Chegou hoje Desert Island Broadcast, o aguardado novo álbum de Mirror People, projecto do músico e produtor Rui Maia, que serve para concluir a trilogia discográfica iniciada em 2015 com Voyager, que teve Heartbeats Etc. (2022) como segundo capítulo.
Mais do que um simples conjunto de faixas, o trabalho é apresentado como uma “emissão de rádio de uma ilha deserta”, uma concepção original que transforma o acto de escutar numa experiência de descoberta solitária, mas reconfortante. Escrito e produzido ao longo dos últimos três anos, o disco conta com a presença de alguns colaboradores frequentes, como a voz de Maria do Rosário ou os saxofones de João Cabrita.
Reafirmando a sua relevância na cena independente com composições cativantes e uma produção minuciosa, Rui Maia promete levar esta “emissão” para os palcos já em Outubro, com datas marcadas para Braga (dia 11, no Lustre), Porto (dia 24, no Maus Hábitos) e Lisboa (dia 25, no Badassery). Em entrevista ao Rimas e Batidas, o homem que segura o leme de Mirror People fala sobre como foi chegar ao terceiro longa-duração do projecto e antecipa os espectáculos que se avizinham.
Fala-me sobre este conceito da ilha deserta — da emissão a partir da ilha deserta. Eu sempre gostei muito daquele programa da BBC, o Desert Island Discs — gostei tanto, aliás, que à dada altura fizemos uma espécie de uma versão disso na Antena 3, que eu chamei de Berlengas Som Sistema, exactamente dentro essa ideia de “o que é que emitiríamos ou escutaríamos se estivéssemos numa ilha deserta?” Fala-me um bocadinho sobre esse conceito que norteia este disco.
A minha ideia inicial seria como se o disco fosse uma emissão de rádio. Mas ao longo do processo o caminho não foi bem esse. No Desert Island Broadcast baseei-me no conceito do que seria a minha ilha imaginária, de alguém que apanha lá uma estação de rádio e quando liga está a tocar um destes temas. E estes temas são influenciados pela ilha, pelo lado mais da terra, dos instrumentos e das percussões, um lado mais “tropical”. Grande parte destes temas tem um bocado dessas características.
É importante para ti definir um conceito à partida para depois te guiar na produção? Saber que tipo de sons e instrumentos vais buscar é importante?
Sim, sim. Por exemplo, no disco anterior, o Heartbeats Etc., é um disco muito mais virado para o club, é um disco mais electrónico, não tem guitarras sequer. E este já não. Eu não gosto de fazer o mesmo disco sempre, tento sempre inovar à minha maneira ou fazer qualquer coisa diferente dentro do universo do que eu consigo alcançar. E este disco tem essa ideia em mente, aplicado à ideia da ilha e da cena tropical, quase como se fosse uma emissão deste universo de Mirror People. A questão do tipo de sons… Para mim, ao fazer música, a palavra não é tão importante. O meu universo é fazer sons, é fazer estruturas, acordes… Ou seja, eu primeiro penso na música e as palavras vêm depois, quando sou eu a escrever as canções. Todo este ambiente de ser mais terra, mais ligado aos sons, às percussões naturais, levou-me a construir os ritmos daquela forma.
Há um conceito musical de que gosto muito, que é a ideia de música exótica que tem o David Toope. Ele tem, aliás, mais do que um livro até à volta dessa ideia de imaginar mundos, que é um bocadinho o que tu estás a fazer aqui. Tu aceitas essa influência da música exótica neste disco?
Sim. E o que eu noto é que desde que comecei a passar mais música e comecei a… Os sons que eu passo no DJing são à volta, lá está, do disco, do funk, das músicas do mundo, do house, do techno… Comecei a consumir muito mais música desse género, de diferentes culturas, e passei a ter mais interesse por esse tipo de músicas. Acho que toda essa música acaba por influenciar também este disco, porque são coisas que eu ouço mais diariamente ou que procuro para os meus DJ sets. Tudo isso acabou por me influenciar.
Tu não tocaste nem saxofone nem marimba. Além da produção, os outros instrumentos reais são tocados por ti?
Sim. Todos os saxofones são do João Cabrita, que tem vindo a colaborar comigo desde o primeiro álbum. O resto da instrumentação, além da marimba, ficou toda a meu cargo — as guitarras, os baixos, teclados, etc. Eu gosto de explorar os instrumentos. Às vezes pego na guitarra e gravo-a como elemento de percussão ou assim. O baixo também é um instrumento de que eu gosto bastante, mas muito raramente toquei baixo ao vivo, embora seja um instrumento que tenho em casa e que gosto de tocar. Acho que foi essencial para este disco encostar um bocado os baixos sintetizados e ir buscar o baixo real, porque veio mudar aqui um bocado a sonoridade da coisa toda.
