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Fotografia: Xipipa
Publicado a: 08/11/2021

Uma cidade em festa total.

Mucho Flow’21 – Dia 2: da importância de descentralizar

Fotografia: Xipipa
Publicado a: 08/11/2021

Para quem não está familiarizado com tradições vimaranenses, o segundo dia de Mucho Flow foi algo que definitivamente vai ficar marcado nas nossas memórias e que vai dar tema para muitas conversas futuras. Não só pelos concertos incríveis de que iremos falar a seguir, mas também pelas centenas de jovens que desde o meio-dia começaram a tocar em tambores enquanto andavam em procissão pelo centro da cidade, liderados por três pessoas vestidas com um traje tradicional, e que só pararam no fim da noite.

Era esta a energia existente nas ruas de Guimarães enquanto aproveitávamos o dia solarengo para explorar a cidade onde o Mucho Flow nos trouxe, e serviu também de exemplo perfeito para demonstrar a importância da descentralização da cultura, que se foca maioritariamente em Lisboa e no Porto, de preferência em contacto com a cidade ao invés de afastados em parques de campismo ou praias. Festivais como este levam a que pessoas de várias regiões do país visitem cidades onde nunca antes foram, a conhecer os costumes delas, muitos até chegaram a pegar num tambor emprestado para entrar na festa, e consequentemente a ter uma imagem mais clara e justa de tudo o que se passa em Portugal, e, quem sabe, a conquistar os corações de pessoas perdidas que encontrem um sítio onde faça sentido criarem um lar. O turismo cultural tem-se revelado como um autêntica força dinamizadora nas cidades, que durante poucos dias ficam com as suas esplanadas, restaurantes, bares, hotéis e Airbnbs completamente cheios, enquanto as pessoas locais mandam olhares estranhos aos visitantes que se vestem de forma diferente da norma, o que acaba também por contribuir para que essas pessoas saiam da sua zona de conforto e percebam que não é só na televisão que as pessoas se vestem assim e ouvem música assim. É uma realidade muito mais palpável que o que pensam. É bonito ver esse choque pacífico, e toda a gente tem a ganhar com que isso aconteça.

Mentes focadas de novo no festival, Ricardo Martins voltou, novamente, a inaugurar o dia no Centro Internacional das Artes José Guimarães. Tê-lo feito a solo não impediu que, somente com uma bateria e a voz, enchesse completamente a sala com ideias frescas enquanto as pessoas tentavam entrar no já demasiado cheio espaço onde tocava. O baterista recorreu a loops para conseguir complexificar as suas ideias, utilizando também a sua voz modulada para criar densas camadas homogéneas, uma das poucas melodias existentes ao longo da performance. A voz foi também transformada num veículo de noise que oferecia versatilidade às composições, e, claro, utilizada no seu estado puro. Acompanhado por visuais abstractos fluídos, houve momentos de contemplação, de pouco ritmo que nos metiam num transe prolongado, e de uma parafernália de elementos, enquanto assistimos a um dos melhores bateristas do nosso país fazer aquilo que faz melhor, explorar os limites do seu instrumento de eleição com a sensibilidade perfeita para dar um concerto repleto de nuances e momentos diferentes, recorrendo praticamente apenas a uma bateria, que, por si só, tem bastantes limites na sua exploração em comparação com outros instrumentos. E fê-lo bem, não fosse a plateia, sentada desde o início, levantar-se só para o aplaudir com sorrisos na cara e plenitude na alma.

