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Fotografia: Indi Nunez
Publicado a: 28/11/2024

Papo reto.

Mynda Guevara: “Eu sei que um dia vamos ter a comitiva toda junta no Coliseu”

Fotografia: Indi Nunez
Publicado a: 28/11/2024

“Mudjer na Rap” foi o mote e manifesto de intenções com que Mynda Guevara se apresentou ao mundo no ano de 2014. Na bagagem, trazia as primeiras experiências no estúdio da Cova da Moura, onde gravou os primeiros refrões, ao lado de companheiros como Ridel, Saliu ou Dany G. Mas aquele era o seu tempo, o seu momento, o seu lugar de fala. Mynda apresentava-se como artista em nome próprio com a determinação de quem se sentia destinada a realizar todos os seus sonhos. 

É certo que o caminho nunca seria fácil para uma mulher negra e a cantar em criolo, num género de música híper-masculinizado e numa sociedade estruturalmente classista e racista. Nada disso a desmotivou. O sonho era seu, antes como agora, e cedo desbravou os trilhos por onde construiu um percurso artístico de mais de dez anos. Passo a passo, Mynda Guevara tornou-se um nome incontornável do rap feito em Portugal, dona de uma das canetas mais afiadas do game, nunca se deixando vencer pelas dificuldades que enfrentou. Sempre consciente da sociedade em que vive, a rapper nunca limitou a liberdade com que canta e se posiciona. São, portanto, do seu inteiro mérito cada uma das conquistas, erguidas com o suor de muito trabalho, num percurso de independência a todos os títulos notável. 

Toda essa história ecoa em Phoenix, o seu novo EP, onde retrata um momento de renascimento das cinzas, depois de tempos bem mais sombrios, onde chegou a duvidar se um dia voltaria. Felizmente voltou, regenerada e soberana, para continuar uma jornada onde a sua intensidade expressiva se combina com dons de storytelling narrativo e autobiográfico, e em que a centralidade da palavra se deixa contaminar por explorações sonoras que antecipam voos futuros. A atenção ao texto continua a ser crucial, já que por aqui nunca se rimou à base de fogos-de-artificio ou de distrações. Mas neste trabalho, o investimento numa lírica dura e direta é ainda mais potenciado por batidas de frequências graves e baixos pujantes, revelando que Mynda rima em português com a mesma destreza com que o faz em crioulo. E por falar em palavras, Phoenix está carregado de recados especialmente dirigidos a quem tantos obstáculos colocou no seu caminho. 

Papo reto, sem rodeios. Sempre foi esse o seu posicionamento, que o digam os artistas que interpelou quando, perante o assassinato de Odair Moniz, preferiam a gestão cobarde do silêncio em vez de se posicionarem junto com as comunidades que, aparentemente, só parecem servir para ornamentar videoclipes, vender bilhetes ou encher salas. Sem medo de equívocos, eis Mynda Guevara em discurso direto numa grande entrevista onde, a pretexto da edição do novo EP, percorremos os seus dez anos de carreira e antecipámos o que pode estar ao virar na esquina. Se um dia a virem com a comitiva toda no Coliseu, não digam que ela não avisou.



Queria começar com uma das últimas linhas de “Fénix”, a última música do teu novo EP: “É fodido ter luz própria / E não me a poderes tirar / Mais de dez anos nesta merda / Eu mereço o meu lugar”. De facto, este EP assinala mais de uma década de percurso no rap…

É muito caminho mesmo.

Olhando um pouco para trás, como é que começa a tua história como rapper?

Desde pequena que sempre gostei de cantar, mas nunca tive a perspetiva de tentar perceber como é que a minha voz soava. Cantava em família, entre amigos, mas houve uma vez em que o meu irmão me ouviu e me perguntou se eu já tinha ouvido a minha voz a cantar. Eu disse-lhe que não e ele pediu para cantar uma música e gravou para eu ouvir. Cantei a música, ele gravou no telefone e foi uma surpresa ouvir que cantava assim [risos]. Acho que foi aí que começou a nascer o meu bichinho pela música. Eu já gostava muito de cantar e, em qualquer música que ouvisse, fazia back vocals, harmonias, sempre tive esse tipo de brincadeiras nas músicas.

