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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/11/2021

Amores e desamores a servirem de combustível para uma interessante estreia em solo nacional.

Mike11: “Decidi sair dos fados porque não era esse o meu público e não queria ser julgado por malta que só ouve fado”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/11/2021

Das casas de fado para os palcos do circuito da música urbana, Mike 11 representa a rara fusão entre géneros que tanto têm de semelhante como de diferente – o fado e o hip hop (com os pés bastante vincados no r&b). Por um lado, Micael Henrique tem o tacto, o virtuosismo e a escola clássica do fado – um género popular, algo rígido e muito ligado à tradição; por outro, Mike11 incorpora em si os gostos musicais, a linguagem e a postura de um jovem de 24 anos. Mas é nos pontos comuns que está o sumo para o jovem artista: o facto de serem ambos géneros urbanos, que partem da rua e com respeito nacional (o hip hop, então, cada vez mais) levam-no mesmo a considerar que estes são “o ouro da nação”.

A história de Mike11 é a tempestade perfeita, “provocada”, por exemplo, pelo serviço público de televisão da RTP2 ou a influência musical da irmã. No fim, um jovem com vontade de fazer mais e melhor — e com uma visão para além das fronteiras que muitos músicos colocam a si próprios — foi o que bastou para a criação daquilo que pode ser um novo sub-género musical nas imediações do r&b.

Assim sendo, 19.2k é o primeiro projecto de alguém que se vê como um produtor e que tem uma arma muito especial no seu arsenal: a guitarra portuguesa. O álbum, nesta detalhada entrevista com especial ênfase em cada uma das faixas, trata de uma relação e exibe rasgos do que é uma forma diferente de se encarar uma série de elementos diversos. E, numa época de DIY ligada ao digital, Mike11 rodeou-se de amigos sem prestar atenção a rótulos ou preconceitos.



Começamos pelo título do álbum. O que significa este 19.2k? O teu nome artístico também mete números, não sei se és supersticioso em relação a eles…

Sou um pouco. Eu nasci no dia 11/11 e é daí que vem o 11 do meu nome. Agora, o 19.2k nasce em Agosto de 2020 — [foi] quando comecei a trabalhar nele, [até] porque eu já ando a trabalhar num outro álbum há muito tempo, mas este meteu-se depois e acabou por ficar pronto antes. É um projecto ultra-familiar em que falo da minha vida, do amor aos meus e aos meus que já não são meus também… O 19.2k são os quilates do ouro português. Sou um amante de ouro desde que nasci e ouço falar nisto desde criança através da minha família. Mas uma das razões mais fortes para que o álbum tenha este nome é a guitarra portuguesa, que é Património da Humanidade – é o ouro cultural português, para mim.

É engraçado porque eu adoro a cultura hip hop e r&b e sinto muito que a cultura hip hop é muito parecida com a cultura fadista. São ambas culturas urbanas e o ouro da nação aos meus olhos.

Apesar de parecidas, são culturas que quase nunca se tocam.

É verdade, o Sam The Kid deve ter sido o primeiro a usar um sample de fado.

Entretanto tiveste álbuns como o Bairro da Ponte, que tem muito de fado e de hip hop.

Mas esses projectos apareceram sempre depois da minha cena. E acho muito bem que estas coisas estejam a acontecer, até porque isto abre um pouco a mente ao público para aquilo que eu também faço. Mas o melhor é o uso da guitarra portuguesa, para mim, que tem uma sonoridade incrível. Peço a toda a gente que a tente samplar e criar cenas novas.

Seguindo para o teu primeiro tema, o que nos conta o “Pra Quê Falar”?

A música, de forma menos óbvia, fala dos amigos que não são realmente amigos. Eles estão presentes numa altura em que tu vives bem e tudo corre bem e é uma música que tem uma ligação muito próxima com o Dmauri porque tínhamos o mesmo grupo de amigos, mas quando passámos por uma fase menos boa acabámos por ficar só os dois.

Houve uma altura no projecto em que fui para Los Angeles e tudo era lindo e perfeito, mas quando voltei a vida tomou outra direção e fiquei sozinho. Os amigos vão-se afastando, as amigas também e isto é um poema sobre isso. “Fica na imaginação/ Eu não me vou chatear com quem não tem coração”, estás a ver?

