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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/11/2021

De Chão Maior a Loraine James.

Mucho Flow’21 – Dia 1: quão longe dá para ir?

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/11/2021

A coesão é um elemento muito importante quando se pensa um festival. Que exista princípio, meio e fim, que uma narrativa seja criada nos nossos cérebros e os estímulos que estes recebem tenham uma certa ordem lógica que nos permite abrir portas para o que vem a seguir. Que o esforço mental que alguns projetos exigem seja compensado com algo mais fácil de nos deixarmos levar. Quão longe conseguiremos ir na navegação do espectro musical sem que a identidade se perca por completo? Essa resposta foi respondida logo no primeiro dia desta edição do Mucho Flow, que concretizou todos os parâmetros mencionados. 

O festival de Guimarães, que tem a sua programação dividida por três espaços diferentes, cada um mais impressionante que o outro, teve início às 21 horas de ontem e logo numa intensidade bastante alta — e a partir daí não baixou, fazendo-nos entrar num estado mental que já tínhamos todos saudades e onde vimos projetos super variados quase ininterruptamente durante sete horas (para os mais rijos) e que continuavam a puxar por nós e ajudavam a lutar contra o cansaço.

Mas comecemos pelo princípio. As portas abriram-se primeiro na blackbox do Centro Internacional das Artes José Guimarães, onde os Chão Maior, provavelmente um dos poucos projectos com músicos a seguir uma pauta neste festival, inaugurou as festividades. O sexteto liderado por Yaw Tembe, que conta com nomes pesados como Ricardo Martins, Norberto Lobo, Leonor Arnaut, Yuri Antunes e João Almeida, apesar deste último não ter tocado, criaram um introdução de cerca de 15 minutos hipnotizantes com múltiplos chocalhos, drones de trompetes complementados pela voz, a guitarra a criar momentos disruptivos (mas não ao ponto de destoar) e a bateria, que foi mostrando o caminho para onde a música ia. As batidas intensas e graves de Ricardo Martins (que tinha duas baquetas não mão direita, porque para ele dois braços e duas pernas não chegam) pareciam autênticos murros no sistema de som da sala, mas isso não impediu que as dezenas de pessoas que viram o concerto se sentassem, preferindo o conforto do chão para contemplarem a música, que se mexia muito progressivamente e nos fazia fechar os olhos e viajar.

O rumo seguiu para as músicas do álbum, que ganharam uma nova dimensão ao vivo muito por culpa de Ricardo Martins e da intensidade com que toca e a energia que dedica a cada elemento da sua bateria, servindo muitas vezes para quebrar com o que poderia soar a previsível ou datado. O concerto foi todo numa abordagem bastante progressiva, onde cada uma das ideias apresentadas foi explorada de múltiplas formas e abordagens diferentes, que culminou num projecto que vai muito além do jazz tradicional.



10 minutos de uma caminhada pacífica e fresca pelas ruas de Guimarães levaram-nos ao Centro Cultural de Vila Flor, a próxima paragem do festival. Quando entrámos, sentimos rapidamente uma mudança na energia em comparação com o concerto anterior: a sala estava cheia de fumo, as dezenas de pessoas multiplicaram-se em centenas e estavam todas de pé e, ao invés de se ouvir Sky Ferreira a passar enquanto aguardávamos, a música era mais pesada e virada para o UK bass. 

As primeiras camadas disruptivas dos Space Afrika entraram e prenderam-nos rapidamente à sua realidade sonora, que nos deixou contemplativos e estáticos. Mas nada nos preparou para o primeiro bass que ouvimos vindo deles, potenciado pela qualidade do sistema de som e da sala que acrescentaram a profundidade ideal às músicas.

Acompanhados por uma projeção de paisagens urbanas a preto e branco, numa estética bastante britânica, diga-se desde já, o duo originário de Manchester apresentou o seu último álbum Honest Labour, que os catapultou para um estatuto mais global e os transformou num fenómeno da música experimental. As colagens de diferentes elementos que se uniam numa aura ambient foram um perfeito exemplo do que é o afrofuturismo: a apropriação de tecnologias avançadas como símbolo de emancipação, ao mesmo tempo que as próprias texturas utilizadas são também elas marcos históricos na corrente afrofuturista, como o techno, o house e o dub, todos eles extremamente dilatados ao longo de concerto, unidos apenas pela vibe sonora que pertence à identidade sonora bem específica da banda. Este projecto é também em si uma adaptação da pergunta que propusemos inicialmente: quão longe sonoramente consegue ir um projeto sem que ele perca a sua identidade? Por entre mil e uma influências diferentes, a narrativa do concerto foi bastante clara e não causou de todo qualquer tipo de disforia sonora.

A sensibilidade e a transmissão de emoções fortes através das suas músicas foi talvez o que causou mais impacto no público, que admirava especado a clareza e imponência do som, algo que nem os problemas técnicos conseguiram apagar. Desde o momento que entrámos que fomos completamente submersos no mundo dos Space Afrika, que foi também clarificado pela repetição eventual de algumas camadas e texturas (voltaram ao início várias vezes), que deu sensação que todos os sons existem numa espécie de névoa em simultâneo, e calhou-nos a nós eventualmente encontrá-las e reencontrá-las no meio.