Mas, entretanto, deixou de ser apenas uma brincadeira e começaste mesmo a gravar em estúdio. Como é que se dá esse passo?

O meu irmão era grande amigo de um dos mentores do estúdio do Moinho da Juventude.

O LBC?

O LBC, exatamente. Encontrei-me com ele e perguntei-lhe se o estúdio da Cova ainda funcionava. Ele disse que sim e eu disse-lhe que um dia aparecia lá. Só que fiquei naquela, no “vai-não-vai”, mas com aquela ansiedade… Na escola, já só pensava no estúdio [risos]. Um tempo depois ele insistiu para eu aparecer lá. Falei com a minha mãe e comecei a frequentar o estúdio. Estava tão emocionada com o estúdio que, entretanto, comecei a desleixar um bocado a escola.

Isso foi um problema?

[Risos] A minha mãe não estava a gostar. Então, dei uma pausa no estúdio — ia lá, mas só às escondidas [risos] — e recuperei rapidamente os estudos. Como passei o ano sem negativas, voltei ao estúdio novamente. Ia para lá, ouvia os rapazes a gravar e via como é que eles construíam as rimas. O LBC também me ensinou a fazer essa parte. Eu sempre gostei muito de escrever, então foi juntar o útil ao agradável e comecei a criar as minhas próprias letras.

Lembras-te de quem costumava estar no estúdio nessa altura?

O Ridel, o LBC, o Thugz, os falecidos Dany G e Saliu. E o Machine e o Katana, que eram produtores que trabalhavam connosco.

Mas quando começaste, só fazias refrões.

Sim. Fiz nessa altura a dupla com o Ridel…

Ainda podemos ouvir a “Objetivos” no Youtube. 

Exato. Só que, entretanto, ele emigrou e eu percebi que não podia parar porque estava a gostar do que estava a fazer. Então, comecei a minha carreira a solo, sempre sozinha a tratar das minhas cenas todas. Sempre fui a minha boss e nunca tive uma pessoa que fosse a minha manager ou que fosse o meu agente.

Na tua família, a música estava muito presente no quotidiano?

Sim, sempre ouvimos muita música, especialmente aos fins de semana e nas épocas festivas. Sempre tivemos essa cultura de estar a ouvir música. Este amor que eu tenho pelo rap surgiu porque sempre lidei mais com o meu irmão mais velho. Ele já consumia muito rap na altura e esse bichinho começou a nascer por causa dele. A minha irmã já ouvia muita kizomba, zouk, R&B.

Começaste a fazer esses primeiros refrões com treze anos e a lançaste “Mudjer na Rap”, a tua primeira música em nome próprio, aos dezasseis. Como começou essa paixão pela escrita? 

Sempre gostei de escrever e sempre fui uma excelente aluna de português, quer na escrita, quer na comunicação e na expressão. Acho que isso sempre foi um ponto forte para aquilo que faço na música.

E de onde partiram essas primeiras letras? De temas que querias abordar? De um instrumental que ouvias e que te inspirava?

No início, eu via muitos rapazes a procurar vídeos na Internet e a escrever em cima dos beats. Eu comecei também a fazer isso, mas depois tive uma conversa com o Katana e decidimos que o caminho era ser uma artista totalmente original, desde o instrumental até ao final do processo de criação da faixa. Estamos a falar de 2014 e, na altura, no estúdio da Cova da Moura, tivemos primeiro o Machine e depois o Katana a trabalhar connosco como produtores. Eles faziam beats e videoclipes para nós, porque eram contratados pelo Moinho da Juventude para trabalhar connosco.

E durante esse processo, em que momento é que pensaste que também podias ser rapper, que o teu futuro profissional também podia passar por aí?

Foi quando gravei a primeira música lá no estúdio com o Dany G e o Ridel.

