 2006) que “a verdadeira história da América pós-1970 é a história do abandono da juventude” e argumentava que o hip hop se tinha imposto como um corpo moral alternativo à educação formal oferecida pelas escolas: “acredito que o hip hop tem oferecido uma resposta ao irresponsável abandono dos jovens neste país”. O discurso de Kitwana era um discurso de optimismo, que defendia o hip hop como uma alavanca de transformação social, capaz de equipar futuras gerações de polícias brancos com uma maior sensibilidade às questões raciais que tanto têm abalado a América. Ice Cube, na já citada peça recente da Rolling Stone, afirma que o mítico “Fuck Tha Police”, tema em que canta “so the police think /they have the authority / to kill a minority”, foi escrito com 400 anos de atraso: “Todos os anos havia mil Rodney Kings de que não ouvíamos falar e só agora com as novas tecnologias é que temos podido testemunhar estas bolsas de porcaria com que os pobres têm tido que lidar desde sempre – e é isso que torna o nosso filme relevante hoje em dia”.

 


 

 


Jeff Chang, nas páginas de Can’t Stop, Won’t Stop (St. Martin’s Press, Nova Iorque, 2005), refere que “Straight Outta Compton atingiu a cultura popular americana com a mesma força com que Never Mind The Bollocks dos Sex Pistols atingiu o Reino Unido onze anos antes”. O álbum abria com três incríveis rajadas – “Straight Outta Compton” funcionava como cartão de apresentação, “Fuck Tha Police” explicava ao que vinham e Gangsta Gangsta” traçava os contornos da sua realidade. O álbum contava com uma produção ainda incipiente, mas eficaz de Dr. Dre, com os scratches de DJ Yella e com as rimas de Eazy-E, Ice Cube e MC Ren, entretanto recrutado para o grupo. O impacto foi imediato e brutal. No Melody Maker alertava-se: “roubem uma cópia se tiver que ser”. A comparação de Chang aos Pistols é certeira e de certa maneira Ice Cube vai ao encontro dessa ideia num vídeo recentemente produzido pela Billboard e que resultou de uma entrevista aos N.W.A. conduzida por Kendrick Lamar. Nessa entrevista, Cube garante que “os N.W.A. não mudaram apenas a música, mas mudaram toda a cultura pop a um nível global” e explica que a partir de Straight Outta Compton os artistas puderam apresentar-se sem máscaras, “sem se preocuparem em serem limpinhos”.  Como a banda de Johnny Rotten no Reino Unido, os N.W.A. na América apontaram o caminho a toda uma geração que soube aí que poderia ter uma existência artística sem ter que cantar sobre fantasias inócuas para garantir uma carreira. “Depois de Straight Outta Compton”, sublinha Jeff Chang, “passou a ser realmente sobre de onde se vinha. Os N.W.A. combinaram mito e lugar e fizeram as narrativas enraizarem-se na esquina de cada bairro. E a partir daí cada bairro podia ser Compton e todos tinham uma história para contar”.

 


 

 


Apesar da origem e apesar da temática de algumas letras, os N.W.A. não se apresentavam como gangsters e preferiam descrever a sua arte como “reality rap“. Esse ponto é sublinhado no filme que lhes conta a história com Cube a explicar que é como um jornalista e apenas se limita a reportar o que vê ecoando assim a ideia de Chuck D dos Public Enemy que mais ou menos na mesma época declarou que “o rap é a CNN do gueto”.  Tendo em conta os fenómenos comerciais em que Dr. Dre se viria a envolver – de Snoop Dogg a Eminem passando por 50 Cent – a performance de vendas do álbum de estreia dos N.W.A. não foi a mais extraordinária: chegou ao número 37 da tabela de Lps da Billboard e demoraria quatro anos a atingir a muito respeitável marca de dupla platina acumulando vendas de cerca de 3 milhões de cópias. A verdade é que foi um disco transformativo de opiniões e atitudes e abriu ao hip hop as portas da realidade. Sinéad O’Connor descreveu-o como o melhor álbum de rap que tinha ouvido, para dar apenas um exemplo extremo e deslocado – geográfica, cultural e esteticamente.

