Como não amar? Em palco, sentado ao centro, com violão nas mãos e microfone diante, Moreno Veloso, cheio de sorrisos, refere-se ao frio do ar serrano para sublinhar o calor humano que se pressente na belíssima sala do Teatro Municipal da Covilhã. A ladearem-no estão Pedro Sá, na guitarra eléctrica, Ricardo Dias Gomes, no baixo eléctrico, Domenico Lancellotti, na bateria, e Leo Reis, na percussão. Todos sentados, excepto Leo. Como não amar, de facto, quando diante de nós temos cinco mestres da refinada arte brasileira de transformar brisas e vidas em canções com balanço de maré baixa e aroma de fruta fresca?
Moreno, como explicou detalhadamente em conversa prévia com o Rimas e Batidas, trouxe as canções do seu Mundo Paralelo — e mais umas quantas do seu universo igualmente paralelo — para quatro concertos nesta Primavera tímida: em Lisboa, São João da Madeira, Covilhã e Penafiel. O terceiro foi também o mais elevado, no sentido métrico do termo, com a música cheia de samba e Bahia a tocar num qualquer nervo colectivo do público da cidade serrana. Foi uma festa suave e alegre, feliz e até comovente a que Moreno nos ofereceu.
(Voltemos ao tempo presente, para parecer que ainda estamos lá).
Moreno explica que a matéria de Mundo Paralelo nasceu de uma benigna reacção ao confinamento que foi arma de combate à pandemia de COVID-19. Às portas fechadas reage-se com entusiasmo quando elas se escancaram e as janelas nos iluminam de novo, abertas sobre o mundo. É disso que falam as canções desse álbum, produzido pelo próprio Moreno, gravado entre Lisboa e o Rio de Janeiro, rodeado de amigos, alguns dos quais agora também ao seu lado.
Cheio de graça — a da elegância e a do riso —, Moreno canta com emoção e afinação, toca guitarra com aquela leveza que só parece existir nos dedos brasileiros e surpreende com um prato e uma faca, que se transforma em máquina de ritmo pulsante e subtil, ou no pandeiro, de que extrai cadências como se já tivesse nascido com o instrumento nas mãos e sido educado nas fileiras do Olodum. A envolvê-lo parece existir uma orquestra sinfónica invisível, só que não: na economia dos arranjos, pressente-se uma vasta riqueza harmónica, para que contribuem decisivamente os dois instrumentos de cordas electrificados, tocados com absoluta mestria por Pedro Sá e Ricardo Dias Gomes. Sá é espantoso: sola com mão firme, nunca soando demasiado expansivo, mas também sublinha as delicadezas acústicas de Moreno, com texturas mais ambientais. E os dois percussionistas são ambos um portento de classe rítmica, capazes de sozinhos soarem como um bloco inteiro num desfile pela ladeira do Curuzu, em Salvador, na Bahia. É que a música destes cinco amigos existe e é real, mas vive também de uma permanente evocação de fantasia, soando muito maior, como se estivesse preenchida por muitos mais instrumentos do que o que realmente sucede.
Líder generoso, Moreno faz questão de abrir o palco aos seus companheiros: Pedro Sá, Domenico Lancelotti, Ricardo Dias Gomes e Leo Reis todos assomam à frente e pegam, à vez, na guitarra acústica do líder/amigo para cantarem as suas próprias canções, obrigando a uma dança de cadeiras literal: Moreno vai para as percussões de Leo, Leo vai para a bateria de Domenico, Domenico vai para a guitarra de Moreno, e a dança lá vai resultando em mais maravilhamento recompensado com aplausos. Uma roda de amigos que se celebra a si mesmo e à vida. Como deve ser.
Pelo alinhamento de duas dúzias de canções passam todas as músicas de Mundo Paralelo, as que cada um dos músicos decide também interpretar, e as de Marina Lima e António Cícero, as de Davi Moraes, sempre amigos ou família para quem Moreno também escreve, noutros paralelismos estabelecidos mundo fora. E há vénias sentidas a Tomás Cunha Ferreira, músico e artista d’Os Quais que além de escrever letras para Domenico, por exemplo, também assinou a arte da capa de Mundo Paralelo; a Preta Gil, “que esteve muito doente”, como lembra Moreno; e à família, à tia Bethânia, aos primos. Por momentos, parece que não é ali, no Teatro Municipal da Covilhã, que estamos, mas na sala da casa de Moreno Veloso, numa roda de amigos e família, com a brisa que chega da varanda e os risos das pessoas a serem vertidos em canções. Tão simples e ao mesmo tempo tão mágico. A arte tem dessas coisas…