A “Lembranças”? 

Sim. Foi aí que percebi que isto podia ser um caminho. O Ridel sempre acreditou em mim. Houve uma vez em que ele me pediu para rimar uma quadra e eu percebi que, além de conseguir cantar, também tinha uma voz expressiva e forte para rimar. Então, comecei a fazer músicas em que tanto cantava como rimava.

Foi logo óbvio que o crioulo seria a tua primeira língua de expressão enquanto rapper?

Sim. Em casa, a minha mãe sempre falou connosco em português por causa da escola. Mas, em termos de escrever rap, o crioulo nunca foi uma dúvida para mim. Eu sinto que me expresso melhor. Não que o português não tenha força, mas o crioulo tem uma outra força nas palavras. Sinto que as palavras são mais brutas e que tem a ver também com a forma como rimo. Entretanto, também fui ganhando um público e comecei a rimar também em português, porque o meu principal objetivo é que as pessoas consigam perceber aquilo que estou a dizer.

Mas só começaste a escrever em português para este EP ou foi um processo anterior?

Foi sobretudo para este EP, mas já tinha lançado a “Na Nossa Língua”, em que já rimei em português.

Como mencionaste há pouco, ao longo deste processo sempre foste tu a gerir toda a tua carreira. Como foi construir esse percurso sem managers, editoras, agentes, bookers, assessorias de comunicação, etc.? Como foi esse processo de montares progressivamente o teu próprio deal?

Não te vou dizer que foi fácil ou que foi feito de freestyle. Foi todo um processo. Mas é muito cansativo. Eu sinto que, nesta altura do campeonato, muito humildemente falando, já só me devia preocupar em ir para o estúdio gravar. Não devia estar a preocupar-me sobre como vou comunicar, fazer publicidade à minha música, negociar de datas e valores, encontrar sítios para fazer videoclipes, gerir todos os orçamentos, planear e gerir os concertos… É muita coisa que tenho de ter na cabeça.

Então, tu assumes tudo: da parte criativa à produção, booking, comunicação, estrada…

Eu faço tudo e sempre fiz tudo sozinha. Sempre fui eu a pagar as minhas coisas todas. Foi uma necessidade, não havia outra forma. Até porque eu sempre tive de trabalhar para poder sustentar a música. Foi por isso que, agora, estive um período na Holanda, a trabalhar e a juntar dinheiro para regressar e poder investir no EP. 

Lançaste a “Atximm” em início de 2022.

Exato. E depois disso só lancei o novo EP, agora em 2024. 

Olhando para os pares da tua geração, sentes que para ti o processo de profissionalização na música tem sido mais difícil? 

Eu sinto que para mim as coisas são mais difíceis e mais complexas. Não sei se é por eu cantar em crioulo, se é por ser mulher, por ser negra, por ser de um bairro social ou por não ter papas na língua. A maior parte do meu conteúdo é muito consciente e eu sinto que se houve pessoas que conseguiram singrar rápido vindo das mesmas dificuldades de onde eu venho, é porque tiveram de mudar algo na essência para que a música se pudesse transformar num produto mais facilmente vendido e comercializável. Eu não conseguiria meter ali músicas no meio só para serem mais facilmente tocadas aqui ou ali. 

Em todo o caso, e mesmo como artista independente, tiveste logo em 2016 músicas com grande alcance e dezenas de milhares de visualizações, como a “Hey Mana” ou a “Sempri Foi Assi”. Esse alcance foi importante para ganhares confiança para o que veio a seguir? Pergunto isto porque pouco tempo depois, com a “Nha Mundo” e “Ken Ki Fla”, já atinges mais de 100 mil visualizações e começas a ter mais datas e visibilidade. 