O que faltou ao duo britânico foi talvez um engagement maior por parte do público, como se ao mesmo tempo que fomos submersos sentíssemos uma barreira entre nós e eles, barreira essa que muito rapidamente desapareceu quando entraram em palco os artistas seguintes, Croation Amor e Varg2™. O duo, acompanhado de strobes intensos que nos levavam finalmente para o universo da música de dança, exploraram grande parte do reportório que têm em conjunto, acabando por não incidirem especialmente em Body of Content, disco lançado este ano. 

Com passagens pelo trap e pelo ambient, rapidamente se percebeu que a direcção que os membros da Posh Isolation estavam a tomar era o da rave, mas desconstruindo algumas das importantes “leis” que existem nesse meio, especialmente a da existência de previsibilidade que nos permite entrar num universo onde o ritmo nos guia sem pensar. Mas essa quebra das regras não impediu que um público esfomeado para explorar os limites daquela sala inaugurasse a pista de dança com beats intensos e por vezes caóticos, onde as melodias limpas e etéreas de Croatian Amor se conglomeravam com o caos explosivos das batidas de Varg2™, e acaba por ser incrível um dos artistas com a persona mais “‘tou ‘ma cagar” que por aí andam ter uma química tão forte e funcionar tão surpreendentemente bem com um artista minucioso, atento ao detalhe e sensível. Mas ela existe, é palpável, e a troca de afectos entre os dois em cima de palco é mais uma prova clara disso.

Terminados os concertos no CCVF, chegou a altura de conhecermos o último espaço da noite, o Teatro de São Mamede, que parecia ser o espaço ideal para nos dedicarmos por inteiro à rave e à dança. Mas para lá chegarmos ainda tínhamos de esperar um pouco.



É inevitável que o ambiente que rodeia um artista o influencie quando produz. O melhor exemplo disso é o techno, que não existiria se Detroit não fosse um dos principais núcleos industriais dos Estados Unidos. E isso leva-nos a questionar as origens da instabilidade e das texturas confrontativas e destrutivas do produtor palestiniano Muqata’a. As próprias músicas parecem por vezes relembrar um cenário caótico de guerra, sempre imprevisível, com sons glitchy agressivos e por vezes repetitivos como se tratassem de uma arma automática, e que retratam por vezes tanto esperança como desespero. Tudo isto pode acabar por não ser verdade, mas dificilmente não o será, sendo o músico um dos principais dinamizadores da cena DIY na Palestina e recorrendo frequentemente a field recordings.

Muqata’a é uma luta constante contra qualquer tipo de tédio, nenhum loop é completamente igual, nenhuma secção se repete, o caminho é sempre para frente e sem nunca olhar para trás. Passando pelo dubstep, o trap, e breakbeats (e uma abordagem sonoramente árabe a estes), sempre sem qualquer coesão, era impossível não ficar abismado pelas capacidades de produção e modulação de som do produtor sediado em Ramallah. Hipnotizante e, ao mesmo tempo, desconcertante.



Por esta altura, com mais de quatro horas de concertos e mais umas tantas para chegar a Guimarães nas pernas, o cansaço começava a acusar, tanto físico como auditivo. Mas tudo isso desapareceu no momento em que Loraine James se fez ouvir. Após tantos concertos que nos obrigam um esforço auditivo tão grande e nos deixam sujeitos a tanta volatilidade, a produtora britânica foi a cereja no topo do bolo que foi a noite, ao dar-nos, finalmente, alguma coesão, e que nos permitiu finalmente descansar o cérebro e deixar o nosso corpo tomar as rédeas.

A própria sonoridade por si só também era menos pesada que as restantes performances da noite, que tinham todas um aspecto mais introspectivo e de certa forma melancólico, libertando-nos também desse peso emocional que nos prendia. Loraine navegou pelo que se tem feito no UK, desde drill a bass music a breakbeats e algumas coisas difíceis de designar, e não há palavras nem número de cafés que descrevam o quão contagiante é a energia do set da produtora. Super focada, música puxada mas ao mesmo tempo leve, recarregadora natural de baterias, basslines que nos deixam boquiabertos, um remédio para um ouvido cansado, Loraine é isso e muito mais.



Para finalizar a noite, ninguém melhor que Arrogance Arrogance, que domina o clubbing do Norte de Portugal e nos libertou as últimas gotas de suor que ainda nos restavam e nos obrigou a gastar toda a energia que ainda tínhamos.

Este dia começou numa desconstrução leve de cânones de jazz, passando para densas e imersivas paisagens sonoras, para uma rave sem leis, a total desconstrução de elementos, e, por fim, a catarse via dança despreocupada. O primeiro dia do Mucho Flow não poderia ter corrido melhor, e dificilmente conseguia ter encontrado melhor equilíbrio entre tantas nuances diferentes que, neste contexto, faziam todo o sentido existirem no mesmo universo. Agora é hora de recarregar baterias, aproveitar a bonita cidade em que estamos, e prepararmo-nos para mais uma noite. 


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