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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/06/2025

À conversa com o líder espiritual do grupo, RA Washington.

Mourning [A] BLKstar: “Afrofuturismo não tem um significado monolítico e há pessoas a escrever sobre isso a um nível realmente profundo”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/06/2025

Flowers for the Living é o título do novo álbum dos incríveis Mourning (A) BLKstar, colectivo de Cleveland, Ohio, que desafia de forma criativa as fronteiras que separam o jazz do hip hop, o R&B do punk, o improviso e a experimentação da composição clássica. LaToya Kent e James Longs são os principais vocalistas, Dante Foley assume a fundação rítmica com a sua bateria, Theresa May é a trompetista, Pete Saudek contribui com teclados e guitarra, e Jah Nada posiciona-se por trás da mesa de mistura, comandando o lado técnico da produção quando não está a tocar baixo. Mas é sobre RA Washington que recai a direcção do projecto, ele que também assegura vozes, comanda samplers e caixas de ritmos e tem input decisivo na produção geral.

Depois do monumental The Cycle, álbum de 2020, o novo trabalho recoloca os Mourning (A) BLKstar no centro de um turbilhão criativo que tem varrido a música americana graças ao impacto do trabalho de artistas como Moor Mother, Damon Locks, Saul Williams, Kassa Overall, billy woods e outros. Há uma intensa visão política e humanista na base da música que o colectivo liderado por RA Washington produz, aceitando no seu posicionamento afrofuturista uma visão queer e activista da arte. O Rimas e Batidas conversou com RA Washington numa ligação por vídeo que o mostrava no seu estúdio, rodeado das ferramentas de criação que está permanentemente a usar à mercê de um ímpeto composicional que é inabalável.

Dizem-nos os próprios num comunicado de apresentação: “Mourning [A] BLKstar é uma mistura multigeracional, sem distinção de género e não conformista da cultura negra, dedicada a partilhar histórias e canções sobre o apocalipse que se desenrola nos Estados Unidos. A sua música combina instrumentos ao vivo com produção hip hop, criando frequências sonoras que iluminam a diáspora africana. O colectivo afrofuturista sediado nos Estados Unidos, fundado em Cleveland, continua a fazer digressões pela sua música em todo o mundo, tocando em festivais como o Crossing Border em Berlim com Lonnie Holley, o Big Ears Festival e o Le Guess Who? em Utrecht”. Dedos cruzados para os apanharmos em Portugal tão depressa quanto possível.



Flowers for the Living marca um caminho criativo de 10 anos para Mourning [A] BLKstar. E olhando para os primeiros dias do projecto, o que é que você diria que mudou ou o que é que permaneceu igual?

Essa é uma boa pergunta. O que mudou? Estamos a aprender a colaborar completamente à medida que vamos progredindo. Então, agora, eu diria que o nosso processo está realmente a espelhar o que os músicos negros faziam no free jazz, a sua prática comunitária. Alguém começa e todos se juntam. A única diferença é que nós anotamos as nossas partes, cada indivíduo escreve a sua parte. Então, as cordas escrevem para as cordas, o baixo escreve para o baixo, a guitarra, as teclas e os sopros é igual. Todos começam a escrever consoante os sons ou os loops com que eu começo. Essa parte inicial mantém-se, mas a colaboração é mais expansiva do que era quando começámos. Eu acho que isso é bom e mostra solidariedade e crescimento. Sinto que toda a gente está realmente a investir nisto, desse ponto-de-vista. Agora já nem pensamos nas coisas, elas simplesmente acontecem. Essa evolução é fixe.

Mencionou que usa samples e loops como um ponto de início, como um gatilho para o processo criativo. Onde é que “desenterra” esses samples e loops? Eles vêm de discos de vinil antigos, YouTube, TV?

Quando começámos, eu fazia os beats e escrevia as letras com a LaToya Kent. Assim que começámos a ter músicos envolvidos no projecto, eles iam adicionando coisas por cima. Mas os samples sempre foram retirados de discos, cassetes de música e VHS, ou eram sons que eu fazia e transformava em samples. Há uma variedade de métodos para este disco, mas na sua maioria os samples foram criados por nós.

