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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/06/2021

Na vanguarda da exploração das possibilidades do som.

Morreu Jon Hassell, um criador e explorador de novos mundos sonoros

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 27/06/2021

O músico, compositor e pensador Jon Hassell faleceu ontem, aos 84 anos. A morte do artista norte-americano foi confirmada nas redes sociais pela sua família que fez saber em comunicado que “após pouco mais de um ano de luta através de complicações de saúde, Jon morreu tranquilamente às primeiras horas da manhã de causas naturais”. “Ele adorava a vida e abandonar este mundo foi uma luta já que havia muito mais que ele queria partilhar na música, na filosofia, na escrita”.

Hassell deixa uma sólida obra gravada, com o mais recente dos títulos, Seeing Through Sound (Pentimento Volume Two) a ter sido editado apenas o ano passado através da sua própria etiqueta Ndeya. É, no entanto, necessário recuar a 1978 para escutar o seu primeiro registo como líder, Vernal Equinox, trabalho que também mereceu reedição no ano passado.

Natural de Memphis, Tennessee, Jon Hassell formou-se na Eastman School of Music, em Nova Iorque, e daí rumou a Colónia, na Alemanha, onde durante dois anos estudou sob a orientação de Karlheinz Stockhausen integrando a mesma turma em que também se encontravam Irmin Schmidt e Holger Czukay, futuros membros dos Can. De regresso aos Estados Unidos em 1967, cruzou-se com Terry Riley, compositor com quem colaborou ao ter participado na primeira gravação da seminal obra In C. Hassell manteve-se próximo dessa escola de vanguarda norte-americana e colaborou igualmente no Theatre of Eternal Music de La Monte Young. Foi aliás no seio desse grupo que teve a oportunidade de estudar com o mestre indiano Pandit Pran Nath com quem aprendeu técnicas vocais e de respiração que haveria de aplicar extensivamente na sua abordagem ao trompete.

Este estudo atento de diferentes culturas permitiria mais tarde o desenvolvimento do seu conceito de “Quarto Mundo”. “Em Ocean of Sound (Serpent’s Tail, 1995), David Toop dedicava um capítulo inteiro a esse “quarto mundo” de Jon Hassell, artista cuja música era descrita como “psicotrópica na sua capacidade de activar mundos alienígenas na nossa imaginação através de estranhas justaposições”. O autor explica que discos de Hassell, como este Vernal Equinox que marcou a sua estreia em 1978, foram feitos num “espírito de criativa antropologia” citando depois os escritos de James Clifford que propunha, em The Predicament of Culture, a ideia de “surrealismo etnográfico”: “Estou a usar o o termo surrealismo num sentido obviamente lato para circunscrever uma estética que valoriza fragmentos, colecções curiosas, justaposições inesperadas – que trabalha para provocar as manifestações de realidades extraordinárias extraídas dos domínios do erótico, do exótico e do inconsciente”. No caso desta presciente estreia em 1978, muito antes da ideia de World Music ser proposta pela indústria, muito antes da electrónica ajudar a moldar a pop de feição mais tropical, a justaposição passa muito pelos arranjos em que se combinam instrumentos de diferentes culturas. Quando o sol, no seu movimento celeste aparente, se sobrepõe ao equador, vindo do hemisfério sul para o norte, e o dia é igual à noite na sua duração, assinala-se o equinócio vernal (21/3, quando chega a Primavera). Aqui esse equinócio é metafórico e designa uma rica música existente entre dois planos, o acústico e o electrónico, o imaginário e o real, o presente e o passado. Jon Hassell haveria de aprofundar esta visão, cruzando ideias resgatadas aos minimalistas (Steve Reich, sobretudo), ao Miles Davis mais eléctrico e a registos etnomusicológicos de cariz científico, mas nesta estreia o horizonte do seu conceito é já muito nítido e plenamente intrigante. E mais de 40 anos depois esta música continua a soar como se chegasse aqui vinda de um amanhã mais ou menos distante”, escreveu-se por aqui a propósito da reedição desse trabalho de estreia.

Brian Eno, ele próprio um intrépido explorador de novos mundos sonoros, foi um dos primeiros a prestar atenção ao trabalho de Hassell e logo em 1980, através da sua Editions EG, lançou Fourth World Vol. 1 – Possible Musics, álbum de brilhante projecção fantasista que parecia impor uma nova ideia de música exótica. Hassell lançou mais dois títulos no selo de Brian Eno, Dream Theory in Malaya (Fourth World Volume two) e Aka / Darbari / Java – Magic Realism, em 1981 e 1983. O clássico Power Spot saiu em 1986 na ECM e ainda espera reedição. A colaboração com os Farafina Flash of The Spirit de 1988 mereceu oportuna reedição em 2020 por parte da Glitterbeat.

