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Fotografia: Teresa Folhadela
Publicado a: 20/02/2020

Drill à moda do Barreiro.

Minguito: “Eu não vou deixar o drill morrer. É como se já me tivessem posto a coroa”

Fotografia: Teresa Folhadela
Publicado a: 20/02/2020

O trono do drill português foi reclamado para o Barreiro e ficou com o código postal 2830. Não há enganos — Minguito, um dos poucos nomes portugueses no cartaz de luxo da edição portuguesa do Rolling Loud, chegou para ficar.

O drill é um caso concreto de reacção — não no sentido politizado, de ter a contra-revolução em curso, mas antes no sentido de revolucionar um monopólio comercial sobre uma frequência. Mais especificamente, de uma frequência grave que pode sobrepor-se à real substância que rappers e MCs trazem para a música: a arte de encriptar uma mensagem em rimas, de as debitar em desafios rítmicos, de encaixar harmonicamente numa batida. Não há 30 ou 50hz que substituam a intensidade que as palavras têm, e não é por acaso que pelo menos metade deste espaço se dedica a falar dos que se superam na poesia que era das ruas. Se algumas dessas quadras e frequências foram captadas por marcas, revestidas a ouro e colocadas em cima de um descapotável, outras não saíram do submundo a que pertencem — mas começam a fazer mossa. Neste caso, falamos de drill, um género que surge em antítese ao trap, e do seu maior representante em Portugal — Minguito. MC de intensidades altas, poliglota a jogar entre o português, o inglês e o crioulo, a distribuir dicas para quem usa carapuça (coisa que não falta neste subgénero; já lá iremos) e a trazer os holofotes rap de volta para a realidade que retratava: “O drill é mais sobre guns e essas cenas, mas estás a tentar sair da lama,” explica o rapper do Barreiro. A receita é simples, mas os flows não são fáceis: os subgraves do trap, aqui, não se quedam em repetição, e há mais frequências por onde jogar nas batidas drill; o subir e descer constante das notas mais baixas torce as tripas, enquanto os andamentos levam os MCs a debitar barras em ritmos acelerados. O drill é de duros e essa estética está clara na cena — “no face, no case” —, com balaclavas a protegerem a identidade de muitos destes artistas, a quem não coube a sorte de um contrato com uma discográfica que pague os figurantes nos vídeos e que, não raramente, estão na margem da sociedade a fazer o pouco que lhes resta para sobreviver. Tudo isto existe na música do 283 Gang, particularmente na de Minguito, que surge como o ponta-de-lança do grupo e narrador de uma série de experiências partilhadas na luta de trazer um pouco de luz para uma vida longe da ribalta. Saltando de dialecto em dialecto, o rapper leva o egotrip ao desespero (“faço pouco e dou à minha mamã um pouco”; “ez poi um gajo ta rola sempre ku pensamento suicida”) e canaliza-o para a luta que conhece (“Mas estou-me a cagar para ele/ Pensamento sta na fuckin guita”). O resultado é agressivo, transgressivo e o contágio não se resolve com quarentena. É, de resto, na concentração de pacientes que o drill de Minguito melhor resulta: “Eu gosto de levar os meus amigos para o palco. Gosto de os ver lá, felizes. E quando eu falo drill, posso não ter sido eu a vivê-las [a história que conta]. Pode ter sido um amigo meu, ou ser uma experiência vivida a 50-50. Estarmos juntos a cantar isso para outras pessoas já é um grande orgulho. Dá-me motivação para fazer algo diferente”. E é diferente do panorama comercial actual — a energia que leva para cada performance, apesar do tom negro das suas barras, é de catarse, com os ganchos partilhados entre público e MCs, Minguito como catalisador de algo ainda atípico num concerto de batidas e microfones. Não é por acaso que Minguito vai buscar a inspiração ao Reino Unido (onde o drill proliferou, mas não onde se originou; puristas dão Chicago por cidade-berço do género). O grime, de 140+ BPMs e MCs que não se podem dar ao luxo de não perseguir a batida com barras, é uma das suas maiores influências, assim como o ragga e grande parte da expressão britânica do rap. “Eu curto mais do estilo britânico. E eu via os vídeo de trap e parecia-me tudo ostentação. Chega a um ponto em que é tudo igual. Um gajo que vai cantar trap, chama umas damas, paga-lhes para ficarem nuas, vai para um carro alugado, para uma mansão alugada, e fica ali. O estilo americano é dizer fuck your bitch e pouco mais.” Foi uma libertação. De um trabalho letárgico num qualquer franchise onde contava trocos para um estúdio e um palco que lhe deu uma voz. “Eu parei de trabalhar para me dedicar a isto. Queria fazer a minha cena sem andar tipo na rua, a fazer cenas tipo… riscos. Então ya, despedi-me, meti o meu último salário nisto. Custou-me. Fiquei a zeros, mas depois deu o boom. Passado um mês de lançar a ‘Mano Peka’ o Balona [agente] agarrou-me”. O resto da história estamos nós a contá-la.

