Monster são uma recente formação de artistas com diferentes marcas no jazz contemporâneo, unindo nomes americanos a europeus de diferentes gerações. Trata-se de um quarteto poderoso nos domínios do jazz livre e não idiomático, em que se cruzam Susanna Gartmayer no clarinete baixo, John Edwards no contrabaixo, Mariá Portugal na bateria e Joe McPhee no saxofone tenor e voz. A sua estreia em Portugal deu-se em Braga no gnration, no passado domingo, dia 25 de Maio.
Trata-se de um ensemble “gizado” para a performance e a prová-lo está o seu único e tão recente cartão de apresentação — Monster, álbum gravado no Wels Music Unlimited, na Austria, e editado no passado mês de Abril. Tudo muito fresco por aqui, portanto.
Joe McPhee é um veterano multi-instrumentista, que parece que já fez tudo na música, mas que encontra lugar justo numa nova formação. Ao longo da sua vasta e frutuosa carreira encontrou-se com gente tão distinta quanto Pauline Oliveros, Peter Brötzmann, Evan Parker ou Raymond Boni; cruzou-se ainda com os The Thing de Mats Gustafsson, ou com Trespass Trio e Universal Indians; e, já agora, convém não esquecer o duo prolífico que manteve com Chris Corsano. McPhee é hoje um dos lendários saxofonistas tenores que se mantém no activo após mais de meio século de criativa produção no lado mais aventureiro da música engajada com a busca permanente.
Ao lado do veterno encontrava-se o contrabaixista Edwards, que ainda tão recentemente deixou marcas em dupla passagem por território nacional — no Causa|Efeito’23 e Portalegre JazzFest’24 — ao lado de Steve Noble na bateria e Sophie Agnel no piano. Entre muito outros, Edwards aplicou o seu criativo léxico nas cordas graves em ensembles com Evan Parker, Sunny Murray, Derek Bailey, Lol Coxhill, Peter Brötzmann, o etíopoe Mulatu Astatke, ou mesmo, noutras ocasiões, com o próprio Joe McPhee.
Gartmayer é uma infatigável clarinetista baixo, dotada de uma respiração continua que lhe permite uma interessante relação com o seu instrumento. Tem inscrito o seu sopro continuo em várias formações — dos broken.heart.collector aos The Vegetable Orchestra, passando por möström, Antrhopods e pelo duo com Brigitta Bödenauer, Black Burst Sound Generator.
Já a destemida baterista brasileira radicada na Alemanha, Mariá Portugal, é parte integrante dos grupos Quartabê e Trash Pour 4, e lista no seu diverso currículo colaborações com Elza Soares, Metá Metá, Gerald Cleaver ou Joëlle Léandre. Isto é um quarteto preparado para qualquer tour de force, seguramente. Estamos em crer que a ideia teve uma centelha na Áustria, provavelmente com envolvimento de Gartmayer. Mas onde McPhee tem um lugar de elo consolidado — veterania e relação prévia entre os demais.
O concerto, na acolhedora e refrescada blackbox do gnration, trouxe uma lufada de ar bem mais airoso a um domingo que poderia ser igual a tantos outros. A surpresa maior desta formação, com este nomes, volta-se para McPhee porque se vai encontrar nele um elemento inesperado. Nem tanto pelo sopro vociferante a que em múltiplas ocasiões recorreu, mas antes pela sua voz natural (sem palheta). A criatividade musical fica radicada até bem mais na infindável capacidade imaginativa de Edwards. Entre o recurso ao arco — seja nas cerdas ou na pega — em abstrações ou sustentados tempos de condução, Edwards é poderosíssimo. Gartmayer é, por conta da tonalidade grave do clarinete e do seu ciclo de apneia, um fluxo permanente de sustento veloz. Já em Portugal encontra-se uma riqueza exploratória dos ritmos e contra-ritmos, acelerando e pausando na planura em sintonia desejadas. E nas vezes que se fez tocadora sem baquetas, ainda foi mais notável no desempenho. Mas invariavelmente encontra-se McPhee — embora repousando amiúde na sua cadeira como a sábia autoridade de um soba — toca subtil e traz a esfera cósmica-aural à cena. Mas traz sobretudo as sábias palavras quando e somente repete em diversos e oportunos momentos do concerto que: “A man even with a good heart could be a monster”. Com isto revela-se de enorme clarividência o nome escolhido do quarteto. Joga-se com a monstruosidade musical — no recurso da técnica em palco — mas sobretudo numa poética forma de alertar, em modo de aviso, que os monstros existem e podem bem vir cheios de boas intenções. Estes monstros bons avisam-nos para as montruosidades dos maus, bem mais até para aqueles com bons corações.
E vem-nos á memória um livro há muito esquecido, de Martin A. Kayman — Alguns dos nossos melhores poetas são fascistas. Ouça-se e leia-se com redobrada atenção nos dias que correm por aí.