Filho de gigante sabe crescer. E escutar, certamente. Moreno é filho de Caetano, mas é sobretudo a sua própria pessoa, uma mente criativa que o ano passado cruzou energias com amigos para criar um Mundo Paralelo, consequência artística da sua passagem pelo confinamento que nos afastou fisicamente, mas nos uniu numa mesma experiência marcante e inolvidável. Moreno transformou-a em canções com a ajuda dos seus amigos, Domenico Lancellotti, Ricardo Dias Gomes e outros. Gravou em Lisboa, ela mesma um mundo paralelo por estes dias.
Agora, novamente do lado de cá do oceano que nos junta e separa, Moreno Veloso apresenta essas canções ao vivo: amanhã, 7 de Maio, no Teatro Maria Matos, em Lisboa; dia 9, sexta-feira, na Casa da Criatividade de São João da Madeira; no sábado, dia 10, no Teatro Municipal da Covilhã; e, finalmente, no domingo, dia 11, no Ponto C, em Penafiel.
Posso começar por lhe pedir que me explique que concerto é este, o que nos oferece nestas quatro datas que fará agora em Portugal?
Bem, é o concerto de apoio ao último disco, Mundo Paralelo, disco do ano passado. Um disco que foi gravado quase na totalidade em Lisboa. Uma parte foi gravada aqui no Rio. Agora vou tocar com os meus amigos que inclusivamente me ajudaram a fazer a gravação: o Domenico Lancellotti, o Ricardo Dias Gomes, o Pedro Sá, e vamos ter também mais um percussionista aqui do Brasil que se chama Leonardo Reis. O disco tem 10 faixas e no show as 10 músicas aparecem e outras coisas de outros momentos também vão surgir.
Escutando o álbum, penso que essa energia especial da amizade, essa cumplicidade, é evidente. Esta música soaria diferente se a tivesse gravado com outras pessoas?
Sim, eu prefiro trabalhar assim, com os meus amigos. Acho mesmo que tudo o que faço fica melhor quando tenho o olhar dos meus amigos por perto. A gente conhece-se desde a escola, desde a infância. Tirando o Leo Reis, que “só” conheço desde a “adolescência” [risos]. Sinto-me seguro quando estou com eles, porque penso que as suas opiniões, o seu olhar, melhora tudo o que eu faço. Por isso, quando termino um trabalho que foi feito com os meus amigos ao meu lado, eu normalmente sinto-me mais feliz, mais íntegro dentro do trabalho e acreditando mais que realmente o trabalho é bom porque conta com a participação deles.
Já mencionou em entrevistas que é um compositor lento, que demora a burilar as canções. Essa lentidão deriva da preguiça ou do perfeccionismo?
Não sou perfeccionista, sou apenas lento. Talvez eu me esforce pouco, mas esforço-me alguma coisa ainda assim para continuar a fazer canções, e quem mais me ajuda nessa árdua tarefa são mesmo esses amigos, meus parceiros, que me ligam, que me cobram, mandam mensagens, sentam-se ao meu lado para que eu termine a música, para que eu continue a escrever. E a verdade é que sempre que tenho alguém ao meu lado, a acompanhar-me, acontece uma magia e a composição decorre mais rapidamente, mais célere. Por exemplo, o Rubinho Jacobina, grande amigo meu, que também vem desde a época de escola e que é um grande compositor — nós nunca fizemos uma música juntos e até já tentámos umas quantas vezes, duas ou três, sem nunca conseguirmos. Recentemente, ele enviou-me uma música para eu escrever uma letra, para que finalmente isso acontecesse. E eu tenho trabalhado nessa letra toda a semana e não consegui terminar ainda e já lá vão uns… cinco meses [risos]. Eu sou lento mesmo, mas não é por ser perfeccionista, é mesmo porque me custa encaixar… Mas o Marcos Valle, outro exemplo, ele também me enviou uma música para eu escrever uma letra. E como sou muito fã do Marcos e porque achei inusitado o seu convite, eu me esforcei e passei algumas noites sem dormir e por acaso consegui escrever a letra ao fim de alguns dias, talvez uns cinco dias… Ele ficou feliz, e eu também, com o resultado, mas implicou um esforço muito grande para completar essa letra em apenas cinco dias [risos].
Bem, o Moreno tem formação em ciência, em física, e sabe bem que na natureza há matérias inertes que só se activam quando cruzadas com outras matérias. Isso é comum na natureza: às vezes, é preciso um cruzamento para activar energias….