Antes deste álbum, vocês andaram em digreção com o Lonnie Holley. Eu conheci-o há alguns anos aqui em Portugal e achei-o de um espírito realmente inspirador. O trabalho que fizeram com ele na estrada influenciou de alguma forma a direcção do novo álbum?

Se você conhece o Lonnie, você é influenciado pela sua vida, pela forma como ele aborda a arte, pela sua filosofia… Mas não me interprete mal: eu acho que o Lonnie Holley pode ser um génio, mas não no conceito ocidental, de como os ocidentais se posicionam por via da academia ou do capital. O Lonnie é a pessoa mais rica que conheci no mundo espiritual, mas ele não é um pregador, ele não é dogmático. Eu nunca conheci alguém mais aberto e menos preocupado com qualquer uma das ambições ocidentais do que ele. Ele só faz o seu trabalho, não tem ego envolvido. Você olha para ele de uma maneira que… “Então você é mundialmente famoso, tem a sua arte em museus e em colecções permanentes, todo mundo quer tocar consigo, e você não se importa?” Para colocar as coisas de forma simples, isso não o afecta minimamente de um ponto-de-vista de ego. Deixa uma pessoa a pensar: “Espera um minuto, eu pensei que era assim que se conseguiam as coisas, que era necessário ter ambição nesta vida artística.” Então ele mudou muito o nosso ADN. O seu espírito, a sua personagem e a alegria… Eu não acho que ele informou o nosso som, mas definitivamente mudou-nos como seres humanos. Ele passou a ocupar um espaço muito grande na minha cabeça, porque eu sempre senti que não estava a ser completamente compreendido e que não tinha um modelo de como ser criativo. Uma pessoa aprende os idiomas ocidentais para explicar ou para mostrar o seu trabalho artístico… Ele ensinou-me tanto apenas com a sua abordagem. Eu percebi melhor o conceito de arte bruta, o conceito de ser um forasteiro. Você sabe, os ocidentais adoram as pessoas negras que estão envolvidas numa tradição que eles não conseguem explicar ou sobre a qual não conseguem escrever um artigo, mas eu estava neste espaço estranho, nebuloso, em que as pessoas poderiam escrever um artigo sobre isso, mas eu também tinha o espírito, essa coisa não binária que é difícil de entender. Eu realmente passei algum tempo a pensar nisso, e tive de interiorizar algumas lições e deixar sair outras, porque não me serviam. Eu posso não estar a conseguir expressar-me muito bem sobre isto, porque é uma coisa emocional. Ele significa tanto para mim, pessoalmente, e para o colectivo, e nós realmente gostámos do tempo que passámos com ele.

E esse colectivo está a expandir-se, já que vocês receberam novos artistas para este disco — Fatboi Sharif, Lee Bains, Jah Nada… Pode falar-me um pouco sobre eles?

O Lee Bains tem estado activo nos últimos 20 e tal anos como cantor e guitarrista. Na verdade, ele foi um dos alunos de Lonnie quando ainda era criança. O Lonnie ensinava arte em escolas do Alabama e o Lee Bains foi um dos seus primeiros estudantes. Eles reconectaram-se quando o Lee Bains já era adulto. Mas além disso, o Lee já estava no seu caminho próprio. Foi ele que falou à Don Giovanni Records sobre Mourning [A] BLKstar. Ele veio para Cleveland com a banda dele e nós conhecemo-nos. Depois voltámos a estar juntos de novo quando fomos em digressão com os Algiers. Ele apresentou-nos à Don Giovanni e foi assim que nós ficámos na editora. Então, o Lee Bains é como se fosse nosso irmão. Fatboi Sharif, a LaToya e o Dante Foley conheceram-se através dos Algiers. Os Algiers gravaram uma performance do seu último disco e eles fizeram parte dessa performance. A LaToya e o Dante voltaram desse evento a falar sobre o Fatboi Sharif, e então nós tocámos com ele em Nova Iorque e ele matou a cena. Nós ficámos tipo: “Uau, esse gajo é louco!” Ele é realmente prolífico, está a ter uma ascensão que eu nunca tinha visto antes na cena mais inconvencional no campo do hip hop e nas comunidades subterrâneas. E ele está a fazer por isso. Ele trabalha, ele está sempre a colaborar com outras pessoas, ele tem músicas, ele tem tantas músicas… Nós quisemos que ele estivesse no disco. O Jah Nada colabora há muito tempo com a Cleveland Tapes e fez algumas gravações para nós no início. Ele acabou por ser o engenheiro de som para muitas coisas de LeRoi Da Moor que eu fazia no início, bem como para algumas coisas que eu e a LaToya fazíamos. Depois voltou a gravar connosco para o The Cycle — ele gravou e misturou o The Cycle. E nós falámos: “Tu tocas baixo, por que é que não te juntas à banda?” E ele assim fez. Ele é originalmente de Cleveland, mas passou uma temporada longe, depois voltou e juntou-se à banda. Mas ele esteve envolvido connosco nos últimos 15 anos. Então, tê-lo como músico e produtor neste disco foi especial.

