[TEXTO] Gonçalo Tavares [FOTOS] Filipe Carneiro
Encontrámo-nos com o Minus — MC e produtor, autor do fantástico Man With a Plan, álbum de instrumentais lançado em Janeiro – para uma conversa sem fim aparente. O resultado foi um compêndio: sete anos em quatro páginas em que o músico nos falou da sua nova editora, Kids Alone, das histórias por detrás dos seus álbuns e da sua relação com a música. Foi o “futuro, passado e presente todos ao mesmo tempo” de um nome urgente do hip hop nacional.
Em 2018 vai fazer 6 anos que saiu o Distracções, o teu primeiro trabalho. Sucintamente, como cresceu e o que mudou no Minus & MRDolly e, se te parecer relevante, no Hugo Oliveira?
Primeiro, o MRDolly não existia fisicamente. Ele era uma personagem que eu curtia ter, ligada ao design e ao meu gosto pela banda desenhada. Então na altura sugeri ao Blast, também conhecido como FEDOR, um dos pintores do Colectivo Rua, trabalhar numa personagem. Eu tinha a ideia de um esquilo, um animal que eu curto, com alguns adereços. Nós criámo-lo por essa altura, em 2011, mas só em 2012 é que criei uma imagem física, um peluche, e assumi-o mais concretamente como produtor.
E existe alguma relação mais directa entre a vida autónoma da personagem e a produção?
Sim, existe, porque o MRDolly só vive as emoções, não ia falar sobre elas como o Minus. Ele é as emoções mais a imagem, como se os beats fossem as imagens do registo em si.
Portanto, no álbum, é como se tivesses 2 criativos a trabalharem ao mesmo tempo.
Exactamente. E só agora é que lhe dei espaço para assumir o nome. Mas apesar disso ele veio connosco para quase todos os concertos de Ollgoody’s (projecto de Minus & MRDolly com Logos, dos Conjunto Corona), como os concertos do Passos Manuel, o do Palácio, o streaming que fizemos para a Yellow Glasses. Já não o levámos para o plano B porque ele se começou a danificar e comecei a estimá-lo um bocado mais.
Então essa afirmação do MRDolly é a diferença mais relevante desde o início do teu processo criativo?
Sim. O Minus é a voz e o MRDolly é a máquina por trás dos beats e da imagem dos trabalhos.
Mas, nesse caso, porque é que o Man With a Plan é do Minus & MRDolly?
Porque da mesma forma que o Árvores teve as rimas do Minus, o Minus poderia rimar aqui. Até pensamos em usá-los (os beats) no segundo disco dos Ollgoody’s. Estes beats já estavam a ser trabalhados mentalmente antes do Árvores, Pássaros e Almofadas, já era uma estética que eu gostava de ter abordado no álbum. Na altura, não consegui nem achei conveniente por estarem a aparecer imensas referências e estilos que eu também queria pôr no Árvores. Para além de que o APA já tinha sido assinado pelo Minus & Mr Dollly. Para mim foi uma decisão natural. Acho que já nem consigo separar bem os dois.
Em 2015, tu disseste que “eras da escola boom bap, que terias sempre o bichinho de fazer beats”. Imaginavas-te até a te afastares do hip hop para electrónica e outros estilos. As tuas previsões verificaram-se?
Sim, principalmente com o nascimento do Tasco’tau. Eu andava um bocado saturado com o hip hop, tanto o que andava a fazer como o que me inspirava à minha volta, agora já me acomodei um bocado. Então criei uma personagem maldisposta, o Tasco’tau, que me levou a experimentar caminhos da música electrónica. Cenas garage com uma identidade diferente, com o jazz e o hip hop, que é a minha escola. Fiz uma série de edits e umas cenas mais disco. Tirei o pó aos synths que tinha lá a casa e esqueci os samples. E neste momento é até o que eu estou filado a fazer. Este disco do MwP foi buscar algumas coisas ao baú.
E foste buscar coisas a esse baú para fazer o APA?
Não. O APA tem uma história própria. O Keso e o Fokus estavam em Londres. Eu queria fazer mesmo algo e tinha muitas coisas escritas, mas não tinha quase nada produzido. Tinha 2 temas, mas sabia mais ou menos para onde queria ir. Eu tinha falado com o Keso, e ele disse-me para irmos lá. Eu fui lá com o Paulinho (ActivaSom) e passei algum tempo com eles. E lembro-me de na viagem de volta ter comentado que quando chegasse ia levar o álbum muito a sério. Inspirou-me estar lá, por ver tudo o que estava a acontecer na cidade, mais o facto de ver o Keso a não fazer música. Foi desconfortável para mim pensar que um gajo tão talentoso estava parado, por causa das rotinas da vida de lá.