[Devolver o rap às ruas] O drill tomou-o pela sua forma cândida de estar, que não é inocente. Inocência e drill não coabitam. Há uma maldade inerente ao género, quer nas melodias menores, nas batidas aceleradas, quer nas letras cruas. Maldade é, porventura, o termo errado — há uma inescapável hostilidade no drill que é fruto da natureza de quem o usa como veículo; a maldade, em oposição, será voluntária. Minguito canaliza esta natureza para as suas crónicas: “identifico-me com o género porque me permite expressar de forma mais agressiva.” Não é só uma opção estética, é uma realidade com que lida. “’Mano Peka’ ficou parado durante meses. Eu lancei em Dezembro, mas tinha a música pronta desde Março. Um dos meus produtores foi preso dias depois de eu gravar e o projecto foi todo abaixo. Tive de gravar de novo”. Não é por acaso que a pergunta surge bem clara no início — “How many times eles vieram ao azul e não encontraram nada?” Foi esta, mas podia ter sido outra, e seria de igual forma uma interrogação sobre discrepância social. A sua história transpira drill, mas não o respira. Há que ser realista. “Eu agora, cantando drill, como é que eu vou fazer dinheiro a sério, como os comerciais fazem, se eu estou a cantar algo que eles não querem aceitar, que não querem que os putos ouçam. Mas os putos saltam com isso. Será que dá para ser-se artista só de drill em Portugal?”  Não é um problema: “Por isso é que lancei aquela última música, ‘She B Calling’. Para mostrar que sou versátil”. Certo, é mesmo, foi beber à vasta influência caribenha que impregna a música britânica e escreveu a sua música de amores e desamores. A próxima música que se prepara para lançar, por outro lado, distancia-se das incursões mais recentes, guina de novo em direcção às batidas drill, mas sobe a parada lírica para uma quantidade de barras digna de um rapper “a sério”. Minguito não está a brincar, nem é só um MC de diss com meia dúzia de ganchos engraçados; tem histórias para contar. “Chega a um ponto do drill em que ouves 10 músicas e elas podem parecer iguais. Pelo beat, pela letra, pela ideia. Mais vale ser um cantor referenciado por ser um pioneiro de drill e depois ires noutra direcção. É assim que eu me vejo crescer. Mais para a frente quero fazer uma música mais boom bap”. O passo que se segue leva-o para o outro lado do oceano para uma viagem a meias entre crioulo, português e inglês, em mais uma curva apertada. Parece impossível encapsulá-lo, e isso é parte da sua ética de trabalho. “A música está sempre a evoluir”, disse-nos, e por isso cada faixa é um projecto, e cada projecto merece-lhe um foco total, batalhando por espaço no YouTube, ou no Spotify de single em single. “Quero lançar um som, quero que os vídeos saiam todos ao mesmo tempo, que esteja tudo em todo o lado, e que a música bata.” Não é apenas estratégico, é fruto de uma realidade com que se depara, de uma indústria que aceita ostentação, mas não procura realidades menos glamourosas. “Ouvem-me a mim e falo o quê? Crioulo, bandidagem, drill? Metes numa coluna e os putos conhecem a música, mas eles vão sempre preferir chamar os que não dizem nada”. A solução não é a das mixtapes, de tomar as ruas, os bairros e as suas lojas de música, como se fez em Nova Iorque, Atlanta, ou Nova Orleães nos anos 90. A solução é fazer um hack ao algoritmo, é “fazer AQUELA música”, contrariar a indústria do streaming e do capitalizar o play. “Há quem lance 30 músicas e uma bate. Eu prefiro lançar uma e ter a certeza que o people todo adere. Eu quero fazer mambos consistentes e não ter dúvidas sobre o som. Quando eu fizer, é para fazer a sério.” E os frutos já se colhem: “Trabalhar dava-me 300 paus por mês. Agora a ando tocar e é muito diferente. Já consigo ajudar as pessoas que merecem, e em casa. E eu quero sustentar a minha família, ter dinheiro.”

