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Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/02/2022

Um talento impossível de conter.

Morreu Betty Davis, uma pioneira do funk que projectou um plano para a conquista da verdadeira liberdade

Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/02/2022

Esta quarta-feira, dia 9 de Fevereiro, as más notícias chegavam através da imprensa internacional: Betty Davis já não se encontrava entre nós. A artista americana morreu ontem aos 77 anos devido a causas naturais.

Importante ícone da cultura musical negra dos anos 70, Davis lançou três importantes álbuns entre 1973 e 1975, ganhou notoriedade pela sua relação com Miles Davis, a quem apontou novos caminhos estéticos, e conquistou força de culto quando a sua música foi relançada, já neste milénio.

No Rimas e Batidas, recuperamos uma peça (originalmente publicada no Blitz, em 2007) de Rui Miguel Abreu sobre uma precursora que não quis ficar na sombra:

“É bastante provável que Betty Davis tenha lido The Second Sex de Simone de Beauvoir e tenha decidido afirmar a força da sua sexualidade quando conheceu um trompetista com o dobro da sua idade. A escritora existencialista afirmava que a mulher sofria pressões económicas e sociais desde jovem para aprender a esperar pelo homem. Betty preferiu não esperar e decidiu moldar o seu próprio futuro no dia em que apareceu à porta do apartamento de um incrédulo Miles Davis, lhe ofereceu o seu cartão e lhe disse algo como ‘também faço música e penso que gostarás de trabalhar comigo’. Isto antes de perceber que já havia outra mulher no apartamento, facto que a terá levado a dizer algo como ‘voltarei quando te livrares dessa cabra!’

Estas memórias são da activista Denise Oliver-Velez, que dividiu casa com Betty Davis no final dos anos 60 e tanto Miles, na sua autobiografia, como a autora de They Say I’m Different descrevem o encontro de forma mais cândida. ‘Aconteceu tudo de forma muito rápida,’ explica Betty, referindo-se ao intenso ano em que esteve casada com o homem de Bitches Brew, entre ’68 e ’69, precisamente quando Miles injectou electricidade no seu jazz, elevando-o até à estratosfera. 

A voz de Betty Davis está longe do fulgor demonstrado em temas como ‘He Was a Big Freak’, mas ainda impõe respeito. Ao telefone de Pittsburgh, Betty Davis não se alonga nas respostas, facto que não contribui para lançar luz sobre alguns dos mistérios que rodeiam a sua meteórica carreira: sobre o nunca editado álbum que Miles lhe produziu onde apareciam gigantes do jazz como Wayne Shorter ou Tony Williams diz simplesmente ‘não faço a mínima ideia do que aconteceu às fitas’. Nas notas extensas e detalhadas que acompanham a reedição de Betty Davis (1973) e They Say I’m Different (1974), os dois primeiros álbuns de Betty Davis, Oliver Wang cita palavras da explosiva cantora impressas no press release original do seu segundo álbum: ‘Acredito em ser levada a sério e não em me encostar ao nome do meu marido’. Betty deve mesmo ter lido Beauvoir que já em 1949, quando The Second Sex foi publicado pela primeira vez, tinha razões em denunciar o papel subalterno das mulheres ao longo da história. Apesar do próprio Miles não negar o impacto que Betty teve na sua carreira – ‘Esse ano foi cheio de coisas novas’, explicou o trompetista na sua autobiografia, referindo-se depois ao facto da sua mulher lhe ter apresentado a música de Jimi Hendrix e de Sly and the Family Stone – não há muitas referências à influência da beldade negra na viragem do som de Miles nos inúmeros artigos que analisam esse período e que foram sendo publicados ao longo dos anos. E isso deve-se ao silêncio a que Betty se remeteu nas últimas três décadas, não tendo concedido entrevistas mesmo quando várias edições não autorizadas dos seus álbuns revelavam um interesse crescente na sua música. Esta ex-modelo, profundamente inteligente e dona de uma invulgar força sexual – Hugh Masekela, Jimi Hendrix, Miles e Eric Clapton foram alguns dos homens que marcou – começou a escrever música aos 12 anos e parece ter canalizado tudo o que tinha para expressar publicamente precisamente para os discos que editou na década de 70. Miles também não teve muito mais a dizer sobre ela e apesar de ter creditado a Betty a sua abertura musical no final dos anos 60, também deixou claro porque não funcionou o casamento: ‘Ela era demasiado nova e demasiado selvagem para corresponder ao que eu esperava de uma mulher. Ela era um espírito livre…’ Tão livre que não aceitou os maus tratos de Miles nem embarcou na orgia de drogas que a rodeava na época.

‘Eu não precisava de ninguém para me apontar o caminho, sabia bem o que queria fazer’, garante Betty Davis quando questionada sobre o que lhe passou pela cabeça com o fim do casamento. Formada sobretudo nos blues quando estava a crescer, Betty soube pegar na força e na simplicidade dessa música e injectar-lhe a acidez que a sua época exigia. Ainda assim, a mulher que insistiu para que Miles usasse o título Bitches Brew em vez de Witches Brew não se considera um produto do seu tempo: após o Civil Rights Movement havia um novo tipo de mulher negra, mais assertiva e orgulhosa, que no cinema era bem encarnada por Pam Grier. Será que Betty se considerava parte dessas transformações? ‘Não’. A resposta é seca, directa e não merece qualquer tipo de elaboração. Na primeira entrevista de rádio que Betty concedeu na América em 30 anos (googlem ‘The Sound Of Young America’ juntamente com ‘Betty Davis’) os ‘não’ e os ‘sim’ surgem da mesma forma, isolados e directos. Esta é, obviamente, uma mulher que não sente necessidade de se justificar. O discurso dilata-se para as três ou quatro frases – sinal inequívoco de entusiasmo – quando chega a hora de falar de Betty Davis e They Say I’m Different, sobretudo a propósito de Greg Errico, baterista que tinha trabalhado com Sly Stone: ‘ele reuniu músicos fantásticos como o Larry Graham e o Merl Saunders que em estúdio souberam ouvir-me e respeitar-me’. Ainda assim, ao segundo álbum, Betty Davis decidiu assumir os comandos totalmente e sentou-se ela mesmo na cadeira da produção.

Nesses dois primeiros álbuns, Betty Davis afirmou-se como uma diva negra totalmente independente, capaz de criar uma música que se alimentava de uma óbvia tensão sexual que à época era igualmente política. Da afirmação nas passerelles como modelo, ao casamento com Miles e à posterior entrada bombástica no mundo da música foi um passo mais do que natural. ‘Era uma questão de expressar aquilo que sentia’, explica Betty, dando a entender que o que fez foi por necessidade e não por escolha. Mas ouvindo temas como ‘Anti Love Song’ ou ‘Don’t Call Her No Tramp’ percebe-se que Betty optou pelo mais complicado caminho da imposição de uma identidade combativa e ‘in your face’. ‘A Motown chegou a abordar-me para eu escrever para eles, mas não pagava o suficiente e queria coisas mais doces…’

Hoje, a música é uma miragem distante para esta senhora. Modesta, recusa ver a sua marca em cantoras como Macy Gray ou Kelis ou M.I.A., mas o próprio Miles não teve dúvidas: ‘se a Betty cantasse hoje em dia seria algo como a Madonna ou talvez como o Prince, mas no feminino’.”


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