Quando fui para lá foi quando saiu o disco de Ollgoody’s. Quando cheguei, fechei-me em casa. Não saí, consegui tirar umas férias do trabalho e não fiz mais nada. Produzi o disco em 2 meses no máximo. O álbum é super pessoal para mim porque foi feito no casulo. Para o final até já estava a bater mal com as misturas, o Virtus até entrou ao barulho. Para além disso, o Keso, antes de ter ido para Londres, mostrou-nos um projecto de música electrónica a que tinha chamado Bimbo. Quando ele nos mostrou, deixou-nos desanimados porque estava incrível e ele nunca o pôs cá fora. Nunca vi o Virtus a sair tão aborrecido da minha casa.
Na altura, eu era um bocado inocente, por isso alimentava e vivia muito todas estas coisas. Daí ter-me fechado em casa e não ter querido saber de mais nada.
Portanto, a “falta de actividade” do Keso inspirou-te a produzir o álbum.
Mais a situação precária deles. Não foi bem uma inspiração, foi mais trazer um bocado o sufoco deles. Foi uma situação complicada, o Fokus só voltou agora a fazer música. O álbum do Keso serve perfeitamente para explicar a situação deles na altura. Para mim, foi pensar, “Eu tenho as ferramentas todas, não estou a fazer porquê”? Eles estavam numa cidade que vivia muito mais do que a nossa e não estavam a conseguir sair do ciclo do trabalho. E foi uma cena pessoal de, “vou chegar e trabalhar”.
Foi um desafio auto-imposto então.
Exactamente.
O Distracções abre com “Antes da Música” e já aí ouvimos samples delicados de piano, sopros, guitarra a dialogarem com synths West Coast e boom bap. Quais são as pontes entre os instrumentais que produzias na altura e os de MwP? Como é que se relacionam?
As ferramentas hoje em dia são diferentes. O Distracções e o APA foram totalmente feitos com a MPC, o Passeio [álbum dos Olgoodys] também. O MwP é o primeiro disco em que trabalho com uma DAW. Também tem MPC, alguns beats são totalmente feitos com ela como o “Nowhere”, mas quase tudo é sequenciado numa DAW. Eu quando produzi alguns dos beats do MwP não a tinha comigo, estava com o Keso, o que me obrigou a utilizar outro equipamento, outros samplers como a Roland SP. Se calhar neste registo isso até faz mais sentido. Mas é engraçado porque se calhar este soa mais a MPC que os outros.
Por outro lado, o APA tem muita captação. Eu convidei vários vários músicos: o Hugo Raro no piano, o Sair, o Pedro Nascimento no saxofone. Captei imensos back vocals do Keso e da Ana Alvarez, que também tocaram comigo ao vivo. Tenho horas e horas de sessões com os músicos a abordar o tema, que re-samplei e acabei por incorporar nos beats. Das coisas que me deram mais orgulho no Árvores foi esse processo. Foi assim que consegui orquestrar o álbum em dois meses. E também foi por causa disso que correu tão bem a apresentação com banda, porque eu já sabia o que havia de fazer.
“As árvores somos nós”, ouvimos samplado no “Intro” do APA. O teu rap, quando não é pessoal, dirige-se às pessoas. Tu teres feito uma pausa nas rimas significa que sentes menos responsabilidade de te dirigires às pessoas através da música?
Sim, de certa forma. Eu nunca deixei de ter o meu papel como MC e como pessoa que se interessa pela escrita. A minha pausa neste momento é precisamente por respeitar a escrita, a minha e a dos outros. Eu gosto muito de ler e continuo a escrever as minhas observações. E sinto que ponho no Minus uma responsabilidade. Sem querer ter modéstia de bolso, o que eu escrevo como Minus não é qualquer coisa, levo isto de forma séria. Da mesma forma que há muitos MCs a fazê-lo bem e que provavelmente não fizeram a mesma pausa que eu fiz. Mas o que eu tenho vivido ultimamente não me tenho dado tanto espaço ou criatividade para dizer coisas novas. Por isso arranjei esta maneira para dialogar com as pessoas, através do MRDolly. É uma maneira mais descomprometida, não me ponho tanto à tabela.