O tema tem uns arranjos de cordas complexos, com violinos e tudo…

Eu pedi a intro ao André Areias que é o diretor musical do projecto e também o meu pianista. Sou um admirador enorme dele. Começámos a trabalhar em 2015 ou 2016 através de um produtor e tivemos logo uma conexão enorme. Quando tinha a música composta pedi-lhe uma intro mais longa que servisse para abrir o álbum e foi o que ele fez. Na intro está uma tag do DB Bantino, um rapper americano muito talentoso com quem trabalhei em conjunto com o Scott Storch. Ele escreve para o Jason Derulo, para o Chris Brown, etc., e tivemos uma boa conexão musical também desde o início. Então, acabei por lhe pedir a ele também que se envolvesse na intro.

Tu és conhecido por tocar guitarra portuguesa, e imagino que quem toque guitarra portuguesa também toque guitarra clássica…

Não necessariamente, mas este álbum é dividido com a guitarra clássica. A ideia era não expor demasiado a guitarra portuguesa, porque as pessoas têm a ideia de que sou “o puto da guitarra” e não sou, ou pelo menos tento não ser só isso. Eu canto, toco guitarra clássica e aquilo que sinto. Sou um gajo que gosta do primeiro take e assim é que fica, e metade das músicas deste álbum têm guitarra portuguesa e a outra metade não.

Mas bem dissimulado. É difícil perceber isso ao ouvir. Aqui tocas clássica da mesma maneira que tocarias guitarra portuguesa?

A estética é a mesma, sim.

O “Qualquer Hora”, por sua vez, é um tema mais dançável e com raízes já muito próximas do r&b onde a guitarra cai para um papel secundário. É um som muito romântico, o que, aliás, parece ser um tema comum a todo o álbum.

Este é um tema mais dançável, tens razão nisso. Foi num estúdio do Porto que eu comecei a fazer o álbum com o Areias e tinha umas linhas de guitarra que por acaso era parecida com a do “Sozinhos à Chuva” dos D.A.M.A, em que eu participei. E queria assim uma vibe à Tyga, mais virada para as clubs com o BPM um bocadinho mais para baixo e numa vibe mais sexy.

Isto surge porque quando comecei a fazer o álbum estava a passar por um desgosto amoroso e foi tudo focado nisso.

Eu gostava de aproveitar esta faixa para tocar no tema da tua voz. Aqui tens um registo vocal diferente e, segundo sei, tu iniciaste-te nos fados a cantar, nem foi à guitarra. Mas cantar fado, ainda por cima tão novo, deve ser muito diferente do que fazes aqui, até porque serias, certamente, sobretudo um intérprete na altura. Como é que surge a escrita de canções?

A minha escrita é demasiado simples, nunca fui um gajo que escrevesse letras. Todos sabem que as minhas letras são simples e tenho no lado da composição o apoio do T-Rex e do Dmauri comigo. Funcionamos muito bem, escrevemos as coisas juntos com as opiniões uns dos outros e é quase um trabalho como o que faço com o director musical.

Mas cantar é natural para mim, eu sempre quis cantar. As pessoas vêm-me como guitarrista, mas eu só lancei um som a tocar guitarra [“My Tata”]! Eu percebo pela exposição que o tema teve, mas aquele é o único som em que eu só toco. Mas é uma coisa que eu gosto muito de fazer e que harmónica e melodicamente me sai de forma muito natural. No Porto nós gravámos um som por dia, para perceberes. Fazíamos produção, voz… tudo num dia.

A “Quem diria” evoca novamente o amor e as mulheres. É o terceiro tema consecutivo que toca nestes assuntos. Isto sai-te de onde? São experiências que viveste?

Exactamente. Esta foi a primeira faixa que eu fiz para o álbum e  é das que mais gosto. Ouço-a muitas vezes. Todos os meus temas sobre relações são inspirados pela mesma relação, mas este é o único que eu escrevi ainda dentro dessa relação. Eu tinha acabado de chegar de L.A. e digo que tudo o que lá vivi não paga o que vivi na relação.

