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Missy Elliott

ICONOLOGY

Atlantic / 2019

Texto de Pedro João Santos

Publicado a: 11/09/2019

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ICONOLOGY cessa os 13 anos em que Missy Elliott se afastou — por culpa de uma doença auto-imune e, talvez, uma seca criativa — da edição de novos álbuns. Um longo desmame para a regularidade com que alimentou o seu auditório, ao longo de nove anos: entre 1997 e 2005, timbrou Supa Dupa FlyDa Real WorldMiss E… So Addictive e Under Construction, clássicos perante os quais até os mais olvidados This Is Not a Test! e The Cookbook continuam álbuns exemplares. Foi um período em que se engrossou o contingente feminino do rap, retirando às mulheres o estatuto condescendente de excepção e tornando-as ameaças sérias. A produtora da Virgínia foi um dínamo crucial: ainda hoje irrompem alunos da escola de Missy, sendo Tierra Whack um dos melhores estudos de caso. O bom não eclipsa o mau, contudo, e não se nega a perda substantiva que é o seu silêncio perante uma nova geração a crescer com o hip hop. Isso, sim, foi um teste.

Apesar de deixar famintos os saudosos, lançar a amnésia sobre os mais novos e deixar os novíssimos na ignorância, a falta de exposição é reversível. Não está tudo perdido, e é com isso que Elliott brinca no teledisco para o tema “Throw It Back”, em que jovens saltam à corda com as suas tranças; antes, uma rapariga entra num museu dedicado a Elliott e diz desconhecer o rosto de “Get Ur Freak On”, para choque da guardiã da exposição. No fundo, o sketch simboliza o momento actual da ressurgência de Elliott: os antigos miúdos dos anos 90 a pontificar o velho testamento aos seus sucessores hoje.

Vem no seguimento de 2015, quando editou “WTF (Where They From)”, o primeiro numa série de singles avulsos, balançou o calor crítico com o sucesso de vendas, num ponto de caramelo que os temas seguintes não replicaram. Pouco interessou para a onda revivalista que tem salpicado Elliott, e que, agora, a parece ter banhado completamente. A pedido de inúmeras famílias, a MTV finalmente concedeu à MC o título Vanguard Award — não antes de o atirar, como se por descargos de consciência, a P!nk e Jennifer Lopez — por uma videografia que firmou os valores da plasticidade e transgressão, numa altura em que apostar na sexualidade, no tuning ou na suposta autenticidade do ghetto teria trazido mais dividendos (gastando menos).



Tudo a postos, então, para amortizar a dívida temporal e alavancar a boa-vontade geral (no mínimo, o lançamento de um novo EP atesta a favor da nova pontualidade de Missy e respectivos estrategos). Deixando a falsa modéstia, que já lá vão alguns anos desde uma celebração tão massiva e unânime de Elliott, percebe-se a escolha do título. ICONOLOGY convoca as dimensões do ícone como lenda, no sentido mais gratuito da palavra, embora os manuais de arte nos digam que se trata de interpretar obras, de ler narrativas no novelo das formas e figuras — neste caso, rimas e batidas.

Pressupunha-se que fosse possível ler, neste breve sortido, a continuação do legado de Elliott — aí reside a primeira traição de ICONOLOGY. As visitas guiadas aos êxitos de outrora fazem-se em compilações, e Elliott fê-lo na estupenda colecção Respect M.E., comprimindo os seus 13 anos de ouro em 17 momentos de platina. Então, nada contra uma merecida victory lap, resumindo todos os elementos estruturais de um talento, mesmo que diluídos em braggadocio. Só em “Throw It Back” e “Cool Off”, postais de Miami dos anos 80 entregues em jeito deliciosamente monótono e imperturbado, se encontra Elliott nessa operação.

Nem museológico, nem triunfante, ICONOLOGY também não inaugura uma nova fase criativa para Misdemeanor. Metade do seu tempo é alocado a repetir o papel da MC numa festa fervilhante e a outra metade fá-la confrontar interesses amorosos com ferocidade; nenhuma é prova de criatividade fresca. É àqueles que esperam novos ângulos sónicos, recordando tempos dourados, que Elliott troca as voltas: num EP oportuno, conciso, delicioso, não há o relevo de um único filão criativo a protuberar. Apenas contextos reimaginados a que se adapta: a Miami lasciva das primeiras duas faixas; o Motown vago de “Why I Still Love You”, inexplicavelmente repetido numa versão a capella; o trap sedoso via Soundcloud da esquecível “DripDemeanor”.

Momentos de deleite variável, nessa ordem, em que sobressai a qualidade de composição e os refrões orelhudos longe da extinção, mas o toque da dupla Missy-Timbaland se configura dormente. ICONOLOGY não codifica o estatuto de realeza de Missy, somente a diversão irreflectida que bem lhe apraz; é um bom acepipe — espera-se, para mais material em breve — que seria melhor sem o selo de aprovação de Missy Elliott. Francamente, é cansativo ser-se um ícone.


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