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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2021

A vista da janela lá de casa e os tremores e as alegrias que se espalham no interior da mesma.

Montes: “O Vozes Antenas Fragas é o som, os dias, a luz que estava a bater no quarto e as nossas aflições”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2021

Vozes Antenas Fragas é uma experiência pouco convencional: mais de uma hora de música, dividida em quatro partes e um único percurso sonoro. O single “Fuerza” não é claro a mostrar a intenção dos autores de guiar o ouvinte por field recordings, ruído, vozes harmonizadas, guitarras e clarinetes. Aqui, a prática é um exercício de liberdade pura, motivado pela vontade de criar este álbum por si só e untando os inputs musicais da dupla, Arianna Casellas (Melífluo, Sereias) e Kauê Gindri. 

Viam os montes a partir da janela da sua antiga casa com uma cidade pelo meio e tornaram-se neles. Composto de forma intensiva entre Março e Julho deste ano, Vozes Antenas Fragas é também o diário de bordo dos criadores durante este período e uma expressão inequívoca de como a criação e a vida podem ser unas, se entrecruzarem e se consumirem num objecto. O mundo de Arianna e Kauê, o quarto da sua casa, foi igualmente o mundo do álbum, povoado por teclados, samplers, instrumentos acústicos e variados microfones.

O disco, com selo da Lovers & Lollypops, saiu a 22 de Novembro. A apresentação oficial será no Understage do Teatro Rivoli, no Porto, na próxima sexta-feira, dia 26 de Novembro. Estão, neste momento, a ensaiá-lo em Lixa do Alvão, perto de Vila Pouca de Aguiar, e mais perto dos Montes que são.



Diz-se que muitas músicas e álbuns são viagens, mas ouvindo “I” sinto-me concretamente num trilho. A tua voz, Arianna, guia e ilumina-nos por entre paisagens de ruído. Quanto desta sensação foi propositada?

[Arianna Casellas] É suposto ser uma abertura.

[Kauê Gindri] Acho que é a música que aponta para um lugar no álbum. Como um acordar, tanto que a frase mais forte dela é “É preciso andar em frente”.

[AC] “Indiferente orientação”.

[KG] Não sei se guia, mas aponta o caminho.

Uma imagem presente no copy e que se parece relacionar com esse caminho consiste em vocês verem os montes através da vossa casa. Cria um contraste muito vincado entre algo idílico e distante com algo próximo e material. Foi uma inspiração?

[KG] O álbum tem muito a ver com essa ideia mas não sei se o inspirou. Esse conceito foi-se tornando mais claro à medida que compúnhamos. Tivemos essa ideia mas não a conseguimos verbalizar. Acho que também é uma metáfora para outras coisas, como a pureza que se encontra dentro de nós ou um objectivo que se consegue ver no horizonte mas para qual não sabes o caminho para o alcançar.

[AC] Haviam vários rascunhos de canções que mostrei ao Kauê há um ano. As duas primeiras canções do disco vêm daí e são mais fiéis a essa ideia, o resto foi bastante mais restruturado. Apareceram numa altura em que não estava muito bem e que procurava força para sair desse sítio, mental e emocional.

“É preciso andar em frente/ Indiferente orientação”.

[AC] Tentei fazê-lo. 

Há certas melodias que cantas que me são muito características. Não sei se estou enganado por isso ou não, mas fiquei com a impressão de já ter ouvido alguma destas melodias no álbum, principalmente na “IV”.

[AC] [Canta] “Fui-me meter num buraquinho”. 

Exacto. Há um lado muito espontâneo nessa performance que te é característico.

[AC] Quando entro em modo freestyle não é propriamente um freestyle, há coisas que se repetem.

Acho que isso acontece com todos os que criam. Isso acontece comigo. Se eu tiver uma ideia nova, muitas das vezes, quando a volto a ouvir, percebo que há nela uma raiz muito evidente em mim próprio.

[KG] Isso interessa-me bastante na verdade, e não a vejo como negativa. Isso é algo muito mais comum no mundo do hip hop, através do sampling. Tu pegas em músicas e peças que já existem, algumas criadas por ti próprio, e reestruturas e “remontas” os bocados de uma outra forma.

[AC] O Kauê chama-lhe auto-resampling [risos].

[KG] Todo o mundo tem alguns acordes ou linhas melódicas que gosta. Acho interessante voltar para isso de vez em quando e tentar combinar com outras coisas. Acho engraçada a ideia da colagem com o teu próprio repertório.

Acho que isso se ouve no álbum. Há muitas ideias musicais distintas, mas há entre elas certos tipos de inputs musicais que se repetem com variações. Quer seja a voz e os seus contornos melódicos, quer seja a forma como trabalham ruído enquanto paisagem sonora. Qual dos dois apareceu primeiro em Vozes Antenas Fragas?

[AC] Compusemos o álbum pela ordem que o ouves. Começamos pelas primeiras duas partes (“I” e “II) porque, ainda que não soubéssemos como seria o álbum, identificámos nelas o início e a segunda punchline, respectivamente. Depois, olhámos em volta e vimos bué instrumentos no quarto [risos].

