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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 01/08/2022

Explosões orquestradas.

Moor Mother com Nicole Mitchell e Rob Mazurek no Jazz em Agosto 2022: fanfarras para guerreirxs

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 01/08/2022

Sim, um iPhone é um símbolo óbvio do capitalismo. Mas uma garrafa de Coca Cola cheia de gasolina pode também ser uma ferramenta de revolução. Nas mãos de Nicole Mitchell, um iPhone torna-se instrumento para emoldurar electronicamente os lamentos de Moor Mother, um pincel para pintar cenários para o drama que se desprende da sua voz. “We must remember”, começa ela por afirmar no arranque para uma hora de sussurros tão humanos quanto políticos nos nossos ouvidos brancos: “no more pushing down”, “they don’t want us to remember”, “we’ve been cast aside by History”. Sussurros, sim, mas plenos da estridência emocional que abala qualquer pessoa que escute.

Na segunda jornada da edição 2022 do Jazz em Agosto, a dupla formada por Camae Ayewa e Nicole Mitchell proporcionou, em apresentação no Auditório 2 do Edifício Sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, um momento de densa intimidade, quase como se nos tivesse sido dado a observar um agitado sonho/pesadelo de alguém sobressaltado com a violência da História: “They don’t want us in their future, in their History, in their present”; “We birthed the world”. As frases proferidas e repetidas por Moor Mother em funda voz quase a roçar as margens do silêncio têm a rugosidade de cicatrizes e sobrepõem-se a uma base sonora tecida com arremedos de flauta processada, efeitos electrónicos via iPhone e iPad, conchas e outros pequenos objectos percutidos e carregados de efeitos. A dupla apresenta uma única peça, uma suite feita de dor e sofrimento e orgulho e resoluta resistência que se estende por uma hora intensa, mas que nunca chega a ser agitada, impondo-se como um subterrâneo tremor de magma emocional que nunca chega à erupção, antes escorre abaixo da superfície, incandescente na sua força que resulta de um clamor que dura há séculos. “Dúvidas não há, estamos num museu de arte contemporânea feito ringue de boxe”, escreve aqui ao lado João Castro a propósito dessoutro concerto que Moor Mother protagonizou ao lado dos Irreversible Entanglements no momento primeiro deste festival. Esse ringue transformou-se ontem num dojo em que aquelas duas guerreiras exercitaram os seus combativos músculos criativos, entrelaçando ideias, sentimentos, palavras e sons improvisados numa indivisível peça de afirmação e de vontade de superação. Nada derruba estas mulheres, nem sequer a ensurdecedora História que as quer engolir.



Um par de horas mais tarde, no Auditório ao ar livre, em noite que cheirava a madeira queimada, Rob Mazurek apresentou com a sua Exploding Star Orchestra um extraordinário concerto a partir de Dimensional Stardust, o álbum que lançou em 2020 através da International Anthem e que por aqui mesmo, na coluna Notas Azuis, mereceu atenção: “Diverso nas paisagens sonoras que propõe, nas paralelas “dimensões” que percorre, este álbum da Exploding Star Orchestra representa um assinalável triunfo artístico, o que não é dizer pouco tendo em conta o assombroso currículo acumulado por Rob Mazurek durante a sua frutuosa carreira, mas, de facto, sente-se aqui um refinar de ideias exploradas ao longo dos anos, um cuidado extremo na tapeçaria sonora que propõe, na panorâmica visão musical que apresenta e que ousa cruzar linguagens sem nunca abdicar de uma elegância extrema, com passagens harmónicas de absoluto deleite e uma moderna abordagem ao plano rítmico”. Tudo isto se aplica ao que ontem nos foi oferecido na Gulbenkian. 

O concerto parece ter início com o drone contínuo que Lisboa impõe naquele espaço: há aviões que nos sobrevoam, estradas próximas, natureza e respectivos elementos, geradores e ares condicionados nas proximidades que se aliam em harmónica negação da própria ideia de silêncio. A cidade foi, na verdade, o 14º elemento em palco. Ao lado de Rob Mazurek, em trompetes e condução, estiveram Damon Locks (textos, voz, electrónica, dança performativa), Nicole Mitchell (flauta, voz ocasional), Keir Neuringer (saxofone alto), Tomeka Reid (violoncelo), Pasquale Mirra (vibrafone), Julien Desprez (guitarra eléctrica), Jaimie Branch (trompete), Angelica Sanchez (piano), Ingebrigt Håker Flaten (contrabaixo) Chad Taylor e Mikel Patrick Avery (bateria e percussões) e ainda John Herndon (em percussão electrónica e efeitos).

O concerto começou, curiosamente, com pulso hip hop vincado, soando o colectivo como algo próximo do que poderia ter acontecido se algum dia tivéssemos escutado Sun Ra a orquestrar um beat de J Dilla: Rob Mazurek parece sugerir um free jazz que em determinados momentos não enjeita o pulso firme da repetição. Por cima de tudo, Damon Locks foi conjurando o espírito de William Burroughs ao fazer-se ouvir através de um velho telefone que faz a sua voz soar como se estivesse a ligar de uma cabine situada algures em Adrómeda. E quando não debitava verdades cósmicas codificadas, Locks ondulava pelo espaço misturando capoeira, b-boying em gravidade zero, movimentos de artes marciais e o tipo de dança interpretativa que em tempos marcou os vídeos de Kate Bush. Rob, por seu lado, foi alternando entre os seus instrumentos, juntando-se assim à fanfarra espacial ali convocada, e a direcção do colectivo, com gestos que geriam os ataques e as dinâmicas orquestrais numa fluída e completamente irresistível massa sonora. Talvez inspirado por Damon, Mazurek chegou mesmo a arriscar dançar (dançar em concertos de free jazz vai contra as normas?) revelando ter tanto jeito para tal como o Fernando Mendes tem para fazer afundanços, vá lá.

Apesar de ter havido espaços para fantásticos solos de praticamente todos os presentes – com destaque para os momentos mais expansivos de Nicole Mitchell, Jaimie Branch, Tomeka Reid, Ingebrigt Håker Flaten ou Angelica Sanchez – foi da força colectiva que se fez o infinito capital de maravilhamento desta Exploding Star Orchestra, que assinou um concerto que se estendeu por cerca de hora e meia e que deixou a plateia praticamente esgotada do Anfiteatro absolutamente rendida. É essa a finalidade da fanfarra dxs guerreirxs – conduzir-nos ao êxtase. Missão cumprida com distinção.


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