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Publicado a: 23/08/2015

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Quando Ornette Coleman se apresentou em quarteto no Five Spot Café de Nova Iorque no Outono de 1959 o público não podia imaginar o que o esperava. A aparente loucura expressa no mar de ruído produzido por quatro solos em simultâneo, sem estrutura ou ordem convencional que pudesse ser reconhecida, tinha também uma espessura política – o desejo de liberdade não existia apenas em relação às progressões harmónicas ou às bases rítmicas comuns no hard bop, mas em relação à própria vida – Fred Gioia, a propósito de 50 anos de free jazz, escreveu que “parte do fascínio exercido por esta música passava pelo seu estatuto marginal, pela sua exclusão das estruturas de poder da sociedade a que era suposto opor-se.” Ora, tendo em conta o “peso” histórico da palavra “free” fará então sentido usá-la em relação a outros géneros musicais? Free folk ou free rock são duas hipóteses avançadas em tempos recentes. Em ambos os casos, a palavra “free” parece traduzir uma vontade de ruptura, embora nem sempre estritamente musical: a “bagagem” (ética, política, filosófica ou até emocional…) que os géneros vão coleccionando torna-se por vezes incómoda para quem apenas pretende exprimir-se sem ter que estar permanentemente a consultar um “livro de estilo”.

O funk é um género onde a bagagem referida no parágrafo anterior é absolutamente crucial, sobretudo a emocional. A grande invenção de James Brown capitalizou desde o início na carga sexual manifestada na repetição, na força e no suor debitado pelos seus protagonistas – se a soul era espírito, o funk era corpo. Esta música possuiu sempre esse lado mais ritualístico e encenado, como uma manifestação pura de identidade – negra e bastante física, pois claro: “say it loud, I’m black and I’m proud”, “like a sex machine”… É por aí que (também) se deve entender o recurso à palavra funk por estetas como Juan Atkins ou Derrick May: mesmo na música que não vivia de um pulsar colectivo e que deslocava a disciplina da repetição para os circuitos integrados de máquinas com nomes de ficção científica (Drumulator, TR-808?…) era possível detectar sem grandes problemas o volume da tal bagagem. A manifestação de identidade e a encenação de novos rituais colectivos perante uma ideia particular de comunidade continuavam a ser coordenadas importantes. O funk mantinha a sua importância, como som, mas também como ideia.

 


 


A pergunta impõe-se, então: o que acontece quando se ignora a tal bagagem e se toma o funk como matéria de laboratório, rompendo com o “livro de estilo” seguido por todas as bandas – dos Dap Kings de Sharon Jones e Amy Winehouse aos Soul Investigators de Nicole Willis – que ajudaram a recolocar o funk na ordem do dia? Untitled, de MRR-ADM, um dez polegadas que conta com a colaboração de Malcolm Catto e onde todas as regras são quebradas pode muito bem ser a resposta para essa questão. Free funk (e psychedelic…) é o classificativo avançado no site discogs.com.

Pode parecer muito esotérico, mas MRR-ADM (o nome é a primeira regra quebrada – comparem-no a “Dap Kings” ou “Soul Investigators”…) é, na verdade, o conjunto de iniciais de Mike Raymond Russell e Adam Douglas Manella, até muito recentemente conhecidos como MHE. Esta dupla possui uma curiosíssima discografia espalhada essencialmente por compilações e alguns 7 polegadas da Sound In Color, editora responsável por Space Shift, a estreia a solo de Steve Spacek. Os títulos das suas produções são uma simples sequência numérica (segunda regra quebrada: onde estão palavras como “groove”, “grease”, “shuffle”, “skank” ou outros pedaços de calão que funcionam como sinónimos de ritmo?) e Untitled inclui novas peças entre “009” e “012” além de uma faixa bónus de Catto, só de bateria, a célula primal do funk. Elvin Jones, um dos arquitectos da bateria no free jazz, explicou a Valerie Wilmer que o papel do baterista é manter o tempo: “quer aches que o estás a fazer ou não, de uma forma ou de outra o baterista mantém sempre o tempo, quer consciente ou subconscientemente – ou inconscientemente – o baterista está a manter o tempo ou um tempo implícito. E isto independentemente do quão abstracto que possa parecer.” Até a revolução tem um ritmo.

 


 


Malcolm Catto há muito que mostra esta tendência para a abstracção: basta ouvir Popcorn Bubble Fish (2001) ou o posterior Bubblefish Breaks (2002) editados na Mo’ Wax para entender que a bateria sempre foi o interface de Catto com o espaço sideral. Antes dessas edições no selo de James Lavelle, Catto já havia marcado presença na cena nu-funk com os Soul Destroyers, gente do clássico e poderoso Blow Your Top (2000). Mais recentemente, Malcolm participou no colectivo de Connie Price, os Keystones (que editaram na Stones Throw), surgiu em palco com DJ Shadow (Live! In Tune and On Time) e posteriormente integrou os Heliocentrics que antes de editarem o seu incrível álbum de estreia (Out There, na Stones Throw, foi um dos melhores discos de 2007) serviram de mão de obra para “This Time”, tema mais luminoso de The Outsider.

Juntos, MRR-ADM e Catto protagonizam um dos mais sérios passos da nova geração funk em direcção ao futuro. Depois de retirada ao funk toda a carga cultural e histórica, resta a fundação: o tempo, no sentido musical do termo, a tal ideia de ritmo de que Elvin Jones falava. Nada mais parece importar e daí a completa ausência de informação na capa (a remeter para o anónimo território dos library records e a quebrar com mais uma regra de ouro no mundo do funk onde uma forte identidade gráfica sempre foi requisito obrigatório) e o total despojamento do interior – não há títulos de temas (a numeração referida circula na net), informação de editora, logos, nada. Só três palavras surgem sobre o plástico que protege a capa: “Featuring”, “Malcolm” e “Catto”. Só a bateria importa. A bateria e farrapos de electrónica primitiva, o fuzz de guitarras em gestão mínima de recursos, o reverb limpo e clínico, como se tudo isto tivesse sido gravado num laboratório e não num daqueles estúdios onde as paredes já chegam para contar uma história.

Untitled é funk livre porque não exibe nenhuma intenção, não tem um programa, uma mensagem ou outro propósito aparente que não seja o descarnar da sua própria essência. E nesse sentido é uma pequena obra-prima, um gesto de corte radical e um rasgo de futuro. Tudo isto, em edição limitada de mil exemplares. Aqui.

 

 

*Texto originalmente publicado na revista Op em meados de 2008.

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