“Eu impulsionei o drill em Portugal e quem disser que é mentira está-se a enganar a si próprio”


Começar não foi difícil, explica-nos. “As pessoas com que eu me rodeio ouvem rap. É natural”. É algo que vem dos amigos, nomeadamente de CHi3F, MC do 283 Gang, que viveu em Londres e cuja estreia está a ser orquestrada neste momento; que vem do pai que lhe mostrou Kery James e ouve Allen Halloween — “Imagina, eu entrar no carro do meu pai e ele a espetar Halloween. ‘Raportagem. O que é que passa?! Ele está a dar dica! [Risos]” Um Halloween que o inspirou — como a muitos — e cuja interrupção na carreira não fica indiferente. “Toda a gente que ouve Halloween sente alguma cena. O que é que essa gajo já passou? Só de imaginar… Eu curto bué dele, ya. Tenho o livro dele e quês. O Halloween nunca deveria parar.” Foi mesmo um farol que parece ter-se apagado, mas felizmente a estrutura do edifício fica para quem quiser ver. Também para Minguito, que encontra nele um eco de si mesmo. “O público talvez aceite que o Halloween seja assim, mas a indústria não. Mano, é a mesma coisa que eu penso de mim. A indústria nunca me vai aceitar. Para que é que eu vou lançar um álbum? É lançar música a música para eu conseguir fazer o que eu quero fazer”. A estrutura fica e a luz permanece, apesar de tudo. O mesmo replica-se nas suas demais influências, no seu ego e na segurança com que parte para cada projecto. “Mesmo que eu parasse, que algo corresse mal, que eu já não quisesse fazer isto, eu vou ajudar o meu próximo e estar sempre presente nas cenas,” diz. É a responsabilidade de ser o pioneiro do drill em Portugal. “É claro que eu não vou deixar o drill morrer. É como se já me tivessem posto a coroa.” Na verdade, é responsável por um tremor cujo epicentro parece estar no Barreiro, no 283 Gang, em rappers como CHi3F, MAD, RGZUS, Hated283, ou Breezy6ix, mas cujo impacto se estende a toda a Margem Sul do Tejo. Vai mais longe: “chuparam-me todos. Há muito estilo para cantar, mano… O Biggie e o 2Pac não começaram o rap, mas impulsionaram-no. Foi isso que eu fiz [com o drill]. E quem disser que é mentira, está-se a enganar a si próprio.” Os planos são claros: montar um estúdio, dar condições a toda a crew 283 de criar uma cena sua, tomar o controlo. Nada disto é um ensaio, não é uma encenação; é uma perfuração, um canal directo para o submundo, por onde pode entrar alguma luz — o vulgo esperança, um luxo que cabe a muitos de nós e não chega a todos, e que não cabe na lógica do drill, onde os protagonistas se escondem da sociedade com que estão em guerra. Mas fica o aviso de Minguito: “Pela música, nunca me vão conhecer. Sou mais do que mostro nas minhas músicas. Mas a cena é mesmo essa, a pessoa tem de se chegar à frente. Se me vir na street, dá-me um props e vê a minha maneira de estar.”

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