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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/02/2021

A aprender enquanto se faz (e se dá exposição).

Mundo Segundo: “Sempre gostei de puxar novos talentos para o conhecimento da comunidade”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/02/2021

Devido às medidas de confinamento, o regresso do hip hop à sala maior do Hard Club ficou reagendado para 6 de Março. No entanto, a 2º Piso não pára e a data para o lançamento da compilação que apresenta a nova editora de Mundo Segundo chega algum tempo antes — ainda assim, a sua chegada às plataformas de streaming só acontecerá mais perto do concerto. São 18 novos e velhos amigos, que se juntam ao “jovem veterano” para mostrar o que de bom se vai produzir num selo que vai para lá dos Dealema.

Numa conversa realizada antes de se saber das medidas de confinamento, mas a suspeitar sobre o que aí vinha, deixámos o concerto de apresentação de 14 de Outubro um pouco de parte e fomos diretos ao osso, numa conversa com o “Ancião” Mundo Segundo que nos revela, entre outras coisas, a origem do projecto, os ensinamentos que já obteve com ele, o que procura no sangue fresco do movimento hip hop nacional e, claro, o futuro de uma editora que tem o mesmo nome do primeiro espaço do mítico grupo do qual faz parte. Bora lá perceber o que se vai ouvir na 14 de Outubro?



Ainda passas muito pela rua 14 de Outubro e dás por ti a imaginar o início da tua carreira?

Sim, claro que sim, claro que imagino. Passo lá muitas vezes. Até é relativamente perto do actual 2º Piso e claro que faço muitas vezes essa viagem para refrescar a memória. Vivi naquela zona, 30 e tal anos da minha vida, por isso faz todo sentido passar lá e fazer essa viagem. Além de ver as pessoas que ainda por lá vivem. Da minha infância, ou seja, da minha geração, já não vivem assim tantas, mas ainda vivem algumas e eu faço questão de passar lá pelo menos uma ou duas vezes por semana.

Esse universo que imaginas nessa viagem é um pouco do que querias recriar com esta compilação, com estes novos nomes?

Digamos assim, é mais o universo de convívio, de confraternização, e até de cruzar gerações, que era algo que se fazia muito no primeiro 2º Piso, é mais isso. Mesmo o próprio conceito da editora é um bocado isso. É o ontem, o hoje e o amanhã, como diz aquele clássico do Kacetado. 2º Piso é a mistura do passado, presente e do que virá, e é isso que eu tento fazer nesta compilação, ou seja, vais viajar por sons do passado, em texturas mais old school, mas também vais viajar em texturas muito modernas. Não é uma coisa fechada numa caixinha, é algo muito mais amplo do que aquilo que se possa imaginar. Temos gerações que podem ir dos 20 até aos 40 e muitos.

O título que dás à compilação e à editora pode ser visto como um acto simbólico de início. Recomeçar de novo.

Exactamente, é mesmo isso! Quero repescar essa ideia de começar de novo, não é? Porque, na verdade, o 2º Piso, apesar de ter gravado muitos artistas ao longo dos anos, nunca foi uma editora. Então, eu achei simbólico agora, em 2020, no dia 14 de outubro, fazer do 2º Piso uma editora e começar a gravar estes artistas novos. Daí o 14 de Outubro, para as pessoas também perceberem, de onde é que vem o 2º Piso e que não é uma coisa que começou agora. Faz este ano 28 anos de existência, já é um adulto. E pronto, fazia sentido agora, também, criar a editora. A pandemia fez cruzar vários caminhos, entre mim e vários novos produtores e MCs. Também através das sessões de beats que fui fazendo e juntei um colectivo de pessoas, algumas que já conhecia e admirava o trabalho e outras que conheci mais de perto ao longo deste ano, e achei que seria uma mais-valia apostar nesses talentos.

Isso leva-me ao método de escolha destes artistas. Como decidiste em quem querias apostar?

Basicamente o meu critério, mesmo antes da questão musical, é o carisma da pessoa em si e se combina com a mentalidade que procuramos. Não queremos artistas egocêntricos e fechados no seu umbigo. Queremos artistas que estejam dispostos a trabalhar com outros, seja nova escola, velha escola, média escola, o que quiserem chamar. Esse é sempre o princípio para ser um artista 2º Piso, não se ser fechado. A partir daí, cada um representa o seu estilo sonoro, a sua paisagem, a sua textura, não há nenhuma barreira a dizer que tens de ser assim. A única regra é gostar de trabalhar em comunidade, porque no fim de contas o hip hop é uma comunidade. É essa a mentalidade, a de que estamos aqui uns para os outros. De resto, podes ser um artista de boom bap, breakbeat, trap, drill, seja lá o que for, isso não me interessa. O que me interessa é esse carisma e a forma de estar.

Nos temas que podemos ouvir na compilação, chegaste a trabalhar com algum desses artistas directamente?

Eu participo em bastantes delas. Tem músicas minhas e tem features que fiz com outros artistas da editora. E também tem muita produção minha.

Estes nomes com quem vais para palco e que reuniste na compilação são, então, os nomes com quem vais trabalhar editorialmente na 2º Piso?

Exactamente! Aliás, neste momento, eu estou a trabalhar no 2º Piso com outro artista da editora, o Composto, que é um produtor com quem fizemos a mistura e a masterização do disco, e no dia a seguir a terminarmos o master da compilação e termos enviado para a fábrica, já estávamos a trabalhar no disco do primeiro artista a ser editado pela 2º Piso. Aqui não há intervalos, é sempre a andar.

Como te sentiste a trabalhar com esta nova vaga de artistas?