Então, Mourning [A] BLKstar está a tornar-se uma família ainda maior e isso faz-me lembrar de todos esses coletivos antigos, como a Arkestra ou o Art Ensemble of Chicago — grandes bandas que empurraram a música para o futuro. E vocês estão a fazer o mesmo agora.

Isso é um grande elogio. Obrigado por essa reflexão. Nós somos conscientes de todas as pessoas que vieram antes e nós honramo-los com os nossos esforços. Para mim, sendo da geração do hip hop, os primeiros grandes ensembles que eu vi foram Freestyle Fellowship e Public Enemy. Eles deixavam-me tipo: “Uau!” Eu via o Hank Shocklee e… Eu queria ser como os Bomb Squad, depois como os Wu-Tang Clan e coisas assim. Eu queria ser como os The Ummah, a equipa que produzia para os A Tribe Called Quest — o J Dilla, o Ali Shaheed Muhammad e o Q-Tip. Então, esse tipo de conceitos que existiam na cultura… O que eu quero dizer é que faz sentido que alguém, especialmente vindo do norte, como eu, onde não existe uma grande indústria de média… Mesmo que existam grandes instituições culturais e coisas assim, não existem grandes jornalistas ou um monte de estações de rádio e revistas independentes ou algo assim. Então as pessoas têm que se preparar para… Eu sempre senti que um grupo é melhor do que ser apenas um. Também tem a parte da solidariedade. As pessoas podem ver que os músicos estão a dar prioridade ao grupo. Mesmo sem dizer uma palavra, você pode empurrar o colectivo apenas por existir.

Eu estava a reler de novo o artigo de capa da The Wire Magazine, de 2020, que foi onde li sobre vocês pela primeira vez. E há lá uma frase que fala sobre como o Reckoning mostra como vocês se enraiveceram contra a guerra que o Estado dos EUA faz contra os seus cidadãos. E você ainda agora estava a descrever como o lugar onde vocês estão baseados ainda tem essas instituições. Mas eu ando a ler notícias todos os dias sobre como o Donald Trump está a retirar os fundos ao Museu Africano de História do Smithsonian, à NPR e às universidades que mostram abertura para a acção afirmativa. Então, estes tempos que vivemos são tempos muito sombrios, não são? Nada parece ter mudado desde essa peça da The Wire…

Sim, são alarmantes porque é tudo baseado no conceito de… Bem, você sabe. Eles descobriram um certo zeitgeist que sempre existiu neste país e eles estão a manipular para roubar mais riqueza. Então eles estão a cortar os fundos a todos os lugares de onde alguma resposta crítica poderia surgir, de qualquer forma. Ele está a seguir um manual que não criou — está a ser manipulado para o fazer. Eu não sou realmente um grande entendido sobre política nem nada desse género, mas parece-me que isto é uma tentativa de extrair riqueza e isolar os Estados Unidos, de forma a causar o pânico para que depois possam soltar o maior arsenal militar do planeta para extrair produtos, serviços e materiais. É um tempo assustador aqui nos Estados Unidos, porque nós, enquanto país, ainda não estamos preparados para resistir. Mas há pequenas facções de resistência e esperamos que essas facções cresçam e se envolvam na luta pela solidariedade em todo o mundo. É o mesmo problema que sempre existiu. Então… Veremos o que acontece.

