Mais um ano, mais uma edição de sucesso riscada da lista do Mucho Flow. Os exploradores da música de vanguarda mais amorfa despediram-se de Guimarães certamente agradados com o que viram e escutaram ao longo de três dias — as nossas reportagens das primeiras duas sessões estão aqui e aqui —, num total de mais de duas dezenas de propostas que foram dos campos da música experimental e da electrónica até à pop e ao hip hop de carizes mais alternativos. No final, o certame despediu-se de 2025 com um um par de propostas a apontar directamente para as pistas de dança — com Simo Cell b2b Verraco e DJ Lynce —, mas para aqueles que, como nós, se ficaram pelos concertos e não seguiram viagem até ao São Mamede CAE, a resolução deste Mucho Flow veio afinada no rock.
O terceiro e último dia do festival ficou marcado pelo cancelamento da actuação de LUXE devido a doença, algo que empurrou as primeiras propostas programáticas para um pouco mais tarde. Depois da conversa “Arqueologia do Futuro”, passaram pelo Teatro Jordão a arrojadas visões pop de PLUS44KALIGULA e de Body Meat, bem como o catártico punk dos portugueses bbb hairdryer, que já tínhamos visto recentemente no OUT.FEST deste ano e que editaram há um ano A Single Mother / A Single Woman / An Only Child pela Revolve, a editora que promove o evento vimaranense. O principal momento da noite, talvez até de todo o festival, estava marcado para as 22 horas, que foi quando os YHWH Nailgun se estrearam no nosso país pela mão do Mucho Flow.
Formada no início desta década, a banda norte-americana apresenta nas suas fileiras o baterista Sam Pickard, o vocalista Zack Borzone, o guitarrista Saguiv Rosenstock e os sintetizadores de Jack Tobias. Editaram o primeiro álbum, 45 Pounds, no início deste ano e conquistaram de imediato a atenção da imprensa e um estatuto de culto por entre o público graças à forma com que desconstroem o rock mais poroso e o levam a deambular por terrenos que facilmente associamos ao free jazz ou à cena noise industrial. Ao vivo, a veia punk sobressai e provoca um efeito quase claustrofóbico: os sons guturais de Borzone dão peso redobrado a uma sonoridade de grupo que, por si só, já é bem musculada, muito graças à força que a bateria representa; já a presença dos sintetizadores na vez do baixo dá-nos uma estrutura de graves muito mais textural, e em conjunto com a guitarra cria-se uma identidade bem própria, que muitas das vezes nem nos permite identificar ao certo qual dos dois instrumentos está a fazer o quê. Da explosão de ritmos e distorções com que nos brindaram destaca-se “Sickle Walk”, uma das malhas mais queridas entre os fãs que parece um autêntico tema de rock experimental criado no laboratório de um hospício pelos próprios pacientes depois de imobilizada a equipa médica do local.


Sem a chuva a atrapalhar desta vez, regressámos de novo ao Centro Cultural Vila Flor para os derradeiros dois concertos. Primeiro foi Maria Somerville, uma xamã que nos guiou por um ritual de folk sonhadora que arrasta consigo uma densa neblina de shoegaze. Com cadência lenta e envolta de muitas camadas, a sua música fez-se soar em palco com as ajudas de Michael Speers na bateria e Sean Bean no baixo, este último que, apesar do nome, se dirigiu ao público num português perfeito para sublinhar que aquela era a primeira vez de Somerville em Portugal. O som espectral quase que se dissolve no ar por completo antes de nos chegar aos ouvidos, como se também os fantasmas fossem capazes de musicar algumas das suas inquietações e contemplações. Saíram de cena sob uma forte onda de aplausos na sequência de mais uma data ao vivo no âmbito da apresentação do novo Luster.
Com muita mais experiência, talvez os quase 20 anos de carreira dos These New Puritans tenham colocado um prazo de validade na música do grupo inglês comandado pelos irmãos gémeos Jack e George Barnett. Sim, a instrumentação é luxuosa e há de facto inventividade na forma como as suas canções estão construídas, mas o som no seu todo chega-nos demasiado polido — como se fosse alcançado não tanto graças a uma genialidade natural, mas mais fruto de estudo intensivo. É impossível não ouvir os temas e sentir-lhes a originalidade, mas a sua execução meticulosa, tão orientada ao detalhe, tira algum brilho a um art rock que se gostaria de escutar mais “soltinho”.