Sim, nessa altura a cena explodiu. Acho que isso também aconteceu, para já, porque eu sou uma mulher e canto rap. Como nós sempre fomos uma minoria, a forma como eu rimo, como eu canto, tem de ter essa força, tem de se destacar. Sempre defendi muito a questão das mulheres no rap e isso também foi uma das coisas que me fez destacar. Sempre disse que o meu objetivo é revolucionar o rap feito no feminino. Além de que sempre fui uma pessoa que teve os olhos abertos para a comunidade. Sempre tentei perceber o que se passa e como posso intervir. Acho que é todo esse conjunto de coisas que faz com que muitas pessoas se identifiquem comigo. Nessa altura eu já estava a trabalhar e conseguia conciliar o trabalho com a música. Consegui juntar recursos para gravar videoclipes, ir a estúdio, ter instrumentais. Trabalhava que nem uma maluca, mas estava com aquela sede… Entretanto veio a pandemia e o ritmo parou um bocado. 

Chegamos então ao ano de 2021, em que lanças “Tra Pa Fora” e “Menti Firmi”, duas músicas com registos muitos muito diferentes. Na primeira, apresentes uma atitude mais incisiva e um beat mais agressivo, e na segunda sente-se que há uma transformação da dor para um registo mais luminoso e esperançoso, inclusivamente no vídeo. O que representam para ti essas duas músicas? 

Quando escrevi o “Tra Pa Fora”, eu estava com depressão e foi uma altura em que eu não conseguia sentir nada. Eu nem sabia se existia, percebes? Parecia que estava só a respirar. Passei por isso na altura da pandemia e houve um momento em que senti que tinha de deitar tudo isso cá para fora. Comecei a escrever, fui ao estúdio gravar e fiz o videoclipe da música. Passados alguns meses, a situação começou a mudar. Já me sentia melhor e percebi que, para ficar bem, o poder estava todo na minha cabeça. Por isso, já não queria rimar novamente numa vibe revoltada, depressiva, em que só queria rebentar com tudo. Em vez disso, procurei outro registo, uma vibe diferente. Percebi que existem inúmeras pessoas a passar pelo mesmo que eu e decidi transformar a dor em algo bonito. E foi assim que nasceu a “Menti Firmi”.

Sentes que esse período te moldou muito para o que és hoje artisticamente? Há um “antes” e “depois” dessa fase?

Sem dúvida alguma. Há uma linha que separa aquilo que eu era daquilo que sou hoje em dia. Quando eu me curei, senti-me uma outra pessoa.

Houve uma metamorfose?

Exatamente. Senti-me outra pessoa, embora não tenha vindo tudo de uma vez, foi aos poucos. Mas sinto que há uma grande diferença entre a Mynda de “antigamente”, e a de hoje.

É por isso que este novo EP se chama Phoenix?

Exatamente.

Escutando as músicas do EP, continuamos a sentir uma Mynda em que a palavra está sempre no comando. Mas, ao mesmo tempo, há aqui registos e explorações sonoras novas. Sentes que este projeto é o fechar de um ciclo em relação ao teu trabalho anterior ou é já a abertura de um novo ciclo e de uma nova fase no teu processo artístico?

O EP é a abertura de um novo ciclo, porque a fénix é o renascer das cinzas. Se eu renasci, tenho de vir com algo novo, não posso seguir o mesmo caminho. No EP, quis explorar ideias novas que já tinha há mais tempo, mas que ainda não sentia que fosse a hora certa para as explorar. A ideia foi experimentar coisas que já queria fazer antes, mas com os olhos da Mynda de hoje.

Como referiste antes, uma das particularidades deste EP é o facto de rimares em português. O que motivou essa decisão e o que achas que mudou na tua escrita e na forma de te expressares?

Para ser sincera, comecei a escrever em português naturalmente. Comecei a escrever e, quando dei conta, tinha o EP todo em português. A “Fazi Ku Bo” tem partes em crioulo, mas o EP é maioritariamente em português. E porque não? O público cabo-verdiano já me conhece, porque não mudar a rota, mantendo a minha essência?

Descobriste algo novo na tua escrita?

Eu gosto de me ouvir cantar em português e em crioulo, mas em crioulo a minha voz fica mais agressiva. No português, gosto de ouvir porque tem aquele travozinho de brutalidade, mas de uma forma mais subtil. A forma de dizer as coisas em crioulo é mais forte, mas não tive dificuldade nenhuma para escrever em português e gostei do resultado.