Bem, no “Legacy to Begin” vocês dizem, quase como um mantra: “We can save ourselves”.

Sim, acreditamos nisso.

A arte pode ser uma forma de resistência, com certeza. Pode falar-me um pouco sobre o lugar onde você está agora? É o seu estúdio pessoal? O estúdio da banda?

Oh, isto é a Unlearn House. É o nosso espaço de santuário, digamos assim. E é aqui que todos os discos são feitos. Em diferentes momentos das nossas vidas, diferentes pessoas viveram aqui. Mas sim, é o BLKstar Studio, onde nós fizemos os ensaios e gravámos o Flowers for the Living.

Há uma palavra que eu li na nota de lançamento do novo álbum, e que eu continuo a ler aplicada a muitas coisas diferentes. Essa palavra é “afrofuturismo”. É como a tag do jazz espiritual, que é tão usada — às vezes, muito correctamente, e, noutras vezes, não tão correctamente. Pode explicar-me o que entende pessoalmente por afrofuturismo?

Está a explodir, realmente. Eu ouvi falar do conceito de afrofuturismo ao assistir a um filme, The Last Angel of History, do John Akomfrah. A premissa do filme era que Sun Ra, Lee “Scratch” Perry e George Clinton tinham criado uma espécie de portal através do qual a negritude se poderia expandir para o futuro. E eles usaram a iconografia do espaço e essas coisas para indicar ou mostrar a nossa conexão com o futuro, a possibilidade de nós estarmos no futuro. Então, é um conceito teórico sobre pessoas negras existirem no futuro. É também uma maneira de organizar uma certa negritude política para disseminar para os ouvintes e leitores e coisas assim. Falar em afrofuturismo também nos traz à memória Octavia E. Butler, Samuel R. Delany… Essas figuras servem para os jovens se conectarem a isso. E o afrofuturismo não tem um significado monolítico e eu sei que há pessoas que estão a escrever sobre isso a um nível realmente profundo. Vem-me à mente Alondra Nelson, esse tipo de pessoas. Para nós é apenas uma maneira de nos conectarmos, mas as pessoas usam o termo, os média usam o termo, é um pouco mais fácil para catalogar coisas. Eu meio que gostaria de ter pensado sobre formas diferentes para poder apresentar o termo, mas quando começámos não havia esta explosão do afrofuturismo como existe agora. Então, dessa perspectiva, é interessante ver como algo que quase ninguém sabe o que é se tornou num termo tão popular, quase dogmático.

Vocês estão neste momento na estrada, em digressão pela América e depois vêm para a Europa. Infelizmente, pelo menos por agora, não têm planos para Portugal, mas vamos ver se algo acontece até lá. Como estão a planear esse roteiro? Vocês viajam com a banda toda? A família inteira?

Vai toda a gente excepto os convidados do disco. Estamos animados com isso. Nós também estamos meio que como… Eu não sei se você conhece a banda Sweet Honey in the Rock.

Conheço, sim.

Então, eles tocam o repertório deles e também tocam as novas coisas. E nós também pensamos assim. Nós temos este ponto-de-vista: todos possuímos as músicas, como uma equipa; ninguém a detém por nós nem ninguém governa a nossa música. Nós conseguimos entrar em parcerias com as editoras e obtemos toda a propriedade do material, então tudo pertence a Mourning [A] BLKstar como uma equipa. Queremos manter vivo esse nosso livro de canções e, para isso, nós tocamos músicas que estão espalhadas por todo o nosso catálogo, e vamos sempre adicionando as coisas novas. Então, vai ser divertido adicionar essas músicas no repertório. Nós tocamos coisas dos primeiros álbuns até às que lançamos agora. E estamos sempre a mudar ao longo do tempo. Você pode ver-nos quatro vezes por mês e não vai ser os mesmos sets. Este é o nosso propósito.


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