Isso é verdade, tem toda a razão. Às vezes a natureza das coisas é essa inércia e se não houver uma força qualquer, a coisa continua do jeito que estava. E assim ficaria até que alguma força a tirasse dessa inércia, a activasse. Algumas dessas forças podem ser internas, são necessidades, são desejos, emoções, e versos e melodias que surgem de dentro da gente como uma explosão que acontece de dentro para fora, porque surge a necessidade de dizer algo. Mas outras vezes essa força vem de fora. E acontece até essa força surgir dos dois lados, um pouco de dentro e encontra-se com outra que chega de fora e dessa troca surge algo. Por força de fora quero dizer outras pessoas que fazem esses convites, para criar junto. Pessoas que convidam, mas já vêm com propostas concretas, de melodias ou letras, ou até com uma parte da música já pronta. E o encontro dessas duas forças, da necessidade interior de dizer algo com a força externa do parceiro ou parceira, para mim, esse é o processo mais feliz de todos. Outras vezes, a força interior chega e faz tudo funcionar. Ou quando estamos sós, depois de já termos recebido tudo do parceiro: às vezes nem nos encontramos, a ideia chega pelo telefone. E aí você tem que se esforçar sozinho para terminar. Mas de todas as formas de fazer música, a verdade é que quando se termina uma canção, para mim, é sempre uma grande alegria. Recentemente comecei a fazer uma nova música com o Domenico Lancelotti e pudemos sentar juntos, o que acelerou o processo — a música quase ficou pronta, só falta um pouquinho [risos]…
Voltando ao Mundo Paralelo, a escuta revela que esse é um disco deste tempo, deste lugar presente, mas, ao mesmo tempo, há algo de intemporal nele, soa como se pudesse ter sido feito em qualquer altura. Esse é um paradoxo que toca muita MPB, uma música em constante mutação que simultaneamente parece permanecer imutável…
Muitas vezes, de facto, essa música é atemporal, e pode ser feita para qualquer tempo, qualquer situação histórica. Mas também se liga muitas vezes a momentos específicos, concretos: o período do combate à ditadura, por exemplo. Esse meu disco é um desses casos: reagiu aos efeitos do confinamento a que fomos todos obrigados em consequência do combate aos efeitos da pandemia do COVID-19. Esse disco tem, por isso mesmo, um retrato um pouquinho mais temporal que os meus outros discos, e até do que muitos outros discos da MPB. Mas mesmo que ele seja esse retrato, que resulte de um esforço que a gente estava fazendo para sair do confinamento, que foi um esforço de alegria, um esforço semântico de algo melhor, eu sinto que ele também é atemporal e que até poderia ter vindo dos anos 60 ou 70. Porque a gente já está na década de 2020, mas continua fazendo parte de uma cadeia de música popular brasileira. E essa ideia de pertença deixa-me feliz.
Essa ideia de continuidade está bem explicita no EP que fez o ano passado com versões de clássicos de Milton Nascimento, Gilberto Gil e outros gigantes — o Sons e Sabores.
Ah, sim, esse trabalho resultou de uma encomenda da Morena Leite, uma chefe de cozinha muito boa, de mão cheia — os restaurantes dela são maravilhosos. E ela queria músicas que falassem sobre comida e então escolhemos esse reportório de cinco músicas e eu fiquei muito feliz por poder grava-las com o Domenico e o Kassim. Nós os três no estúdio resolvemos tudo desse EP. As músicas são deliciosas porque têm tudo a ver com a delícia da comida que a Morena faz. E até temos o nome parecido, não é? Moreno e Morena. Proximidade de nome e de espírito.
Alguma dessas canções faz parte do alinhamento destes concertos?
Hum… não… só porque o alinhamento desse show já estava bem arrumadinho e bonitinho, já inclui duas outras regravações, de músicas da Marina Lima e do António Cícero, “Deixa Estar” e “Fugaz”, e uma outra do Davi Moraes, meu primo, que ele gravou no disco dele e que eu pretendo gravar também. Tem por título “Tou Na Sua”. É uma música que parece que toca em todas as coisas que eu gosto. É linda.
E para terminar, o que lhe reserva o futuro imediato? Há pouco falava em músicas que está a fazer com o Domenico Lancellotti…
Sim, temos projectos… Mas para já quero fazer mais destes concertos, temos gostado muito de tocar o Mundo Paralelo ao vivo. Ficamos muito felizes de cada vez que o fazemos e por isso esse é um projecto que eu não quero desfazer já, quero passar mais um ano ou dois até a fazer esse concerto com os meus amigos. À parte disso, temos um disco com a Chrissie Hynde, eu o Kassim e o Domenico. A Chrissie dos Pretenders, a banda que vem dos anos 70. Ela é nossa amiga: morou no Brasil há uns 15 anos e trabalhámos juntos, fizemos concertos juntos e ela ficou nossa amiga. Ela depois voltou para Londres, onde viveu a vida toda — apear de ser americana —, mas vai regressar ao Brasil depois de nós concluirmos a nossa digressão para a gente terminar o disco. Estamos a escrever as músicas em conjunto, todos juntos em estúdio a compor, a tocar, a criar os arranjos. Ela queria um disco que misturasse o português e o inglês. Estamos a terminar esse disco e eu acho que vai ficar bem bonito esse projecto. É um sonho com mais de uma década.