Senti-me bastante bem, como sempre me senti desde o início. Quem fizer uma retrospectiva da minha carreira, vai perceber que sempre fui aberto a novos talentos, sempre gostei de os puxar para o conhecimento da comunidade. Por isso, para mim, foi um processo supernatural, nada forçado, não sou “velho do restelo”, sou totalmente aberto a todo o tipo de sonoridades, desde que o cerne do artista vá de encontro àquilo que aprecio. No fundo, sou só um ouvinte de hip hop. Apesar de o fazer, sou só um ouvinte. E claro, vou procurar dentro de cada estilo sempre algo com que me identifique e que me sinta representado na comunidade hip hop.

Achas que de certa forma estás a fazer uma passagem de legado nesta fase da tua carreira?

Se calhar mais partilha de conhecimento, porque eu tenho uma experiência que, para além de musical, tem o lado da estrada e de como espalhar a tua música. Como artista, tento passar esse conhecimento à malta que trabalha na 2º Piso. E aprendo com eles muita coisa, porque uma pessoa que deixe de aprender já não está aqui a fazer nada. Devemos estar sempre a tentar aprender algo, mesmo até sermos velhinhos. Basicamente é essa a minha forma de estar na música: ensinar e aprender. Passar legado vai ser sempre, mas não naquela perspetiva de passar legado e agora sento-me ali na cadeira. De forma alguma! Às vezes as pessoas podem olhar para nós e ver-nos como velha escola, pelos anos que temos, mas eu considero-me, velha, nova e média escola, porque o amor que tinha no início é o mesmo que tenho agora, e o que me interessa é manter-me relevante. Não vejo a passagem de legado como algo datado, mas como uma partilha de conhecimento. É para isso que estamos aqui.

Falaste em aprender. O que sentes que aprendeste nesta compilação?

Além de explorar novos contextos sonoros, com malta que produz noutras linhas, algo diferente daquilo que produzo, é sobretudo perceber qual é o objectivo de cada um. Isso é que é o mais interessante de aprender. Eu tenho os meus propósitos e ideais, mas outra pessoa pode ter outros e eu gosto de os tentar perceber o que as move, o que as faz levantar e fazer um beat ou escrever, se prefere algo mais profundo ou algo mais superficial, mas que até tem um certo pretexto e conceito. No fundo, tudo é válido de forma artística e é isso que eu gosto de ver. É as pessoas expressarem-se artisticamente e cada uma ter validação no seu universo. Acho isso interessante e foi algo que aprendi bastante nestes últimos anos.

Disseste que devido à pandemia, estiveste muito centrado nas Beatologias, e nas compilações. Neste período da tua carreira, vais continuar focado nisso, ou pensas direcionar-te mais para as rimas e menos para as batidas? O que tens planeado para este ano, não só para ti, como para a 2º Piso?

A nível da 2º Piso, vamos editar todos os artistas que temos neste momento. Posso-te dizer que temos 16 artistas a trabalhar, vamos ter muitas edições. Em relação à minha carreira, eu sou um coleccionador. Eu colecciono músicas através dos anos. Quando ouves um álbum meu, as músicas podem ter cinco anos, cinco meses ou cinco semanas. Aquilo que eu acho que faz sentido no disco, vou reunindo, vou fazendo muito mais músicas do que essas, e depois escolho aquelas que fazem mais sentido umas com as outras. Eu não sou aquele artista que fica só três meses a escrever e a fazer isto. Eu vou fazendo e depois quando vejo que é altura, lanço. O que te quero dizer com isto é que já tenho músicas feitas. Posso-te dizer que já tenho mais do que um álbum feito para mim, e já tenho outra compilação da 2º Piso, que conta praí com 50 convidados, que até foi gravada antes desta mas que ainda não saiu. Vai sair posteriormente e até nem tem só artistas do 2º Piso, tem de todo país, do Minho até ao Algarve, basicamente. Por isso, já sabes que eu tenho muita coisa no forno para lançar.

Quando é que vamos poder ouvir a compilação 14 de Outubro?

Nós estamos a apontar para que na última semana do mês a compilação já esteja disponível online, para poderem comprar. Depois no final do mês estará disponível nas plataformas digitais.

A situação do concerto (anteriormente agendado para 23 de janeiro), isto basicamente está tudo em “banho-maria”.

Está em banho-maria. Está em banho-maria mesmo…

Já tiveste a experiência de fazer um concerto de hip hop com as pessoas sentadas? Não teres aquele sentimento da união, das pessoas juntas. É algo que estou curioso porque nunca estive nessa posição.

Já fiz algumas vezes, na verdade. Já fiz vários concertos em auditórios, e o pessoal não tem a possibilidade de estar de pé, por isso já passei por essa situação até antes da pandemia. Eu até já fiz um concerto no Hard Club nesse contexto até com menos pessoas, cento e tal pessoas sentadas, e reparei uma coisa: quanto menos pessoas e se estiverem sentadas, elas estão realmente focadas no que estás a dizer. Existe uma energia diferente de quando estão a confraternizar e de mãos no ar. Ouvem realmente o que estás a dizer e não estão tão dispersas no que está a acontecer ao lado, por isso até tem o seu je ne se quoi de positivo. Para quem gosta de letras é muito fixe.

Para terminar, gostava de saber se ainda te sentes o homem mais rico do mundo?

Claro que sim, claro que sim! Enquanto puder fazer aquilo que mais gosto, posso considerar-me o homem mais rico do mundo. Enquanto conseguir fazer música e tiver aqueles que mais gosto por perto, com pelo menos o mesmo nível de felicidade que tenho, já estou contente. Posso considerar-me rico.


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