Depois, o resto do álbum nasce de uma vibe mais depressiva. A música foi produzida com o Sebastian Crayn e, como quase todas as outras, passou por um processo em que eu tinha quase 20 beats. Mudo a tonalidade para a coisa encaixar mais no meu registo, por exemplo, e tenho logo mais um beat. O “Quem Diria” é tocado em Fá sustenido menor e eu toco em afinação de Coimbra na guitarra portuguesa e não é tão fixe para a minha sonoridade. Então, tento fazer um exercício que é subir a música meio tom, o que prejudica a minha voz, mas deixa  a minha guitarra portuguesa mais à vontade. Há sempre esse jogo de tentar meter tudo na perfeição.

Este tema tem um trinato no início que é quase um arpejo no acorde, e a base é essa. Não tem algo como costumo fazer, uma malha que fique na cabeça. Aqui não há isso, só um acorde em arpejo com o trinato tipo fadista.



Uma ligação clara à tua escola de fado.

Exatamente. É algo que não consigo descolar de mim e já me é natural. Eu cresci a tocar fados, portanto…

O “Jura” é a tua primeira colaboração vocal e logo com o Dmauri. Para mim foi surpreendente que cantasses em português, e digo isto um pouco pela amostra que tínhamos do teu trabalho e pelos contactos que sabemos que tens nos Estados Unidos. Mas já percebi que estava enganado. Ainda assim, a escrita em inglês é algo que te vejas a fazer?

Eu quero desenvolver a minha escrita em inglês, sim, mas é algo que tenho deixado de lado. Houve uma altura em que decidi voltar para Portugal porque estava farto de estar nos EUA, com saudades da família, do pessoal… Não conseguia fazer alguns dos meus exercícios habituais, eu pelo menos uma vez por mês tenho que ir a uma casa de fados e lá era impossível. Mas também porque a indústria me cansa um bocado. A música é a minha religião desde sempre e sempre fiz música porque sim, porque me veio parar às mãos, mas nunca ambicionei nada com a música para além daquilo que ela me dá, que é simples a felicidade de poder fazer música.

Essa questão do português é mesmo porque eu sinto-me mais eu em português e consigo-me expressar melhor na minha língua. Para mim é mais fácil assim.

Fala-me do Dmauri. Quem é ele, de onde é que se conhecem?

O Dmauri é um amigo de longa data que faz música há coisa de 15 anos. Ele fazia rap com o irmão e tinham um grupo de dancehall, rap… Na altura eles lançaram vários sons mas deixaram de fazer música. Eu conheci-o através do irmão e, mais tarde, tornou-se no meu barbeiro. Ele cortava-me o cabelo e um dia, em conversa, disse-lhe que devia voltar a cantar. Foi uma coisa mesmo muito natural.

A música surgiu no estúdio dos D.A.M.A quando estava a gravar umas guitarras e tem uma história porreira. Mostrei as guitarras ao Dmauri e ele escreveu logo o verso em casa e mandou-me pelo telefone. Quando ouvi o que ele tinha feito decidi que íamos fazer o som juntos, mas as guitarras que eu gravei para aquela música acabaram por ser utilizadas num álbum dos D.A.M.A numa canção que também se chama “Jura”. De repente, eu e os D.A.M.A tínhamos ambos músicas com aquelas guitarras… O que é que eu fiz? Este era um dos meus sons favoritos e já tinha o featuring combinado! Cheguei ao Porto, falei com o director musical do meu projeto e começámos a experimentar com aquelas guitarras, a adicionar camadas. De repente cai um beat de boom bap, por volta dos 90 BPMs, e foi só colar. Regravei as minhas vozes, samplámos a intro de guitarra portuguesa, que parece quase um synth e depois fiz o solo com guitarra clássica e só tive que colar as vozes do Dmauri por cima.

Descalçaste bem essa bota. Ainda a propósito de cantares em português. O facto de conjugares o r&b com a guitarra portuguesa é algo único e diferente, por isso pergunto-te, sabendo que tens amigos e alguns contactos na indústria nos EUA, se não tens a ambição de levar a tua música além-fronteiras?

Um projecto destes acaba por ser difícil sem termo de comparação. Não conseguimos “copiar” nem seguir um modelo porque esta é uma estética musical nova e isso tem impacto nas pessoas, ainda para mais vindo de um artista que provavelmente nunca ouviram.