Uma outra característica do EP é o estilo confrontacional que está presente quase de início ao fim. Parece que estás sempre a dirigir-te a alguém, mas imagino que não estejas a pensar numa pessoa em específico. Quem é esta entidade a quem te diriges, por exemplo, na frase que abriu esta entrevista, em que confrontas alguém com a impossibilidade de te tirar a luz?

É uma entidade, sim, mas também são várias pessoas que falharam gravemente comigo. A música “Ship” é mesmo direcionada para essas pessoas. Elas sabem que me fizeram muito mal, mesmo a nível artístico. Estive parte do tempo parada por consequência das atitudes delas. Essas entidades para quem eu falo são pessoas que sempre duvidaram que eu conseguisse fazer as coisas acontecer, mesmo estando sozinha. São pessoas que estão mais lançadas que eu, que sabem quem eu sou, mas que fingem que não me vêem. É um conjunto grande de pessoas e fatores que depois molda essa entidade.

Não dando demasiado poder a essas pessoas, cantas em “Sonho é Meu” que ainda queres ver “a comitiva toda junta no Coliseu”. Mesmo com as dificuldades que tens sentido, esse é um sonho que permanece vivo?

Sim. É um sonho que tenho e sinto que é possível. Nessa música, estou a manifestar aquilo que eu quero, porque sei que um dia isso vai acontecer. Sei que um dia vamos ter a comitiva junta no Coliseu. Nesta indústria, às vezes, quem vinga não é quem tem mais mérito e consistência, porque o mercado musical é muito ingrato e funciona muito por cunhas e connects. Olha o exemplo do Phoenix RDC. É um artista que adoro, que admiro imenso. Porque é que demorou tanto tempo a explodir? É quando ficarmos idosos que nos vão dar o reconhecimento?

A “Ship” é produzida pelo FRXH, que assina outros dos temas do EP e com quem já colaboras há algum tempo. Sentes que é um produtor que entende bem o teu sentido estético?

Sim e já colaboramos há uns bons anos. Ele é da Portela e é uma pessoa de quem gosto muito. É muito humilde, trabalha muito bem e o que lhe explicas como ideia, ela consegue logo transpor para a música. Nem precisamos de falar muito. É um produtor que, para mim, deveria ter muito mais reconhecimento. 

Também foi ele que produziu a “V”, um tema de atitude feminista, empoderada, e que é também uma reflexão sobre o lugar que as mulheres ocupam não só na sociedade, mas também no rap e na música em geral. Quando olhas em retrospetiva para o teu percurso destes últimos destes anos, sentes que houve alguma mudança a esse nível ou que os problemas estruturais permanecem? 

No panorama artístico, eu acho que, em termos de oportunidades, está tudo basicamente igual. É por isso que parto do princípio de que somos nós que temos de criar as nossas oportunidades. Às vezes podem ser os outros, mas, maioritariamente, temos de ser nós. Em relação ao facto de ainda sermos uma minoria e à falta de oportunidades para as mulheres, está praticamente tudo igual.

Cantas também nesta música: “Herdei a força da Dona Maria / Se ela cantasse era o que faria / Dedo na ferida sem paninhos quentes / Porque o papo é reto frequentemente.” Pensando nesta música e no teu percurso, imagino que a tua mãe tenha sido um exemplo muito importante para ti.

Ela foi e é uma referência para mim, é um símbolo de força. Eu revejo-me muito nela, principalmente na força que eu desconhecia que existia em mim até passar pela depressão. Ela criou-me a mim e aos meus irmãos sozinha. Teve de trabalhar muito e eu também tive de crescer mais rápido. Todo aquele poder que ela transmite é uma inspiração para mim.

No filme Mulheres do Meu País, da Raquel Freire, onde és uma das protagonistas, dizias: “Tenho uma mente revolucionária porque vou atrás das coisas que a maioria de nós não vai e porque não tenho medo”. Para além da inspiração da tua mãe, de onde é que achas que vem essa força? 

