Foram ontem (30 de Outubro) convocados à cidade de Guimarães os mais ávidos exploradores sonoros de Norte a Sul do país com vista a embarcar em mais uma aventura musical promovida pelo Mucho Flow, o festival que, conforme nos apontou a organização numa recente entrevista ao Rimas e Batidas, se pauta pela “inquietação, risco e comunhão” na hora de delinear cada nova edição. Como é hábito, também o ReB seguiu na peregrinação rumo ao “Berço de Portugal”, não só para ver ao vivo alguns dos artistas que tem vindo a acompanhar mais de perto, mas também para partir à descoberta de outros tantos cujos nomes são ainda incógnitas e que, por norma, são apostas igualmente certeiras, dado o apuradíssimo sentido curatorial que este evento demonstra ano após ano.
Numa quinta-feira de tons cinzentos e de chuva intermitente, o certame inaugurou a sua 12ª edição logo às 15h45 com duas conversas — “Subscrição do fim” e “Cartografar e desenhar comunidades” — no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, onde às 18h teve também lugar o primeiro concerto desta temporada de 2025 do Mucho Flow por intermédio de Pedro Melo Alves, um dos mais inventivos bateristas da nossa praça. Entre afazeres e alguns obstáculos do ponto-de-vista logístico, já só bem depois disso nos conseguimos atirar para perto de um dos palcos do festival, a escassos minutos dos Raso — um novo colectivo que junta Ricardo Martins, Jonathan Uliel Saldanha, Carlos A. Correia, Pedro Ribeiro e Diogo Mendes — darem por findada a sua performance. Foi pena não testemunharmos aquela que foi a estreia em absoluto do grupo, mas nada que a Revolve não resolva, já que a editora que tem operado nos domínios da futurologia musical nacional acaba de anunciar Transeunte, o debutante álbum de Raso, para o dia 21 de Novembro, estando já as primeiras duas músicas de sempre deste projecto disponíveis para escuta no Bandcamp.
Dispostos a abraçar sem medos a descoberta, no Centro Cultural Vila Flor cruzámo-nos pela primeira vez com duas artistas que certamente manteremos debaixo do nosso radar durante os próximos tempos. Tudo começou às 22 horas com feeo, alter-ego da londrina Theodora Laird, que ao vivo se faz acompanhar do guitarrista Caius Williams. Numa actuação que apenas pecou pelo excesso de luminosidade a incidir sobre os dois músicos, a artista principal agarrou-nos por completo na sua complexa teia pop de vanguarda altamente textural, onde dores se transformam em canções por entre um emaranhado de camadas servido a baixas rotações. Foi como se, durante quase uma hora, tivessemos estado a dançar de mãos dadas com a morte à beira de um precipício enquanto contemplamos o abismo e encontramos beleza na nossa própria tristeza. Sobressaiu a voz bem treinada de feeo, que veicula palavras sobre guerra ou dúvidas amorosas em cima de instrumentais etéreos que mais parecem fórmulas químicas trabalhadas com precisão atómica a partir das várias peças de maquinaria que tem à sua frente, que vão sendo complementadas com alguns fraseados e acordes planantes por parte da guitarra. Não admira nada que a visionária AD 93 se tenha chegado à frente para lhe selar a edição do LP de apresentação, Goodness, neste mesmo mês de Outubro.


As experimentações em torno da pop continuaram com Sunniva Lindgård, cantautora norueguesa que responde por Sassy 009. Depois da letargia de feeo, a proposta da escandinava mostrou-se bem adequada para lhe suceder, já que há vários pontos em que a música de ambas se tocam. A grande diferença está no ritmo, que em Sassy 009 se manifesta pela via de batidas mais vincadas, servidas num híbrido de electrónica com rock alternativo e hyperpop sem nunca soarem demasiado musculadas, mas suficientemente fortes para convidar o público do Mucho Flow à dança em definitivo. Com Lindgård na voz e no baixo, Sassy 009 ao vivo constrói-se também com a ajuda de um baterista e de um teclista numa altura em que o álbum de estreia do projecto está na calha para o arranque de 2026 — Dreamer+ está previsto chegar a 16 de Janeiro e já tem dois dos seus temas revelados, “Butterflies” e “Tell Me” (com Blood Orange). Feitas as contas, soube a pouco os cerca de 40 minutos em que a banda ocupou o palco, mas foi a prenda perfeita para quem já há muito que anda a sonhar com um possível clash sonoro entre os universos de Erika de Casier e Nilüfer Yanya.


A animar o final da nossa missão pelo primeiro dia do Mucho Flow estiveram os HiTech, grupo de DJs, produtores e rappers que nos tem entretido com uma electrónica bem irrequieta através dos seus lançamentos e que já tinha causado boas impressões no público português aquando uma passagem pelo OUT.FEST em 2023. King Milo, Milf Melly e 47Chops formam o trio de Detroit que tem distribuido jogo forte e feio nos vastos campos do ghettotech, com recurso a batidas aceleradas que vão do footwork e do techno ao drum & bass. Ao microfone, um dos elementos apresenta o grupo como “Freaky N***as”, mas alternativas como “Horny Bass Sculptors” ou “Titillated Beat Agents” também não lhes ficariam nada mal. Ao longo de toda a actuação, procuram puxar pelo lado mais sexy do público com letras e movimentos corporais atrevidos enquanto vão dividindo as suas garrafas de álcool com os presentes. “SPANK!” e “GASOLINE” são trunfos infalíveis que puxam do seu próprio baralho para animar a pista de dança, mas não deixam de revisitar catálogos alheios para tentar alcançar um set o mais versátil possível — a versão original de “TRYING TO SAYSOMETHING” de Zep causou espanto, enquanto que uma remistura de “Paper Planes” de M.I.A. meteu toda a gente a dar tiros para o ar com as pontas dos dedos. Terá sido, sem grandes dúvidas, uma das prestações mais divertidas do festival.