Mas arrisco-me a dizer que, para quem gosta de rock clássico ou sonoridades de guitarra, a guitarra portuguesa é uma excelente porta para nova música.

Eu também acho que sim! Desde criança e enquanto Micael Henrique toquei em vários países do mundo, Japão, China… e eu sei que as pessoas lá fora querem ouvir isto, talvez mais até do que aqui dentro. Pelo menos sempre foi essa a perspectiva que assumi, mas também toquei mais vezes lá fora do que cá dentro. Mas acho que o público precisa de ser educado e saber que estes projectos existem.

A faixa seguinte é o “Dizer”. O que é que tens para nos contar sobre este tema?

O “Dizer” é o meu instrumental favorito do álbum e tem uma talkbox do Chris, que foi director musical do Ty Dolla $ign, por exemplo. A composição da minha música é muito semelhante entre elas: faço acordes na guitarra clássica e partilho com as pessoas que trabalham comigo. Neste caso falei com o Chris e pedi-lhe logo uma talkbox porque ele é mesmo incrível com aquilo. Demorou 20 minutos, eu colei logo o que ele me enviou no estúdio e depois escrevi o refrão, até porque esta música só tem um verso longo.

Esta música foi co-produzida com o Zoo, que também é o Rutz dos vídeos e que trabalha também muito com o Achero, por exemplo. Esta letra é um bocado egocêntrica, mas no fundo digo a uma pessoa que, apesar de não estarmos juntos, eu continuo nos pensamentos dela onde não me canso de estar.

O “Bloods” é mais uma colaboração em português, como praticamente todo o álbum, mas esta é bastante conhecida do público em geral, o T-Rex. A última vez que falaste connosco disseste-nos que não querias ser rapper, mas calculo que gostes de rap. Era algo que querias ter no teu álbum?

O “Bloods” é a faixa mais street do álbum, mas sem os drums fica quase um r&b.

… que também é um dos domínios do T-Rex.

Eu acho que o T-Rex fica bem em tudo o que lhe deres, mas eu sou um grande fã dele e é difícil falar sobre ele porque só vou dizer bem. Primeiro, é um grande amigo há já vários anos e ele esteve sempre do meu lado, o que merece o meu respeito. Isto já antes de ele ser a figura que é hoje.

Na realidade, o meu verso é cantado num registo próximo do r&b. É uma coisa calma e melódica com auto-tune, claro. Este som fala naquela cena egocêntrica e é um flex sobre ir à discoteca com os meus manos. É o meu “In da Club”.

Por curiosidade, de onde vem esta relação com o T-Rex?

Para te ser sincero, há coisas de que não me lembro bem [risos]. Mas o T-Rex gravava no Big Bit e comecei a ir lá. Estava nos fados e decidi um dia que queria fazer um projecto a solo. Comecei naquele estúdio e conheci logo os Mafia73. Na altura estava todo voltado para os EUA e já tinha tudo marcado, mas não ia lá fazer grande coisa ainda. Tinha tempo, ia fazer uns beats… então, antes disso, comecei a ir para o estúdio e ficámos amigos.

O tema seguinte é o “Rua” e é um no qual, diria eu, se notam menos as guitarras e mais o teu papel enquanto produtor e director deste projeto. Outra coisa que me saltou ao ouvido são umas linhas do que me parece ser um contrabaixo.

[Risos] Aquilo é um baixo — mas espera — eu gravei os baixos de todas as músicas e, curiosamente, no “Rua” o baixo utilizado era um baixo podre que o Rutz tinha em casa só com uma corda…



Fogo…

Pois… Eu não toco baixo, mas estou sempre no mood para gravar e sou muito proactivo. Quando peguei no baixo tive que me adaptar à única corda que tinha e tive de baixar meio tom ao som. Depois foi tentar rebentar com aquela corda [risos]. Acho que até ficou muito bom.

Eu achava que era um contrabaixo!

Os baixistas que me desculpem, eu nem sou baixista, mas aquela ficou fire.

Esta faixa também foi produzida pelo Zoo, disse-lhe como queria os drums e ele fez. A letra e as vozes foram escritas num dia chuvoso no Porto em que eu estava super depressivo. Foi mais um dia que passei a conduzir pela cidade e a fumar cigarros. Por trás, de forma camuflada e em contraponto com a “Lisboa”, esta música é uma homenagem ao Porto.

