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Fotografia: Neva Films
Publicado a: 01/11/2019

Perrear numa discoteca improvisada em Braga.

Ms Nina + La Zowi no Theatro Circo: sem máscaras nem bruxas

Fotografia: Neva Films
Publicado a: 01/11/2019

Já se via há algum tempo — pelo menos, desde a altura do Semibreve, na semana passada — um outdoor gigante de promoção a este concerto. Ms Nina e La Zowi, de Espanha para Braga, exportação de fenómeno contemporâneo que se dilui entre a modernidade do trap e coisas já previamente estabelecidas, como o reggaeton (ainda que recuperado recentemente). Seja um ou o outro, é inequivocamente música urbana; para que lhe chamemos música feminista, há que fazer alguma ginástica.

Nem sabíamos ao certo ao que íamos. A sala principal do Theatro Circo é imponente e austera; um espaço à moda antiga que senta 900 pessoas, de carisma clássico, e portanto bem longe de ser uma cave de clubbing. Como poderia algo do género resultar aqui? Pouco antes da hora marcada, a dúzia de pessoas que aguardava a abertura de portas não se coadunava etariamente com esta proposta (saberiam eles que La Zowi reapropria “¡putas!”, tal como outrora o hip hop percebeu que ter mão na palavra “nigga” é recentrar o poder da linguagem?). De resto, os mais jovens chegaram depois, alguns até mascarados, não estivéssemos no Dia das Bruxas. A maior parte das cadeiras só foi ocupada nos entretantos decorridos até chegar um primeiro DJ, Mark Luva. Lançou-se à mesa de mistura e disparou depois umas malhas, mote para que se formasse gradualmente uma moldura humana à volta das grades da sala. Primeiro, timidamente; pouco depois, o jogo de luzes faz a sua arte, os drops suculentos sucedem-se (trap, leves scratches, e muita coisa hispânica, além de passagem por “Putas” da La Zowi), e damos por nós a improvisar uma discoteca num requintado salão do início do século XX. As meninas nem vê-las, mas apesar da demora, o warm-up foi necessário e uma decisão inteligente. Finalmente chega La Zowi ao palco; aguça-se a curiosidade para o que daqui virá, ela que mal chega e já se mostra mandona e irrequieta; invoca parte de uma personagem que, a ter alguma coisa que ver com feminismo, é na postura de não dever nada a ninguém. “Puta” para aqui, “puta” para ali, e a coisa a dar-se connosco mais a reboque do DJ, reconhecendo pedaços de canções, do que atrás dela, que está mergulhada num auto-tune multi-camada que não estimula tanto quanto a sua presença dançante e reivindicativa. A dada altura chega uma bailarina, e as duas fazem acontecer naquele palco (é curioso como o twerk, que até diz muito à cultura de onde origina o reggaeton, é tão omnipresente, e até utilizado como novo símbolo de empowerment). Em boa verdade, discutiu-se muito quem é ¡puta! de quem (nós todos dela, obviamente) sem que o espectáculo alguma vez indicasse uma lógica ou alinhamento; resultaria melhor num sítio mais pequeno. Há uma óbvia energia sexual que culmina numa descida à plateia quando um rapaz foi manietado e dele fizeram o que queriam (fugazmente esteve preso à grade com um joelho de uma delas sobre o seu ombro; mais tarde, um dedo salivado terá percorrido a sua face). Foi metido pelas duas no chinelo, o coitado que provavelmente nem mereceu, e fica a impressão de que La Zowi está-se bem cagando para o que se pensa dela, e mais ainda que se dane esse feminismo que se lhe incute. Já o jovem, vimo-lo mais tarde, à saída do Theatro, e folguei sabê-lo não traumatizado; até pelo contrário! Se no máximo lamentava não ter imagens do sucedido (como eu o entendo…), houve quem não tivesse visto por não ter paciência para tanto. “Isto é programação digna do Theatro Circo? Devia era estar num cabaré!”, dizia uma senhora, tanto para os seus como para que a ouvissem, durante o intervalo. Ms Nina viria depois. Face ao que acontecera momentos atrás, o concerto seguinte encaixou melhor com a habitual linha programática do Theatro Circo (que, apesar de arriscar de quando em vez na música urbana, tem uma fortíssima programação no ecletismo do que chamamos música do mundo). Ms Nina trouxe maior domínio na atitude, e o próprio espectáculo tem um foco mais esclarecido, incidindo predominantemente no novo trabalho Perreando por Fuera, Llorando por Dentro. Uma vez mais, um DJ para apoio — Mygal X, mais endiabrado que o anterior —, Nina veio acompanhada por duas bailarinas, também elas mais regradas (embora haja ainda, graças a Deus, muito entusiasmo pelo “cucu”), e o alinhamento passa por coisas bem conhecidas. Antes de “La Diabla” fez uma referência à salsa, e ouviu-se “Gasolina” de Daddy Yankee como prelúdio a “Gata Fina” — “gata fina, gata fina/ quiero gasolina” é uma nota bem óbvia à música dessa autêntica instituição do reggaeton. Quer o público conheça ou não o disco, o corpo reagiu bem e isso é tudo o que se pode pedir. Não tivesse sido La Zowi a iniciar a noite, e parece-me que Ms Nina não alienaria aquela fatia adulta para a qual o Theatro Circo ainda é sinónimo de alguns valores antiquados; ela está bem mais próxima desse ideal de música do mundo, porque a matriz é indubitavelmente latina e é a primeira impressão que chega antes de, aqui e ali, termos apontamentos que a remetem para a urbanidade do reggaeton; La Zowi, pelo contrário, é simbiótica da estética do trap e dependente do auto-tune. Quando vistas à mesma luz, estão ambas emancipadas do homem, valorizando a sua independência e a sua imagem, responsáveis pela própria sexualidade (consequente sexualização); talvez seja este derradeiro factor que justifica, tal como se invocou ao longo deste texto, o hipotético novo feminismo. A festa foi boa, e julgo bom sinal que tenha terminado só depois de uma última música lançada já sem ninguém em palco. As luzes da sala principal acendiam lentamente quando ainda se dançava tal como se estivesse ainda escuro. Talvez daqui a uns anos se releve a memória deste concerto, idealmente para celebrar a carreira destas duas; por enquanto, foi um óptimo aquecimento para uma noite que se quer longa, e cheia de diabruras.  

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