Há dias que nos fazem crer que estar vivo é overrated. Nem tudo nos tem de puxar para cima, e a música dos Still House Plants é daqueles downers que todos precisamos de experienciar na vida para que consigamos parar e reflectir. Porque é precisamente quando o barco vai ao fundo que nos colocamos as questões mais basilares da nossa existência. As tomadas de decisões deixam de ser binárias, o que sentimos e provocamos em quem nos rodeia passa a ter todo o peso do mundo e percebemos que cada passo dado é um traçado a caneta — não há borracha que o apague e todos sabemos que o corrector fica feio na folha. Esta é uma lição que Jess Hickie-Kallenbach (voz), David Kennedy (bateria) e Finlay Clark (guitarra) sabem bem. Pregam-na sem receio de se exporem demasiado. Parece que já morreram e renasceram 10 vezes, e à 11ª tentativa no jogo da realidade surgem despidos de quaisquer receios. E talvez seja isso que faz com que pareça que toquem de olhos fechados. Podiam existir paredes a separá-los em palco, que por mais complexas que sejam as suas composições eles continuariam sem falhar uma nota neste segundo dia do Mucho Flow’24. É como se já tivessem lambido as feridas uns dos outros e partilhassem das mesmas dores. É um nível de intimidade que poucas bandas alcançam. Os intrincados esquemas das suas canções funcionam como um teste a isso mesmo: um só tema pode passar por um ilimitado número de cadências, sem BPMs definidos, mas a sintonia mantém-nos perfeitamente alinhados e coordenados, sem que nunca soem a uma máquina programada, de tão orgânica que é a sua ligação.
É preciso uma elevada dose de compromisso e estar disposto a deixar morrer o ego para escutar o trio inglês. O seu post-rock mutante é informado por um sem-número de outras linguagens musicais — há laivos de soul e jazz, ideias que podem ser matemáticas e ultra-calculadas como mais experimentais, sofrência emo e abstracção vanguardista — e as letras cantadas por Jess Hickie-Kallenbach são pequenos poemas repetidos até à exaustão — uns funcionam como mantras para deixar a mensagem bem cravada nas nossas mentes, outros soam ao desespero de quem sente estar a sofrer no silêncio sem que mais ninguém repare, pare e ajude. Ao longo de todo o concerto, a vocalista leva as mãos à cabeça, como quem se encontra numa relação íntima com a dor que é estar à beira do abismo emocional. Já Finlay Clark arranha as cordas da guitarra como se de auto-flegelo se tratasse, abrindo novas fendas no corpo a cada som laboratorialmente esculpido com auxílio de vários pedais de efeitos. Completamente imerso num transe, David Kennedy não tem qualquer metrónomo dentro de si e deixa que seja o sentimento a teleguiar a velocidade dos seus deliciosos e pouco ortodoxos grooves. No final, com a belíssima “M M M” a dar o alinhamento por encerrado, sente-se a leveza em todos os rostos ao redor depois da purga.
Do Teatro Jordão passamos para o Centro Cultural Vila Flor, embalados após a dança no fundo do poço e atraídos pela ideia de nos mantermos na penumbra por mais um bocado. Foi isso mesmo que Mabe Fratti nos proporcionou. O lado mais atmosférico que tem registado em discos passados ficou à porta para dar lugar a uma performance sonoramente encorpada, deixando o seu lado rockeiro vir o mais ao de cima possível. A cantora e violoncelista guatemala nascida María Belén Fratti Sierra trouxe o seu projecto artístico a Guimarães sob a forma de trio, contando com as ajudas de Héctor Tosta (guitarra) e Gibran Andrade (bateria). A actuação acontece numa altura em que a artista e compositora se encontra na mutação entre o experimentalismo mais puro e a abordagem a descair para o pop na escrita das suas canções, algo que se sente no novo álbum Sentir Que No Sabes mas que fica ainda mais evidente quando transporta a música para cima do palco. “Kravitz” e “Oídos” são alguns desses exemplos, mas “Quieras o no” e “Angel nuevo” mostram-nos que a ruptura com os jogos de sombras e texturas não é total, permitindo que o seu alinhamento ao vivo seja dinâmico e com vários contrastes sonoros. Entre o indie rock, o jazz e a electrónica aventureira, Fratti manteve a toada introspectiva que nos permitiu continuar dentro do balanço da prestação que tínhamos assistido anteriormente.
Domados pela letargia e pela inércia da vida, estávamos dispostos a romper esse ciclo com Jawnino e o seu rap frenético bem ao estilo de Londres, onde a palavra dita tem quase sempre mais impacto devido às electrizantes batidas em que nos é servida. Nesse combate de kicks e snares que nos deixa nocauteados, há estéticas para todos os gostos, indo dos mais óbvios ritmos do grime e do trap ao desafio que é rimar sobre cadências techno e IDM. A música do rapper que tem construído catálogo nos últimos 5 anos conseguiu, de facto, puxar-nos para cima e largar os problemas em cima da pista de dança montada no CCVF, mas o tempo que passou em cima do palco soube a muito pouco. 40, a mixtape de estreia que rubricou este ano, conta com 41 minutos de duração, e há toda uma outra panóplia de singles e EPs aos quais Jawnino poderia ter recorrido para esticar a sua paupérrima prestação de cerca de 20 minutos (quase os mesmos que o seu DJ esteve sozinho em palco no “aquecimento”). A plateia estava ao rubro quando, do nada, o britânico larga um “thank you” e abandona o nosso campo de visão. Não podemos dizer que o MC tenha feito um mau trabalho durante o tempo em que empunhou o microfone, mas o Mucho Flow merecia mais do que uma performance de “picar o ponto”. Talvez Jawnino também precise de se questionar sobre se é esta a forma correcta de abordar a vida. Haverá certamente muitos artistas que dariam o mundo para ter a oportunidade que o londrino pareceu despresar.