A propósito daquele que foi o último trabalho que Jon Hassell lançou em vida, escreveu-se por aqui:

“Na capa interior deste Seeing Through Sound – segundo volume na série Pentimento iniciada há um par de anos – há uma frase do realizador italiano Federico Fellini: “A música parece ser sempre acerca de dizer-nos um segredo…” De facto, se há artista que parece ter gasto as últimas quatro décadas a enredar-nos num mistério, esse artista responde ao nome Jon Hassell.

Hoje com 89 anos, e felizmente alvo de um sustentado esforço de recatalogação da sua obra (os álbuns Vernal Equinox, 1978, Fourth World Vol. 1 – Possible Musics, trabalho colaborativo com Brian Eno datado de 1980, Dream Theory in Malaya (Fourth World Volume Two), de 1981, e Flash of the Spirit, disco dividido com os Farafina, de 1988, foram todos relançados nos últimos anos), Hassell continua, no entanto, a revelar-se como um inquieto criador, não lhe bastando a constante adulação que a crítica e os seus pares devotam à sua obra clássica. Há dois anos ofereceu-nos o primeiro volume de Pentimento, o admirável Listening Through Pictures. O título da série refere-se ao “reaparecimento numa pintura de imagens, formas ou pinceladas mais antigas, que foram mudadas e pintadas por cima”. E sim, a música de Jon Hassell faz-se de múltiplas camadas de significação criativa, de um pensamento constante sobre a arte e o mundo, sobre as imagens e, agora também, sobre o som.

Neste novo álbum colaboram músicos como John von Seggern (baixo, sintetizadores, samples), Rick Cox (guitarra, clarinete baixo), Eeivind Aarset (guitarra, sampler), Kheir Eddine M’Kachiche (violino, sampler), Michel Redolfi (veterano do INA-GRM, responsável por “texturas electrónicas” no tema “Moons of Titan”), Peter Freeman (baixo), Hugh Marsh (violino, arranjos), Jan Bang (live sampling), Sam Minaie (baixo e percussão) e ainda Adam Rudolph (mais um veterano, baterista com longa associação a Yusef Lateef que também colaborou com os Build na Ark de Carlos Niño). Uma equipa diversa, que inclui músicos com vasta experiência nos campos do pós-punk, electrónica experimental ou jazz de feições mais exploratórias. O que faz pleno sentido: Jon Hassell é um daqueles músicos que, como nos explicava a também trompetista Susana Santos Silva (que, aliás, deve conhecer bem a obra do veterano americano), inclui no seu processo de composição a meticulosa escolha dos músicos que o acompanham – não se trata apenas de seleccionar um qualquer executante competente para um determinado instrumento, mas antes de eleger conscientemente um músico com uma história e uma bagagem específicas. E isso sente-se especialmente em trabalhos, como este Seeing Through Sound, que vivem da precisa gestão dos mais ínfimos detalhes. Aqui, cada “pincelada” conta: mesmo as que possam ficar submersas nos arranjos mais densos.

O álbum é “emoldurado” por duas peças mais longas que ultrapassam os 8 minutos cada: “Fearless”, logo a abrir, é um manifesto de intenções, uma destemida peça em que o trompete de Hassell surge altamente processado, desenhando abstractas figuras geométricas em torno de uma cadência repetitiva e hipnoticamente lenta ao passo que “Timeless”, tema que encerra este estudo de “visão através do som”, é uma peça mais ambiental, igualmente preenchida de diferentes texturas, como um complexo ecossistema, em que cada som parece depender do próximo. Os títulos “Fearless” e “Timeless” podem também ser entendidos como uma referência à vida e à morte: tendo superado severos problemas com cancro, Hassell encontrava-se no grupo de maior risco de contágio por COVID-19, facto que levou Brian Eno a iniciar uma campanha de angariação de fundos para cobrir custos com a hospitalização do seu antigo companheiro de aventuras.

Julgando apenas pela música aqui apresentada, percebe-se que o desconhecido continua a ser o que mais atrai Jon Hassell, que continua capaz de criar as mais vívidas paisagens de mundos que ainda precisamos de descobrir, com o seu altamente expressivo trompete a resolver-se em estúdio como um instrumento mutante, sentindo-se vagamente ao fundo a tradição que o formou (Miles é uma referência, bem como os minimalistas como Terry Riley ou LaMonte Young com quem trabalhou no arranque da sua carreira), mas resultando muito mais nítida a exótica galáxia distante para onde consegue remeter-nos a cada nova peça.”


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