[KG] O processo foi diário, gravado no próprio quarto. Foi tudo muito espontâneo. Às vezes, a Arianna vinha: “tenho uma melodia há muito tempo mas não sei o que fazer com ela”, e tentámos fazer alguma coisa. Por exemplo, tentámos gravar o clarinete no banheiro só para ver como soava. A Arianna ouviu e disse, “isso é fixe, deixa-me cantar esta melodia por cima” e “vamos acrescentar a braguesa atrás”. A composição foi surgindo assim, partindo de micro-ideias.

[AC] Ou do reforço que dávamos às ideias em equipa.

Há um recreio e de brincadeira sonora em VAF muito evidente para mim. Vocês experimentaram e experimentaram e só depois é que perceberam se gostavam e se funcionava ou não. Há certos géneros que vivem da criação em tempo real, como o jazz, mas acho que aqui houve produção em tempo real. Parece que o processo foi muito espontâneo e divertido.

[AC] Sim, mas houveram dias frustrantes, em que testámos muitas coisas e nenhuma funcionava, por oposição aos dias em que as coisas aconteciam sozinhas.

[KG] “Falta alguma coisa nessa música” e tentávamos descobrir essa coisa ao longo de um dia inteiro, sem sucesso. Só que estávamos num quarto, não tínhamos como bazar mentalmente. Não conseguíamos desligar.

[AC] Existiram uns picos emocionais muito lixados. Tipo, “hey, isto está a soar fixe”. Isso durava dois/três dias, depois não saía nada, depois tínhamos um pico de insegurança e depressão, depois voltávamos a ouvir e achávamos que estava a soar bonito, e depois saía tudo sozinho. E era um alívio.



Fazer este álbum foi alternar entre momentos de criação e wow seguidos de momentos de frustração em repeat?

[AC] Para o final não tanto, foi mais estável. Quando a gente descobriu que isto [os momentos depressivos] eram coisas que aconteciam, que não éramos malucos e que não tínhamos depressões aleatórias, deixou de acontecer tanto.

[KG] O final foi mais tranquilo. O início foi mais stressante porque estávamos a descobrir como gravar. A parte técnica foi complicada. Às vezes passava um dia inteiro a descobrir como queria gravar o violoncelo, por exemplo. A experimentar microfones, técnicas de captação… O começo foi mais atribulado. Pensávamos, “isso está a soar uma merda, mas não sei se estou a tocar algo mal ou se está mal gravado”.

O VAF é totalmente DIY. Vocês foram compositores, instrumentistas, produtores, técnicos… Quanto tempo demorou a criar e a produzir o álbum?

[AC] Começámos em Março. Aí foi meio que engatar a primeira, e descobrir como arrancar o carro. Quando já estava engatado foi muito mais rápido. Em Junho compusemos o “III” em dois dias, praticamente.

[KG] Gastámos mais alguns dias para o complementar.

[AC] Sim. Por exemplo, a “I” já existia em rascunho no meu Soundcloud. A “II” foi um freestyle que surgiu sozinha. Na “Sombra” tivemos que dar umas cabeçadas, mas depois do beat compôs-se rápido. Devemos ter demorado uma semana a fazer o bloco completo.

[KG] Depois de termos gravado o “III” ficámos muito tempo sem o ouvir. Quando o voltámos a ouvir, sentimos que faltava algo, e gravei o beat que ouves no início da peça.

Esse groove é deliciosamente trip hop. Parece que foi tocado por um baterista. Como conseguiste um feel tão real?

[KG] Toquei-o com pads, com as mãos. Não o sequenciei numa DAW.

[AC] O Kauê curte dar uns passinhos de dança com os dedos. 

[KG] É finger drumming [risos].

No meio do ruído, field recordings e da experimentação sonora, há momentos de uma coerência e forma musical fantásticos. Por exemplo, o Fuerza, o single da apresentação que é um excerto de “I”, ou a parte que entra aos 10 minutos de “II”. O que são no âmbito da narrativa?

[AC] Foi tudo meio espontâneo. Quando concluímos a narrativa, sentimos necessidade de compor peças que gostássemos de ouvir de uma maneira mais equilibrada e directa. Há partes do álbum que nos satisfazem na sua totalidade, sem pôr nem tirar nada, mas também queríamos compor peças mais curtas que nos dessem a mesma sensação. Falando em narrativa e caminho, há o diálogo entre som feito para mostrar uma narrativa e pequenas narrativa mais literais mostradas em formato de canção. E fomos satisfazendo as duas necessidades em paralelo.

[KG] Também acho que em certos momentos parávamos para pensar, “ok, estamos neste ponto, o que pode surgir agora? Algo mais introspectivo, algo que corte o contexto?”, e registávamos estas ideias para os próximos passos. Nunca compusemos de uma forma firme, procurávamos sensações que faziam sentido naquele momento da narrativa. Não fizemos estas músicas pensando em acordes ou melodias, elas surgiam para servir o que queríamos transmitir. Tínhamos sensações em mente, que surgiam no dia-a-dia, e tentávamos tocar algo que se encaixasse e transmitisse essas sensações.

