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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/09/2025

Pop-art musical.

Miguel Feraso Cabral: um artesão de sons e sonhos

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/09/2025

[O arquitecto que desenhava sons]

Lisboa é um lugar de pedras e ecos, e Miguel Feraso Cabral cresceu entre ambos. Formou-se em Arquitectura, profissão de linhas rectas e cálculos exactos, mas sempre lhe correu paralela uma outra cartografia: a dos ruídos, das vozes improvisadas, dos objectos que pediam ser transformados em instrumentos. Professor de artes visuais, ilustrador, web designer — tudo isto atravessou, mas nunca deixou que o fio subterrâneo da música se rompesse. O desenho da cidade fundia-se com a invenção de uma guitarra eléctrica, com um tambor improvisado a partir de um ferro abandonado, com a lataria reciclada que ganhava voz.

A sua trajectória é a de um criador que insiste em habitar a fronteira: nem músico convencional, nem apenas artista visual. Antes um viajante que transporta no corpo o gesto do improviso e a obstinação do construtor.

[A batida inicial: punk e big band]

Antes de se tornar um inventor de dispositivos sonoros, Miguel iniciou-se na bateria, em bandas próximas do punk-rock, onde o ritmo era a urgência e a energia o manifesto. Mais tarde, integrou big bands e orquestras de metais ligadas ao jazz, onde aprendeu a disciplina do colectivo e o peso do sopro como matéria. A partir daí, começou a cruzar ambas as experiências: a electricidade bruta do punk e a arquitectura complexa do jazz. Era já uma preparação invisível para aquilo que viria: a criação de instrumentos próprios, objectos de bricolage sonora que contêm tanto de humor quanto de experimentação científica.

[Rudimentol Records: a casa dos instrumentos impossíveis]

Em 2003, Miguel ergueu um selo como quem constrói um abrigo: Rudimentol. Não era apenas uma editora, mas antes um manifesto estético — a crença de que o rudimentar podia ser sofisticado, que o precário escondia mundos. Entre 2003 e 2011, ali nasceram discos que misturavam guitarras eléctricas com latas, electrónicas com ferros, gravações domésticas com fantasmas de estúdio.

A etnomusicologia ensinar-nos-ia a olhar para estas práticas como continuação de um gesto ancestral: transformar utensílios em ressonadores, converter o quotidiano em música. Tal como povos distantes fizeram tambores de troncos ocos, Miguel fazia cantar o metal abandonado da cidade. A Rudimentol foi, nesse sentido, um laboratório antropológico, um ponto de encontro onde as ruínas urbanas se convertiam em matéria sonora.

[O encontro que nunca aconteceu]

Entre os projectos da Rudimentol, um ganhou nome e eco: The Nevermet Ensemble. Em 2005, reuniu músicos de vários continentes que nunca se encontraram fisicamente. Trocaram sons à distância, enviaram ruídos como quem envia cartas, e desse mosaico nasceu o álbum Quarto Escuro.

A crítica chamou-lhe “a sonic movie”. E talvez seja a imagem mais justa: um filme auditivo, feito de planos que nunca se cruzaram, de diálogos que atravessavam oceanos sem rostos nem palcos. Aqui, Miguel tornou-se não apenas músico, mas cartógrafo de um mundo novo — onde o ensemble não depende do corpo, mas da troca invisível de frequências.

A experiência tem um sabor paradoxal: ao mesmo tempo profundamente solitária e intensamente comunitária. Uma comunidade sem presença física, mas com uma pulsação comum.

[A bricolage sonora dos anos dois mil]

Os primeiros discos de Miguel, lançados em 2003, foram como um estoiro inaugural. Latacantante e RGB revelaram já a sua pulsão para o insólito: objectos metálicos que falavam, gravações domésticas tratadas como arqueologia sonora, pequenas máquinas reinventadas que produziam timbres insuspeitos.