É algo que fazes para te inspirar, esta cena de andar de carro?

Toda a gente que me conhece sabe dou uma volta no Chiado todos os dias. Vejo a minha cidade, a calçada…

Tu és de Alverca. Ainda moras lá?

Moro sim, e venho de propósito para me inspirar. Os fados têm um tremendo amor à cidade de Lisboa e falam sobre ela, seja Alfama, Mouraria, Bairro Alto, o Tejo…

Enquanto produtor, sei que tens uma abordagem quase à realizador de cinema. Mas cá em Portugal as coisas não costumam funcionar muito assim.

Em Portugal confunde-se o conceito de produtor e beatmaker. O produtor é quem tem a visão e a coloca em prática, nem precisa de tocar em nada. Basta ter as ideias e transmiti-las às pessoas certas. Eu sempre tive este conceito presente, já desde os fados. A música nasce da imaginação e, em criança, eu já tinha uma visão do que queria para mim na altura. Imaginava-me num determinado sítio a tocar de determinada maneira.

O fado vive da resposta à voz, tens que ouvir o poema e imaginar o sentimento que o cantor vai colocar naqueles versos e como vai responder àquela frase. Eu tenho isso em mim. Ainda só produzi o meu projecto em Portugal, mas é só porque nunca surgiram outras oportunidades, excepto isto que te vou contar agora.

Descobri o meu primeiro artista e o projecto dele tem tanta importância para mim como este meu álbum. O Jaca é, na minha opinião, dos melhores artistas que Portugal vai ver, em comparação [com o que apareceu nos] últimos anos. É um jovem de 19 anos que sinto que foi talhado para ser produzido por mim. Descobri-o num estúdio à toa no Porto através de um amigo meu que achou que eu era capaz de gostar. Estamos agora a fechar o EP.

Queria utilizar o “Não me canso” para explorar o teu trajecto no fado. Imagino que mantenhas contacto com essa malta que te acompanhou quando eras somente fadista e guitarrista para fados. O que é que eles acham desta direcção que estás a levar?

Eu fiz por isso, mas sempre senti respeito. A primeira coisa que fiz quando comecei este projecto foi afastar-me dos fados porque, inconscientemente, as pessoas iriam ligar-me ao fado. Este projecto não é fadista. Tem um instrumento que nasce no género mas que pode ser enquadrado em qualquer outro. Decidi sair dos fados porque não era esse o meu público e não queria ser julgado por malta que só ouve fado. Na verdade, não encontro bem um estilo para a minha música, acho que é só mesmo a música do Mike.

O teu mestre de guitarra portuguesa, o que é que ele diz do teu projecto?

Tive dois mestres, o Arménio de Melo, que foi o meu professor, e o Caldeira Cabral que, à distância, me motivou todos os dias. Estas são pessoas mais velhas… não me deram grande feedback. De qualquer forma, a reprovação é algo que me chocaria vindo de pessoas próximas de mim. Se eu estiver feliz com o que estou a fazer iria achar estranho, porque a minha felicidade vai ser sempre mais importante do que a música, ou qualquer outra coisa.

Quanto ao tema, sou grande fã da linguagem west coast com todos os seus synths e leads. Esta música é uma adaptação dessa vibe aos dias de hoje. É mais uma love song que diz que ela não está cá, mas eu nunca me vou cansar de esperar por ela. Tem um solo de guitarra flamenca e traz uma abordagem mais nesse sentido e menos clássica, até porque eu não tenho muito a técnica da guitarra clássica. Toco no sangue, não sou nada certinho a tocar com as mãos.

O tema seguinte é o “Intimissimie tem um videoclip que deve ter dado algum trabalho a produzir…

Quando gravámos a música entrei no tempo errado. Costumo pedir o clique a acompanhar os BPMs para saber quando entrar, mas quem me estava a ajudar esqueceu-se, então entrei fora de tempo mas com aquela malha inicial. Foi tudo one take, a malha e o solo também, que para mim é o melhor do álbum.

A letra é sobre uma relação íntima, a mesma de todo o álbum, e é algo do qual não gosto muito de falar. É mais uma love song. Já o vídeo tem nove meses de trabalho e foi feito pelo Cheezy Ramalho e pelo Gonçalo XZ. Eu sou apenas o intérprete e dono, mas é tudo do Cheezy. Para mim é dos melhores vídeos do ano, pelo que vi. Tenho que lhe dar os parabéns.