[AC] Mesmo que a letra fosse meio abstracta e meio improvisada no momento, estava completamente envolvida no processo criativo. Eu sinto que a letra, não sendo literal, refere-se ao processo e também desenvolve a narrativa.

[KG] Acho que pelo processo, pelo facto de estarmos a morar juntos, a tocar e a gravar todo o dia, muitas das coisas não precisaram de ser ditas. Não precisávamos de dizer ao que queríamos que algo soasse. Por exemplo, se conseguíssemos dar uma volta depois de passar uma semana chovendo, isso sentia-se nas letras e na sonoridade, quando chegávamos a casa para compor.

Estão a dar a entender que o processo criativo disto foi muito pensado.

[AC] Nós acordávamos a pensar nisto, adormecíamos a pensar nisto, e mesmo quando não estávamos a tocar estávamos a pensar nisto. Foi estranho.

[KG] Tivemos muitas conversas sobre o álbum. Não sobre a música em si, sobre acordes ou estrutura, mas sobre o que queríamos compor, e mesmo sobre o que estávamos a ouvir e queríamos passar para o álbum. Algo mais abstracto.

[AC] Pensar vento, pensar túnel, pensar mar, pensar noite, e outras coisas.

O álbum acompanhou o vosso dia-a-dia e os seus pensamentos, acabando por ser um bloco de notas, de memos, que vos acompanhou diariamente. Como é ouvi-lo depois de concluído, sendo fruto de um processo tão intensivo?

[KG] Depois de termos concluído a mixagem, não o ouvimos muitas vezes. Lembro-me que depois termos gravado tudo assumimos que não iríamos voltar a tocar nele, só mostrá-lo a amigos. E assim, sempre que o voltamos a ouvir é uma experiência. É muito texturado, tem várias camadas. É o som, os dias, a luz que estava a bater no quarto quando gravámos aquele momento, os problemas que tivemos que resolver em certo dia, as nossas aflições.

[AC] Acho que se calhar é a primeira coisa que gravo que não faria de forma diferente. Nunca teve o objectivo de ser x canções totalmente estruturadas. Só queria poder fazer o que quisesse com o Kauê e conseguimos fazê-lo. Não quero soar arrogante, mas quando ouço o álbum fico muita satisfeita. Não por ser eu, mas porque gosto do que estou a ouvir. E era esse um dos objectivos. Agora não quero gastá-lo para poder sentir isto durante mais algum tempo.

Quem ouvir o álbum, independentemente de gostar ou não, chega ao fim com a noção muito clara do potencial da música e do som para transmitir ideias e emoções. O Vozes Antenas Fragas é um ensaio para essa transmissão, na minha opinião, no percurso sonoro que desenharam. O que torna ambicioso imaginá-lo a ser interpretado ao vivo..

[AC] Começámos a ensaiar oficialmente ontem [18 de Novembro]. É curioso porque toda a gente pergunta isso, e de alguma forma a resposta é simples. É óbvio que não consigo cantar três vozes ao mesmo tempo, e vou fazer o máximo possível para que nem tenha que tentar cantar algo técnico. Não é essa a minha cena, nem para o Kauê, acompanhar a minha voz com uma batida. Queremos tocar o álbum da mesma forma que o fizemos, pensando que não podemos tocar várias coisas ao mesmo tempo. Então, vamos, dentro dos possíveis, perceber o que conseguimos fazer ao mesmo tempo conjugado com a essência de cada canção. Quais os instrumentos, quais as camadas de som….

[KG] O que mais me interessa nos concertos a que vou assistir são os concertos desligados do disco. Gosto mais de quando há erros e de ver como os erros são abordados do que se for tudo tocado igual ao disco. 

As nossas músicas têm ideias simples. Queremos tentar manter a ideia principal de cada música ao mesmo tempo que criamos um espaço de experimentação no momento. Já demos concertos em outros projectos e sabemos que as músicas tocadas, mesmo que sejam iguais às gravações, variam muito no próprio dia. Soam mais pesadas, mais leves, às vezes saltamos certas partes, mas as músicas continuam ali, e isso interessa-me. Vamos levar certos instrumentos para o palco, e com essa combinação tocar as músicas desta forma — livre. E, passados meses desde o final do processo, as músicas vão ter que soar diferentes do disco.

[AC] Elas são um bloco de notas, e têm que continuar a ser um bloco de notas.

Procuram destacar e tornar ainda mais expressivo e teatral algumas ideias das músicas.

[KG] Sim, e tentar fazer isso com os elementos que tivermos à mão no dia. Queremos ser flexíveis com os instrumentos. Por vezes usarmos mais instrumentos, guitarras e violoncelo, às vezes experimentar um registo mais cru, às vezes mais percussivo.


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