Vinil / Cassete / Digital

Milkweed

Remscéla

Broadside Hacks Recordings / 2025

Texto de Hugo Pinto

Publicado a: 24/07/2025

pub

Anos há em que determinado género de música surge inesperadamente na cabeça do melómano. Lê-se muitas vezes que isso se deve à vitalidade desse género ou à melhor pontaria de quem ouve. Parece meio presunçoso e é algo que preferimos atribuir a um acaso qualquer. É a vida.

Em 2023, a folk na generalidade, e a irlandesa em particular, teve bons discos: os históricos Lankum lançam o irónico False Lankum e ainda emprestam dois membros ao quarteto ØXN em CYRM; Myles O’Reilly e Rónán Ó Snodaigh ambientam com The Beautiful Road e John Francis Flynn brinca aos clássicos com Look Over the Wall, See the Sky. São discos que trouxeram um passado para este futuro. Num campo verde, o tradicional casa com o contemporâneo em modo avacalhado. Nestes discos há improvisação e experimentalismo, há maquinarias e instrumentos tradicionais, há espírito aberto e respeito pela história. Tudo em doses variáveis consoante o álbum. De qualquer modo, a atenção pela folk ficou. 

Os Milkweed são um duo irlandês que faz uma folk experimental, infectada pela maquinaria, em modo lo-fi. O seu nome remete para uma planta floral — diz-se que em Portugal se chama Serralha e é invasora. Editam em cassete, o que casa mesmo bem com o modo artesanal das suas gravações. Não nos conquistaram com a tape do ano passado, Folklore 1979, e provavelmente teremos que a ouvir melhor. Pouco ou nada se sabe sobre eles. Há uma foto de promoção em que um casal tapa a cara. Pesquisar quem faz o quê é não só inglório, como desnecessário. Só a música interessa.

E que música é esta? Fazem música experimental, algo arty, que bebe essencialmente da música tradicional irlandesa, do hip hop lo-fi e do trip-hop. Não é festarola em pubs, mas histórias de faca e alguidar com peso histórico e atitude desconstruída. Há um cortar e distorcer, nem sempre fácil de ouvir. Ao mesmo tempo, há beats e samples em loop a acompanhar uma voz feminina estranha “lá ao fundo”. O som é aparentemente familiar, mas rapidamente se deteriora num noise ou num cut inesperado. Tudo isto torna a digestão trabalhosa. Não é fácil nem derivativo; em vez disso é fresco e intelectualmente estimulante.   

São temas quase sempre curtos. Ou será que são concisos? Ou que têm (só) o tempo necessário? Certo é que raramente ultrapassam o minuto e meio. Referencia-se, e bem, o hip hop. Não o das rimas nem o da urbanidade, mas o dos samples e do beat. Não são singles orelhudos, são canções espertas para espíritos inquietos.

Os Milkweed têm três discos, cada um deles inspirado por um texto histórico mais ou menos obscuro. Remscéla inspira-se no épico histórico irlandês, Táin Bó Cúailnge. Uma história que vem do princípio dos tempos, provavelmente antes da escrita e dos romanos, baseada numa tradição oral e que entretanto foi escrita e reescrita ao longo de toda a idade média até aos nossos dias. Resumidamente, é uma história entre nobres e povo, entre a região do Ulster e o resto da Irlanda, sobre um boi sagrado. De forma sucinta e sem querer ofender: são rainhas à porrada por causa de gado. Claro que também há sangue e amores perdidos, sonhos e paraísos na terra. 

“How the Táin Bó Cúailnge Was Found Again” começa com um sample de uma guitarra em loop. Há uma voz a contar uma história lá ao fundo, quase imperceptível, tudo muito cru. Quando tentamos perceber, já foi, porque dura um minuto e meio. Segue-se “How Conchobor was Begotten”, com a mesma guitarra, desta vez com um baixo escuro e uma voz distorcida. Não há rimas nem spoken word, mas há aquela voz numa canção tradicional. E há um (bom) beat de trip-hop fantasmagórico que termina num cut de distorção de guitarra.    

Mais um tema curto, “Téte Brec, The Twinkling Hoard”, com outra batida esperta e num mood ligeiramente mais festivo. A mesma voz feminina, a mesma guitarra, a mesma onda. Em “The Pangs of Ulster” tudo parece gravado na cozinha. É o mais parecido com um tema clássico irlandês. Entra um ritmo lento e uma distorção de uma guitarra. Mais uns loops estranhos de qualquer coisa familiar, clicks’n’cuts com atitude experimental. Volta a voz, distorce a voz. É intrigante este som e pede disponibilidade e mente aberta de quem ouve.

“Drinking in the House of Fedimid” e “Imbas Foresnai, The Light of Foresight” são temas curtos que deixam água na boca. São temas instrumentais interrompidos por noise ou acompanhados por lamentos ocasionais. Há o ovo estrelado do vinil e dele se faz música, como no hip hop, como em N.Y. ou L.A., mas com outra matéria prima. Em “The Milk-Fed Calf”, os chocalhos que anunciam o gado chegam primeiro, depois a voz da jovem, que por esta altura já quase se deixou familiarizar, acompanhada por umas cordas. E ali, será uma sanfona? Já dissemos que é tudo muito lo-fi? Tudo isso acrescenta veracidade, esse lado rústico da gravação. É um tema quase tradicional, mas há uma estranheza aqui não qualificável, embora tentemos.

“Exile of the Sons of Uisliu” é um beat de hip hop com a voz dela a contar algo triste, acompanhada por uns samples com sabor a homemade. Quantas vezes é que já escutaram um tema que é ao mesmo tempo do hip hop alternativo e do tradicional irlandês? “Diga um!” É que nem é Kneecap. É mais experimental, mais genuíno, mais fucked-up. Mais adulto.

“Noisiu’s Voice a Wave Roar, a Sweet Sound to Hear Forever” começa meio abstracto, algo difícil de digerir de tão estranho que é — e nunca se endireita. Não é bem o sweet sound que a letra indica, mas termina em modo quase jocoso. Este lado A da cassete terá uns 25 minutos.

O lado B tem um longo tema com o mesmo tempo, chamado “Lebor na hUidre”. É mais instrumental. Muito folk com a mesma atitude experimental e desconstruída. Há muito banjo, alguns beats, tudo cortado ou distorcido. Anómalo e disfuncional ou estranhamente sedutor, consoante o olhar.

Remscéla é um disco para ninguém. O pessoal da “música do mundo” não vai perceber nem esta maquinaria, nem este lo-fi acentuado. A malta do hip hop não vai perceber este “tradicional irlandês”. Alguns, suspeitamos, até dificuldade irão ter em descobrir o hip hop nisto. Para a grande maioria, este não vais ser um disco fácil de bater o pézinho e cantarolar, mas para quem não cabe em caixinhas e mantém um espírito aberto, para todos os que apreciam a qualidade de um disco ser intelectualmente estimulante enquanto mantém os pés na terra e para os que se dispõem, Remscéla é um mundo.

Quando tudo é parecido com alguma coisa, os Milkweed não se parecem com nada, e é essa genuinidade que faz deles um dos mais frescos projectos de (alt-)folk da actualidade.


pub

Últimos da categoria: Críticas

ØKSE

ØKSE

Texto: Ricardo Vicente Paredes & Sofia Rajado

15.Abr.2025

RBTV

Últimos artigos