E que baixo é esse que tu usas?
É um Jazz Bass, que está aqui arrumado.
E há assim alguma ferramenta nova que tu tenhas ido buscar para te provocar criativamente e que tenhas usado com mais intensidade neste disco?
Eu gosto de usar os instrumentos que tenho. Quando estou a gravar, gosto de não recorrer aos plugins e usar os instrumentos orgânicos. Já que os tenho, vou usá-los, porque acho que também acaba por vincar a minha sonoridade. Eu conheço muito bem estes instrumentos. No caso do Mini Moog e do CR-78, são instrumentos que tenho há pouco tempo, e o facto de estar a descobrir esses instrumentos, se calhar, logo no processo inicial surgem ideias e elementos interessantes que podem ficar bem em certas canções. Então, por um lado, quando tenho os instrumentos novos e os estou a descobrir surgem essas hipóteses assim, sem mais nem menos; por outro lado, quando eu quero determinado tipo de som que tenho na cabeça, já sei onde é que vou buscar esse som — quando quero um baixo mais ácido, se calhar uso o SH-101. De vez em quando também samplo do YouTube. Vou lá buscar diálogos ou sons e depois modifico-os.
Tu mencionas nos materiais de comunicação deste disco que ele é o ponto final numa trilogia. Que balanço é que tu fazes desta trilogia? Qual foi o grande retrato que tu tentaste pintar?
Eu gosto desta ideia de trilogia e este é o terceiro disco que eu lanço como Mirror People. Ou seja, se o projecto não continuar, eu fico feliz com estes três discos. Sinceramente, como fã de música, eu noto que existe uma certa tendência para a maior parte dos artistas, em que a partir de um certo trabalho a discografia deixa de ser tão interessante para mim, por exemplo. Há este espaço de 10 anos de que eu costumo falar. Claro que isto não é uma regra para toda a gente, mas há muitos artistas que eu sinto que, a partir dos 10 anos de carreira… Para mim, se Mirror People não continuar, se eu não lançar mais nenhum disco se Mirror People, estes três discos deixam-me orgulhoso do trabalho que fiz com o projecto.
Mas sentes que o projecto Mirror People termina aqui e passas apenas a editar com outros projectos ou não sabes ainda?
Eu também lanço discos em meu nome. Mas são sei. Não tenho a certeza. Não quero fechar a porta ao projecto, mas esta ideia de trilogia faz-me sentido. São três discos diferentes e que, a meu ver, estão bem conseguidos. Principalmente este último, que me deixa bastante orgulhoso, pois nunca tinha feito um disco deste género, com esta sonoridade. Para mim, é muito importante não me desiludir a mim próprio. E o que difere de Mirror People para as coisas que eu edito com o meu nome é o facto de Mirror People ser um projecto muito mais “pop” — os temas têm estrutura de canção, com refrões e etc. É uma coisa mais virada para a rádio, com singles e tal. Enquanto que eu, com o meu nome próprio, tenho a liberdade de fazer aquilo que me apetecer — seja música experimental, seja techno… Mirror People, como eu disse, não quero fechar a porta, mas estou contente com estes três álbuns que lancei.
Agora vais apresentar o Desert Island Broadcast ao vivo. Como é que isto se vai traduzir para o palco?
Tal como o disco anterior, eu vou apresentar este disco num set contínuo, que tem canções deste trabalho e também de trabalhos anteriores. Sou só eu e a Maria do Rosário num conceito mais electrónico. Há canções que são desconstruídas, vão ter um ambiente diferente ao vivo. A versão de estúdio é muito difícil de traduzir para o palco. Eu podia fazê-lo, mas precisaria de muitos elementos. O disco tem mesmo muitas coisas. Podia recorrer a backing tracks e tocar alguns instrumentos por cima, mas há alguns desses instrumentos que eu não gosto de os ouvir sem estarem a ser tocados em palco. Como as guitarras, por exemplo. Eu acho péssimo ir ver uma banda com guitarras gravadas. É uma questão de gosto. Aqui, em palco, vou usar mais os sintetizadores num set contínuo, mais virado para o ambiente de clube.
Há elementos visuais? Imagens a serem projectadas?
Não, não. Tem um ambiente muito de clube ao vivo. Já praticamos essa sonoridade desde o álbum anterior e gostamos do resultado final, então decidimos não complicar.