Continuando nos minimalismos “uma pessoa, um instrumento”, Anna B Savage seguiu-se para também ela encher completamente a sala. Neste caso, ao contrário de Ricardo, a voz foi o instrumento principal, enquanto a guitarra lhe oferecia uma mão amiga para criar ambiências que contextualizaram o seu poderio vocal, que não foi indiferente para ninguém. Curiosamente, a intensidade com que canta as suas melancólicas letras contrastava completamente com a delicadeza (e alguma timidez) com que interagia com o público, sempre muito querida e sorridente, marcando um dos poucos momentos onde a barreira público-espectador fora quebrada e comunicação se estabelecesse. Por entre músicas tristes, surgia por vezes a plenitude, como em “Since We Broke Up”, em que explora com bons olhos o espaço pós-separação e encontra nele motivação, resiliência, e pequenos prazeres na vida que a elevam a alguém melhor e mais feliz. Isto foi, no entanto, uma das poucas exceções ao ambiente pesado da sua lírica, que muito dificilmente não mexeu com quem a ouviu na blackbox.

Após uma pausa para curar a tristeza com um belo jantar, foi altura de nos virarmos para o Centro Cultural Vila Flor, onde assistimos ao concerto de Fura Olhos, que lançaram o seu primeiro disco homónimo há poucos dias, e que é composto por dois representantes de gerações distintas e também duas abordagens que, sendo bastante diferentes, se complementam. De um lado tínhamos Miguel Pedro, membro-fundador dos Mão Morta, Mundo Cão, Palmer Eldritch e Governo, e do outro Inês Malheiro, uma multifacetada artista bracarense. Enquanto o músico conceituado recorria às mais diversas sonoridades e texturas para criar um inconformismo sonoro através de glitch e imprevisibilidade, a jovem aproveitava para tentar levar ao limite um único instrumento, a sua voz, auxiliada por loops e efeitos que criavam harmonias e desarmonias. Foi possível, no mesmo concerto, ouvirmos pedaços desconstruídos de Swans, Grouper, e até mesmo Oval, sem que a identidade sonora dispersasse muito, e acompanhados por um jogo de luzes magnífico que empurrava o concerto tanto para momentos mais angelicais, onde a voz de Inês brilhava por entre as modulações como para momentos mais sombrios. No meio de tanta instabilidade, “Como Vento” surgiu como se um porto onde atracássemos depois de um mar de confusões, e onde nos sentimos finalmente abrigados. O concerto foi encerrado, tal como no álbum, por “Dança”, uma música mais virada para o house que infelizmente pareceu destoar um pouco do resto do concerto, fugindo do ambiente criado sem nos levar com ela. Mas isso não apagou os momentos sublimes e contemplativos que assistimos neste projecto onde ouvimos um titã da música portuguesa e uma artista a dar os primeiros passos a criar algo tão especial, com o seu próprio ritmo, lento e paciente.

Após dois dias de procissão, chegou a altura do Mucho Flow enterrar finalmente o seu Pinheiro para depois continuar com a festa com as costas mais leves, e quem tratou de tamanha responsabilidade foi Lorenzo Senni, conhecido por, ao contrário dos tambores que se ouviam na rua, se recusar a utilizar qualquer instrumento de percussão nas suas músicas, muitas delas orientadas para dança. O produtor italiano tinha como missão fazer a festa e não falhou na sua tarefa, apresentado nove faixas, nas quais desenvolveu um projecto de rave emocional que, ao mesmo tempo que nos obrigava a dançar freneticamente, nos perfurou o coração com emoções tão acutilantes quanto os sons do seu sintetizador analógico. Para quem, mesmo assim, não estava convencido com este formato pós-eurotrance, bastava olhar para a energia do músico que, dentro de uma sala de pessoas a dançar freneticamente, mesmo assim conseguia ser ele a pessoa que mais estava a vibrar com a sua própria música. Danças, saltos, agachamentos, expressões faciais extremamente italianas, a actividade corporal do músico contagiava qualquer pessoa e ajudava-nos a esclarecer qual era a interpretação que devias ter das músicas que estávamos a ouvir; como flutua entre a dança e o ambient, muitas vezes em simultâneo, às vezes torna-se difícil de entender qual a intenção de Senni, mas todas essas dúvidas foram esclarecidas em (muito) alto e bom som, com um público a vibrar com o single “Canone Infinito” e o clássico “The Shape of Trance to Come”, o seu manifesto ideológico.