Há uma coisa muito importante: quando fazes as coisas por amor, o teu caminho é totalmente diferente. Não estás à espera de fazer isto para receber aquilo ou para chegar ali. Quando depositas amor no que fazes, não ficas à espera. Claro que esperas resultados, mas não ficas à espera de forma faminta. Tudo é uma consequência. O segredo é fazeres com amor e por amor, e não querer pisar nem rebaixar os outros. Com o repertório que já tenho, com as músicas que já fiz, os palcos que pisei, as entrevistas que já dei, os programas de televisão onde já estive, sinto que podia estar muito mais além. Mas eu nunca quis sucesso imediato para mim, porque tanto podes estar lá em cima hoje como amanhã podes estar lá em baixo. Prefiro que o caminho seja assim, mesmo que mais longo, que demore a conseguir furar, porque sei que, quando furar, vou ficar lá o tempo que viver aqui na Terra.

Sigamos, então, para “Fazi Ku Bo”, desta vez com beat do Berlok. Como é que os vossos caminhos se cruzaram?

Conhecemo-nos num jantar, depois de atuarmos nos jardins da Gulbenkian, a convite do Dino D’Santiago. Estávamos ali todos juntos, trocámos ideias e ele mandou-me logo dois beats: “Um fazes para um projeto teu e outro para participar num projeto meu” [risos]. Eu fiquei com esse beat da “Fazi Ku Bo” para o EP, o outro ainda não gravei, mas irá sair num projeto dele.

Com esse instrumental também já navegas numa sonoridade diferente, bebendo das tuas raízes familiares cabo-verdianas.

Sim, quis ir buscar um pouco as raízes, conjugá-las com a minha escrita, a minha energia, e direcionar-me também um pouco para lá. Tenho um público PALOP cá em Portugal, mas é obviamente diferente do público de Cabo Verde ou dos cabo-verdianos que estão em França, no Luxemburgo, etc.. Gostava de tocar noutros países, nomeadamente em Cabo Verde.

E em termos de colaborações? Há novas linhas estéticas que gostarias de explorar no futuro e artistas com quem gostarias de colaborar?

Sim, acho que nada é impossível, porque a música não tem limites nem barreiras; somos nós que as criamos.

Além do Ghoya, que já disseste que seria um feat. de sonho, queres destacar alguns nomes?

O Ghoya não será difícil, porque ele é meu amigo. Mas gostava de fazer música com pessoas como o Toy Toy [T-Rex], o Phoenix RDC, o Dillaz, o Plutónio, o Slow J. São todos muito versáteis e gosto muito do trabalho deles. Acredito mesmo que nada é impossível. 

Falando em colaborações, na apresentação que tens feito deste EP ao vivo costumas estar acompanhada da Juana Na Rap e do DJ Denycox.

Sim. Convido a Juana para atuar comigo sempre que tenho tempo suficiente de concerto e que dá para cantarmos a nossa música e para ela cantar também um ou duas músicas dela. 

Vocês conectam-se muito bem em palco.

A Joana é a minha irmã. Desde a primeira vez que estivemos juntas, houve logo uma ligação. Não sei explicar, mas parecia que nos conhecíamos há muito tempo. O Denycox agora acompanha-me como DJ desde que lancei o EP. Não nos conhecíamos, mas sinto que não podia ter escolhido melhor. Ele tem uma noção de estrada e uma noção auditiva e musical muito fortes. É ele que me ajuda a preparar os concertos, a perceber se o som está bom para o público, se a minha voz está a ser projetada como deve ser.

Falando na tua voz, quando há umas semanas o Odair Moniz foi assassinado pela polícia, foste uma das artistas que reagiu de imediato e sem rodeios à situação.

Passei mal… É mais uma história que se repete.

Tu cresceste na Cova da Moura, onde outras pessoas já foram mortas pela polícia, e parece que os anos passam e nada muda. E também, do ponto de vista artístico, houve muitos silêncios, e muita gente que demorou muito a dizer alguma coisa. 