O Árvores foi um álbum que me cansou um bocado, que me desgastou. Há temas como o “Marionetas” que são extremamente sociais e que ainda hoje fazem imenso sentido para mim. Quando ouço o “Fins de Dia”, por exemplo, percebo que o que sinto em relação à música é exactamente igual ao que sentia quando o escrevi em 2014, apesar da indústria ter mudado. Foi na altura de uma carta que o João Tordo escreveu ao pai quando ele foi para o Brasil que me inspirou imenso. Até há uma dica no tema: “Talvez parta como o Tordo, Sem família e sem conforto, Deixo os outros a cuidar do meu esforço enquanto músico”. Eu continuo a ter o mesmo dilema: tu queres ir tocar e não tens condições, o pessoal não te quer pagar. O pessoal ainda acha que os artistas vivem de bolsos lisos, como digo no tema. Quase nada mudou, o peixe ainda está para alguns. Não digo isto de uma forma frustrada, porque não parei de fazer música nem de acreditar na minha cena. Mas acabo por sofrer um bocado com as consequências disso. O Keso diz o mesmo no “Então Paga”, o novo tema do Virtus diz que o pessoal acha que estamos adormecido mas na verdade estamos só a acordar para a vida. Estamos todos a viver a mesmo realidade, mas cada um tem a sua abordagem. Eu pessoalmente não quis que estas coisas me massacrassem tanto como me massacravam na altura. Eu vivia mesmo aquilo, magoava-me. E a minha maneira de estar agora ajudou-me a relaxar um bocado. Estou fisicamente melhor, mais bem-disposto.
Eu não digo que não vou escrever novamente, tenho imensa vontade, mas preciso de encontrar um espaço para o fazer. Se calhar vai ter que ser como o Árvores, vai haver uma altura em que vou sentir que enchi o saco e vou trabalhar nisso intensivamente.
O relógio e o tempo são elementos que atravessam a tua obra, principalmente o APA. Várias letras concentram-se neles, como a “Humidade” ou no “Relógio de Bolso”. Nas tuas palavras, o próprio nome APA é uma analogia ao tempo: Árvores significa o passado, Pássaros é o presente e Almofadas é o futuro. Não é uma relação de braços abertos a que tens com tempo. Como é que esse conflito se expressa agora no MwP?
O MwP é uma fuga à falta de tempo, de tentar trabalhar e criar um ambiente e um universo próprios para mim no pouco tempo que sobra. Mesmo a Kids Alone nasce um bocado dessa responsabilidade, de terminarmos o que temos na gaveta. Nós já estamos a debater isto há algum tempo, que é o facto de termos uma vida dupla. Temos a nossa vida comum como o mais comum dos mortais, com uma rotina de trabalho e outras cenas, e depois encaramos uma personagem na música.
https://www.youtube.com/watch?v=FhwnKiPNVXQ
Então podemos dizer que a Kids Alone apareceu para fecharem projectos e publicarem trabalhos?
Sim. A partir do momento que crias uma editora, crias um compromisso com as pessoas, e nós queremos mantê-lo não deixando morrer projectos que estejam na gaveta. Também queremos incentivar as pessoas a não guardar projectos ou parcerias por ser arriscado avançar nesses nichos, como o caso dos álbuns instrumentais, que vai ser uma das nossas etiquetas. Um dos propósitos é fazer as pessoas acreditarem naquilo que estão a fazer.
Como é que se relaciona a tua incursão na KA com a 6º Sentido?
A 6º Sentido nunca foi bem uma editora. É o carimbo de uma crew que existe e que continua a trabalhar em conjunto — os Enigma, os ActivaSom, o Virtus, o Mika e eu. A 6º Sentido nunca foi o que é a Kids Alone, que nasceu com o propósito de editar música, de estar na indústria. É o selo de uma amizade que não deixou de existir. Ainda no dia 10, o Virtus lançou um novo tema e os ActivaSom no dia 13.
Independentemente das diferenças entre os dois últimos álbuns há um elemento comum de destaque, que é melhor descrito por um crítico conhecido da praça: “Este álbum dá-me vontade de ligar para o trabalho e dizer que estou doente só para poder ficar em casa de robe felpudo e pantufas de pele de carneiro a chillar ao som disto o dia todo”. Há críticas do APA que dizem algo semelhante. Para ti, como criador, a música tem que ter esta ligação com a casa como aconchego, ou é algo que surge intuitivamente?
Identifico-me com isso. Aliás, a sessão de fotos que fiz para o APA foi de robe em casa. Faço música para as pessoas curtirem em casa, pelo menos com o Minus & MRDolly, que não têm o intuito de fazer música para estar no clube. É música para ser ouvida com atenção, para se captar todo o seu conteúdo. Se calhar o Tasco’tau é mais aquela a pessoa que gosta de sair e de fazer bangers por saber que vão ter um certo tipo de efeito no clube.
Há planos da Kids Alone para um futuro próximo?
Sim, estamos a preparar alguns lançamentos. Há um single de Tasco’tau no horizonte.
Numa entrevista que deste em 2015 dizias que “o mais importante para ti (como MC e produtor) era chegares a casa e sentir que te realizaste, que fizeste algo por ti e pelas pessoas que te ouvem”. Sentes isso?
Neste momento, é isso que sinto todos os dias que chego a casa. E sinto-me bem, menos ansioso do que no passado. A minha abordagem actual à música é terapia. Por isso é que para já não penso numa cena de escrita que me vá levar outra vez para universos mais negros. Acho que é porque ainda não quero viver esses tempos novamente, mas isso há-de surgir [risos].