Os estilhaços da atitude confrontacional dos N.W.A. também atingiram o próprio grupo, como não poderia deixar de ser: foram um dos primeiros alvos do notório autocolante “Parental Advisory Explicit Content” criado pela Recording Industry Association of America após pressão do lobby Parents Music Resource Center. O grafismo desse autocolante foi aliás apropriado de forma brilhante pelo marketing do filme Straight Outta Compton, disponibilizando uma aplicação online que permitiu a toda a gente criar a sua própria versão gerando coisas como “Straight Outta Bairro Alto” ou até, voltando a pegar na ficção que abre este texto, “Straight Outta Cova da Moura”, forma engenhosa de fazer um planeta inteiro sentir-se como parte de um bairro muito específico. Os mais notórios estilhaços que atingiram os N.W.A. como consequência do impacto do álbum de estreia e, sobretudo, de “Fuck Tha Police” foram, no entanto, disparados pelo FBI que através do punho de Milt Ahlerich, um dos directores adjuntos da agência federal de segurança, dirigiu uma carta ao grupo incentivando-o a não interpretar esse tema em concertos por acreditar que era um atentado contra as forças da autoridade. Os N.W.A. desafiaram directamente a “sugestão” do F.B.I., facto que à época lhes valeu o epíteto de “grupo mais perigoso do mundo”, um pesado legado que a biopic recentemente estreada não se coíbe de explorar com eficaz efeito dramático.


 

 


Como é claro, e esse facto tornou-se evidente nas semanas que se seguiram ao lançamento do filme, Straight Outta Compton é também uma oportunidade de reescrever a história. No filme dirigido por F. Gary Gray, o lado mais violento do grupo é justificado como o resultado da pressão sofrida às mãos das autoridades e os N.W.A. são apresentados como paladinos da liberdade de expressão. E de facto, as liberdades comuns são testadas levando ideias extremas para o centro do debate, coisa que os N.W.A. fizeram com pompa e justificada circunstância. Mas com produção assegurada sobretudo por Dr. Dre e Ice Cube, claro que houve aspectos que foram deixados de fora do argumento, nomeadamente questões relacionadas com violência contra mulheres no caso de Dre ou algum anti-semitismo no caso de Cube. Dee Barnes, uma jornalista que Dre alegadamente espancou, juntou a sua voz à de Michel’le (que chegou a ser namorada do produtor) e de Tairrie B, duas artistas que também garantem ter sido alvo da fúria do autor de The Chronic, para alertar para o facto da história do filme ser altamente parcial. Essa denúncia levou a um comunicado de Dr. Dre, que através do New York Times assumiu pecados passados e endereçou um pedido de desculpas ao mundo: “Há 25 anos eu era um jovem que bebia demasiado e com demasiadas coisas na cabeça, sem uma estrutura real na minha vida. No entanto, nada disto serve de desculpa para o que fiz. Sou casado há 19 anos e todos os dias trabalho para ser um melhor homem para a minha família, tendo procurado quem me guiasse ao longo da vida. Faço tudo o que posso para nunca mais me parecer com esse homem”, garantiu Dre. “Peço desculpas às mulheres que magoei. Lamento profundamente o que fiz e sei que isso marcou para sempre todas as nossas vidas”. A Apple também se pronunciou sobre este caso, protegendo dessa forma o investimento na Beats que obrigou a corporação a despender três mil milhões de dólares: “Dre pediu desculpa pelos erros que cometeu no passado e disse que não é a mesma pessoa que era há 25 anos. Acreditamos na sua sinceridade e após trabalharmos com ele já há um ano e meio temos todos os motivos para acreditar na sua mudança”. Ver uma corporação gigante a colocar-se do lado de um hip hopper garantindo acreditar na sua palavra e na sua humanidade mostra bem o longo caminho que o hip hop percorreu nos Estados Unidos e a sua capacidade transformadora de uma sociedade que, como se percebe por tudo o que tem acontecido, nas ruas e nos tribunais, ainda tem um longo caminho pela frente.