É verdade. Eu reagi de imediato e não me arrependo de absolutamente nada. Levei com a jarda, mas não me arrependo. Se tu és artista, tens um papel na sociedade, que é seres porta-voz da tua comunidade. Se são as pessoas que te transformam num artista, porque é que nestas alturas tu não tens coragem para ser porta-voz delas? Ou só precisas das pessoas para comprar bilhetes e encher as salas? Para mim, isso não faz sentido. Quando soube da situação, fiquei com um nó na garganta e tive de falar. Fui logo para casa e percebi que já íamos ter assunto, porque quando abro a boca no Instagram, aquilo explode logo.

Tens muitas reações?

Muitas reações, porque as pessoas estão comigo. Eu digo aquilo que elas pensam. Eu tinha de falar. Lagrimei, mas percebi que tinha de mesmo falar. Mal gravei o primeiro story, comecei logo a ter montes de reações. Eu sei que tenho muitos polícias infiltrados nas minhas redes e houve um story que eu falei mesmo para eles. Eu não tenho medo. Vivemos em liberdade, temos liberdade de expressão, então vou falar! Um dia que eu morra, morro com a minha verdade, porque sei que é a verdade do povo.

Aquilo que disseste tinha de ser dito logo naquele dia.

Sim, era extremamente importante aquilo ter sido naquela altura. Porquê falar 10 dias depois, 2 semanas depois, um mês depois? Eu intervenho quando as coisas estão quentes, não é quando arrefecem. É quando estão quentes, mesmo! Falei tudo o que tinha para falar e, entretanto, pegaram um vídeo meu e meteram em páginas fascistas, extremistas e racistas. Chamaram-me tudo e mais alguma coisa. Eu li tudo, mas não fiquei triste ou magoada, nem me tirou o sono. Eu tenho consciência da sociedade em que vivo. Depois meteram um vídeo meu num grupo só de polícias extremistas. Quando meteram os meus vídeos nessas páginas, comecei a receber ameaças de morte, mensagens de ódio, assédio psicológico. Mas se é preciso passar por aquilo em nome da verdade, eu passo.

E estavas a representar uma raiva comum.

Eu falei com a verdade do povo, com a verdade da minha comunidade. Foi revoltante. É a mesma história a repetir-se. E depois tens aquelas informações falsas que passaram na televisão. Foi uma palhaçada e passa tudo impune. Imagina o resto da comunidade a ver aquilo e a saber que aquilo é mentira! A dizerem que o Odair foi na ambulância para o hospital e foi no hospital que morreu. Não foi no hospital que ele morreu, ele morreu ali na rua!

Várias gerações de rappers têm retratado a violência policial e de Estado nos bairros. Da tua vivência, sentes que a situação não mudou?

A podridão da questão é sempre a mesma, o que mudam são os intervenientes. Nós, no bairro, temos de estar sempre com uma postura defensiva, sempre atentos a tudo. É stressante porque não tens paz. Podes ter dias de paz, mas são mais os dias de violência. Como é que nós vamos ter uma ligação de proximidade com essas entidades que supostamente têm de ser a nossa segurança, mas que estão cheias de pessoas que são assassinas? Quando a polícia chega, não respeita ninguém. Nem crianças, nem mães, nem avós, nada. É como se nos vissem como lixo.

Não deixando à polícia a narrativa final desta entrevista, que planos tens para o futuro? O que podemos esperar da Mynda Guevara no caminho que se segue até teres “a comitiva toda junta no Coliseu”?

Podem esperar muita coisa boa e, se deus quiser, vamos pisar o Coliseu, sim senhora! Nos próximos tempos, vão poder ver uma Mynda muito mais atrevida em termos de exploração musical, a explorar mensagens noutros ritmos e estilos de beat. Vão continuar a ver uma Mynda ativa, tagarela, mas que dá o peito às balas por questões sociais. Uma Mynda forte e empoderada.


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