Chegou a altura de fazermos uma caminhada fresca para conseguirmos digerir a veemência do espetáculo que acabámos de ver para visitarmos, pela última vez, o Teatro de São Mamede. Se Lorenzo Senni cruza a música de dança e o ambient, os Giant Swan são a prova viva de que música electrónica de dança, o noise e o punk podem coexistir e contagiar uma sala cheia. Desde o primeiro momento em que pisaram o palco até ao fim do gig, Robin Stewart e Harry Wright elevaram a intensidade e os BPMs e recusaram-se a criar qualquer espaço para respirar, o que resultou numa hora onde parar de dançar não era opção. Os drops não existiram, pois nunca houve sequer um momento onde o kick e o bass tivessem parado, as nuances e dinâmicas de um set de techno foram completamente obliteradas pela energia punk, não houve altos nem baixos, apenas uma única energia que se prolongou até ao fim. A voz era o principal veículo destrutivo, modificada com os vários pedais que o duo tinha, e a batida parecia ser uma continuação do princípio ao fim, como se apenas de uma música se tratasse. E é esta a essência de Giant Swan, dois jovens britânicos que apostam no improviso, em material hardware (muito dele oriundo do rock), e na essência de jams para criaram um espetáculo que nunca se repete nem cai no aborrecimento. O resultado foi uma hora que nos rendeu mais que uma semana de ginásio, que nos faz concluir que dietas punk são o melhor remédio, especialmente quando são alimentadas pela energia repetitiva e intensa do techno.

Para entregar mais nuances à nossa noite e pausas para respirar, Lee Gamble levou-nos até ao UK e às diferentes energias que lá foram criadas. Desde dubstep a techno a breakbeats a jungle a outros tipos de graves britânicos, o set do produtor contrastou completamente com os dois trabalhos que lançou este ano, o álbum A Million Pieces Of You e a compilação Flush Real Pharynx 2019​-​2021, onde explora campos mais ambient e minimalistas, enveredando por aquilo que o deixou conhecido e o elevou ao estatuto de DJ aclamado: duas horas sem falhas e com muitas dinâmicas, onde os géneros transitavam entre si sem destoarem entre eles, transições essas que por vezes eram exactamente aquilo que precisávamos para sentir um boost energético.

A noite acabou e o dia começou às mãos do DJ Lynce, figura incontornável das noites do Porto e do Mucho Flow, que nos voltou a subir as mudanças para nos entregar um set que passou pelo jungle e pelo hardstyle, encerrando assim esta edição do festival vimaranense em velocidade rápida para nos certificarmos que não sobrava um pingo de energia em nós.

A edição deste ano do Mucho Flow apresentou-se repleta de ideias diferentes que no fim se complementaram num festival especial que se destaca, também, pela beleza e estética medieval da cidade de Guimarães e por salas de concerto infinitamente superiores à grande maioria das salas portuguesas, especialmente em Lisboa ou no Porto (seria impossível organizar este festival em qualquer uma dessas cidades com condições tão boas como estas). É bonito ver a cidade que acolhe um festival ter um papel crucial na identidade deste, e só serve para melhorar a experiência do público, que vive ambos como um só. Foram vários os momentos marcantes nestes dois dias, dentro e fora dos palcos, muito graças à organização, que não falhou nos horários, que deram espaço para se viver Guimarães, no espaços e respectivos sistemas de som, um empurrão necessário para muitas vezes esses concertos atingirem a intensidade certa (especialmente falando nas frequências mais graves e momento mais abrasivos). Foram dias cheios mas que inevitavelmente souberam a pouco, no melhor sentido possível da palavra. Aguardamos ansiosamente por uma nova visita à cidade, seja por causa do festival, por causa do Pinheiro, ou pela beleza da cidade. As portas estarão abertas, certamente. 

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