Até que ponto te envolves nos vídeos? A tua faceta de produtor estende-se até aí?

Eu tenho vídeos para todas as músicas, só que alguns ainda não saíram. Eu estou sempre perto das ideias e ou as aprovo ou rejeito, mas o que digo a quem colabora nesta área comigo é que façam aquilo que sabem. Se os convidei para trabalhar comigo é porque confio e gosto do trabalho destas pessoas. Depois dou um input nas ideias.

Esta  faixa dá início a uma parte mais sensual do álbum, até porque logo de seguida tens a “Ride”, que tem uma letra arrojada e uma participação muito diferente do registo a que estamos habituados da Bárbara Bandeira. Sei que são amigos, mas como é que isto aconteceu?

Esta música foi feita no Porto também, quando estava a trabalhar com o Areias, mas inicialmente tinha outro beat, mais r&b. Quando vim para Lisboa pensei que queria convidar uma rapariga para colaborar no som e tinha na cabeça uma coisa à antiga, do género Ja Rule e Ashanti, e tinha a Bárbara na cabeça porque é das novas artistas de quem mais gosto, mas achei que ela não ia aceitar. Mas decidi fazer o convite na mesma e ela acabou por gostar bastante. No final acabámos com um lado dela que ninguém conhece.

Quando a ouvi cantar o verso, fiquei sem palavras, só percebi que tínhamos acertado na coisa. Depois, a composição tem a mão da Carolina Deslandes, que para mim é a boss a escrever em português.

De qualquer forma, depois de gravar os vocais com a Bárbara, ainda fui ao estúdio ter com o Mizzy Milles e ouvi para lá uns drums bem mais acelerados, com 102 BPMs. Decidi colar aquilo no “Ride” e ficou tudo incrível. Mandei aquilo à Bárbara e ela nem me deixou voltar ao r&b.

Tenho-te a dizer que é das minhas músicas favoritas do teu álbum.

Obrigado, também foi gravada com o tal baixo de uma corda. E, por baixo do refrão, tem uma guitarra flamenca com uma frase muito simples que pedi ao Landim (que é o produtor que trabalha comigo há mais tempo) que me fizesse na 808, que nem é muito a minha cena. Ele fez e ficou ainda melhor.

Depois do “Ride” tens a “Noite” que ou muito me engano ou tem um poema mais comprido do que as outras. Gostava de aprofundar aqui o tema da tua escrita. Não sei se escrevias fado, mas tem que ser muito diferente  do que fazes agora.

Sim, o poema é maior mas eu nunca escrevi grande coisa de fados, só para mim mesmo — umas experiências. A linguagem para o fado tem que ser muito mais cuidada, mas acho importante passar isso para esta geração mais nova. As palavras têm o seu peso.

Esta foi a penúltima faixa do álbum a ficar terminada e foi feita com o Zoo e o Areias tocou os pianos, numa vibe mais jazzy. Queria mesmo ouvi-lo a tocar e a solar neste tema. Tem uma vibe west coast e o tema é sobre as saudades que tenho da rapariga de todas as canções, não estou a conseguir apagar a chama e peço-lhe que venha passar a noite.

Este é o primeiro projecto em que escreves as tuas letras, embora com muito acompanhamento e de muita gente já com bastante experiência, da Carolina Deslandes ao T-Rex…

Eu tenho um problema em focar-me em tanta coisa, isso faz-me perder um pouco a inspiração e o foco em todos os aspectos. Por isso, faço por me rodear de artistas com quem me sinta bem e em quem confie. Estou sempre a perguntar-lhes com o que é que podem e querem contribuir.

No fundo, és a cola deste projecto, que tem muita cola. Aquela tal noção de produtor que levas para um outro patamar.

Exactamente!

Estamos quase a acabar. A penúltima faixa do teu álbum é a “Escodji” com a participação do Stevão NDM, que eu não conhecia. Entretanto, percebi que é um rapaz novo mas que já está no circuito há alguns anos.