 

[DEPOIS DA TEMPESTADE]

Para um jovem negro de Compton, o hip hop era um prisma multi-facetado: forma de arte e de expressão, claro, mas também um eficaz hood pass que lhe permitiria circular relativamente incólume entre gangues e tráfico, e, mais importante até, um passaporte financeiro para uma realidade paralela e de outra forma inalcançável. Ice Cube tinha perfeita noção disso e não se sentindo devidamente recompensado pelo seu investimento criativo em Straight Outta Compton decidiu abandonar o grupo ainda em 1989 para se lançar numa fulgurante carreira a solo cujo primeiro momento é hoje um título clássico da West Coast, AmeriKKKa’s Most Wanted, de 1990, certamente uma inspiração para o PortuKKKal de General D!

Cube, como relatado no filme, não usou o seu disco – que recorreu à Bomb Squad, entidade de produção dos Public Enemy, para garantir peso e medida nos seus beats – para enviar recados aos seus antigos companheiros de banda, mas o mesmo não aconteceu do lado dos N.W.A. que não respeitaram as tréguas e incluiram um diss a Cube no EP 100 Miles and Runnin’ que saiu no verão de 1990. Efil4Zaggin, o álbum final dos N.W.A. lançado em 1991 (e cujo título era simplesmente Niggaz 4 Life ao contrário) voltou a atacar Cube directamente no tema “Real Niggaz” onde se questionava a “autenticidade” do rapper dissidente. A resposta não se fez esperar: em Death Certificate, Cube assumia ser o “Wrong Nigga To Fuck With” e dedicou um hoje clássico “No Vaseline” a um mordaz contra-ataque.

 


 

 


Este é um período algo conturbado na vida dos N.W.A. e do próprio Ice Cube que representa também a entrada do hip hop na sua era divisiva, traduzida na rivalidade entre as costas oeste e este que haveria de conduzir à morte de Tupac Shakur e de Biggie Smalls, em 1996 e 1997, respectivamente. Em Straight Outta Compton a entrada nessa fase negra é retratada na ascensão daquele que é visto como um dos mais perigosos e dúbios personagens do universo hip hop, o empresário Suge Knight que recrutou Dr. Dre para a criação da imponente Death Row, logo em 1991.  Knight está actualmente encarcerado e a aguardar julgamento após ter sido formalmente acusado de responsabilidade na morte de Terry Carter, fundador da Heavyweight Records, bem como de sérios ferimentos de Cle Sloan, cineasta, no set em que decorriam filmagens para Straight Outta Compton, nem mais.

De certa maneira, depois da cena em que Dr. Dre se liberta do “jugo” de Knight e comunica que pretende impor-se sozinho com uma nova aventura empresarial chamada Aftermath (com que revelou ao mundo Eminem ou 50 Cent), Straight Outta Compton abre caminho a possíveis sequelas, uma ideia a que certamente os estúdios hão-de estar permeáveis tais os resultados comerciais obtidos pelo filme. Lendo na diagonal o que se escreveu sobre a obra de F. Gary Gray é impossível não identificar uma certa surpresa que parece dominar as reacções ao seu sucesso. Há, certamente, uma conjugação de múltiplos factores que contribuíram para isso: a articulação inteligente com o regresso de Dr. Dre aos discos com Compton: A Soundtrack, o lançamento recente da Apple Music e o papel da Beats no meio disso que consagrou o produtor como uma das figuras mais influentes da actual indústria musical – e toda a gente na América sabe reconhecer o valor de um self made man – e, no reverso da moeda, o clima sócio-político num país a braços com uma possível viragem à direita, obrigado a lidar uma vez mais com questões de violência racial, a meio de um intenso debate com o seu próprio tecido racial (Ferguson, a discussão em torno da bandeira confederada, os problemas levantados pelas estatísticas de encarceramentos num país em que até o sistema prisional foi privatizado, etc, etc.). Tudo junto contribui para que Straight Outta Compton surja num momento-chave. Mas não menos verdade é a lição que o próprio hip hop parece querer ensinar a Hollywood: no arranque dos anos 70, Shaft sozinho salvou a MGM da falência e impôs no grande ecrã um novo tipo de herói – negro, com um afro orgulhoso, com uma poderosa carga sexual e mais funky do que um tema de James Brown num baile de bairro. Agora, talvez a figura do rapper se possa impor como um novo tipo de anti-herói talhado à medida dos conturbados tempos presentes. Os N.W.A. escancararam portas quando surgiram na cena em 1987. Quase três décadas depois, voltam a repetir a façanha.

 

*Texto originalmente publicado na edição 112 da Blitz.

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