Ele fazia uns freestyles e um boom bap mesmo ghetto. Conheci-o pelo Zoo, que é manager do projecto dele. Um dia cruzámo-nos no estúdio e, por acaso, ele falou do irmão. No final da conversa venho a perceber que o irmão dele é o meu melhor amigo de infância. What the fuck… Mas para não acabar já com as coincidências, quando deitámos mãos ao trabalho reparo que no PC do Zoo está lá uma pasta que diz “Stevão – Mike 11 type beat”. “‘Tás a gozar, mostra lá isso’! Assim que ouvi percebi que tinha de estar no álbum. Gravei o meu verso em 15 minutos e ficou pronto. É das músicas que considero mais fortes do álbum com uma vibe bem comercial em que o Stevão canta em crioulo.

Em Lisboa tens todo um ecossistema crioulo. Quando ouvi isto não consegui deixar de pensar no quão incrível poderia ser o contributo da tua guitarra portuguesa, ou da tua técnica se preferires, para este movimento. É algo no qual te vejas a participar?

Isso nunca aconteceu porque não sou o gajo de fazer os movimentos. Sou leal aos meus projectos e, se me identificar com algum, eu faço. Agora, a guitarra portuguesa tem uma ligação fortíssima a Cabo Verde e à morna, que tem uma grande conexão com o fado. A estrutura harmónica e os próprios temas tratados nas canções são semelhantes, tanto que a morna também nasce muito deste sentimento que é a saudade. No fundo, só ainda não surgiu uma oportunidade, mas se for algo com que me identifique não terei problema em avançar.

Fico curioso para ouvir algo mais dentro desse registo com a tua participação. Acho genuinamente que seria uma boa aposta. Para encerrar temos o “Aguarelas”, que — disseste tu — é dos temas mais importantes.

Essa é, sem dúvida, a música mais importante do álbum. É completamente do meu estilo, daquele r&b puro. Os drums são do Landim, que trabalha muito kizomba, embora ele também faça trap e r&b. Já o Areias fez os arranjos e eu as harmonias. No fim, esta é a música mais madura do álbum e um agradecimento à minha família que sempre esteve lá para mim. Quando cheguei de L.A. tive momentos menos bons e desapareceu muita coisa da minha vida, mas a família não. É um agradecimento a eles, aos meus amigos e aos que estão sempre lá. É um tema para todos e sobre um tema comum a todos: amar a vida e os nossos amigos.

Para uma música como esta achei que fazia sentido ter só guitarra portuguesa, também porque era o fecho do álbum. Era algo importante para mim.

Pegando na família, sei que foi a tua irmã quem te expôs ao r&b e ao hip hop. Quando entram no fado com 12 ou 13 anos é normal que as crianças sejam empurradas pelos pais. Foi o teu caso?

Não, de todo. Não me lembro de ver o meu pai a ouvir música, a minha mãe muito pouco. Este amor à música veio através da minha irmã e da Diana Vilarinho, uma fadista incrível desta nova geração de quem sou muito próximo. Comecei, essencialmente, a ouvir artistas latinos e brasileiros como o João Gilberto, o Jobim e muitos fadistas, mas a minha primeira interacção com música foi com a minha irmã e com os os seus CD: desde Beyoncé, Craig David, Ja Rule… isto em 2002, 2003, 2004. Em Portugal tinha a referência do NGA, mas a música da minha vida é o “Rise and Fall” do Craig David e do Sting. Tento que Mike 11 seja aquilo.

E como é que foste parar ao fado, então?

Tenho uma vaga memória de estar um dia a ver o ZigZag na RTP 2 e, do nada e sem intervalo, passa dos desenhos animados para uma entrevista ao Carlos Paredes. A cara dele causou-me espécie, eu tinha medo do Michael Jackson, por exemplo, e fiquei colado àquela entrevista um bocado por isso. Entretanto, ele começa a contar que tinha composto uma música a imaginar Lisboa ao amanhecer, e começou a tocar o “Canto do Amanhecer”. Quando ele começou a tocar a minha cabeça foi precisamente nessa direcção e comecei a imaginar uma manhã chuvosa em Lisboa, com trânsito… No dia seguinte disse ao meu pai que queria ir aprender guitarra portuguesa ou fados, e nem sabia bem o que era aquilo. Só sabia o que me tinha feito sentir.


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