Não se tratava de uma estética da pobreza, mas de uma poética do desvio. Tal como povos transformaram utensílios quotidianos em instrumentos rituais, Miguel convertia a lata em garganta, o fio eléctrico em corda, o ruído em canto. A bricolage era uma forma de resistência e de invenção: não esperar pelo instrumento ideal, mas arrancar música ao que estava ao alcance.

De certo modo, estes discos inauguraram um território paralelo na cena experimental portuguesa: um espaço onde o humor e o conceito caminhavam de mãos dadas, onde a precariedade era eleita como ferramenta criativa.

[O Quarto Escuro e além dele]

Em 2005, com o Nevermet Ensemble, Miguel levou esta lógica ao extremo. Quarto Escuro foi mais do que um álbum: foi um gesto sociológico. Reuniu músicos que nunca se encontraram, dispersos por continentes distintos, e orquestrou um diálogo feito apenas de ficheiros, ecos, fantasmas.

A revista The Wire descreveu-o como “a sonic movie”, e a imagem é certeira: ouvimos sombras, cenas, planos que se sucedem sem guião fixo. A etnomusicologia poderia ler aqui um ritual contemporâneo — a música como rede, como tribo digital, como encontro adiado.

O projecto teria continuidade com Mitsubou (2010), aprofundando esta ideia de comunidade à distância, onde a ausência física não anula a força da interacção.

[A cartografia dos festivais e colaborações]

Ao longo dessa década, Miguel circulou por festivais e encontros em Portugal e no estrangeiro: do Jazz em Agosto ao Alkantara, passando pelo Creative Sources Fest. Tocou a solo, em ensemble, improvisando com guitarras eléctricas ou máquinas inventadas.

Cada concerto era menos um espectáculo e mais uma demonstração antropológica: mostrar como o som podia nascer do acaso, da sucata, da fragilidade. Para o público, não era apenas música; era também a revelação de um método — o improviso como modo de vida, a experimentação como ética.

[Deambul: a errância como método]

Em 2023, Miguel lançou Deambul, um álbum instrumental que parece caminhar sozinho, como um corpo nocturno pelas ruas de Lisboa. Guitarra eléctrica, electrónica e percussão constroem paisagens de errância, fragmentos de viagem. Não há destino: apenas deslocamento, apenas passagem.

O título não engana — trata-se de uma música que não repousa, que se arrasta e levita, que se perde de propósito para reencontrar-se noutro espaço. Aqui, a improvisação mistura-se com a composição, como se Miguel fosse simultaneamente arquitecto e flâneur. Cada faixa é uma esquina, cada textura uma ruína visitada.

Do ponto de vista etnomusicológico, Deambul pode ser lido como uma cartografia íntima da cidade: uma Lisboa transformada em vibração eléctrica, em pulsos rudimentares, em fragmentos de som que não querem ser canção, mas percurso.

[A voz e o nonsense: a viragem para a canção]

Se até então Miguel parecia preferir a abstracção instrumental, em 2024 e 2025 dá-se a aparição da sua voz. Singles como “Pescossso”, “Me”, “Elefante” e “Um Dia Qualquer” revelam uma faceta inesperada: letras em português, embebidas de sarcasmo e nonsense, observando a condição humana com humor distorcido.

Nestas composições, Miguel grava tudo: guitarras, baixos, percussões, vozes. A bricolage mantém-se, mas agora direccionada para a forma canção, onde o nonsense funciona como lupa crítica. Tal como nas suas construções sonoras anteriores, há aqui uma desmontagem do convencional: a canção pop é ao mesmo tempo celebrada e sabotada.

Se Deambul era errância solitária, estes temas são um diálogo irónico com o mundo. O músico passa a olhar de frente para a sociedade, devolvendo-lhe um espelho que exagera, distorce, mas nunca deixa de reflectir.

[A Capa do Urso: Canções de Ironia e Errância]
Do nonsense quotidiano à filosofia do ruído



[“Me”: o pronome como abismo]

A letra revolve a palavra como quem revolve terra: “curiosamente ‘me’ é metade da palavra medo”, “e de ‘me’rda”. O pronome transforma-se em dicionário existencial.

Confessional e linguística em doses iguais, a canção torna-se exercício filosófico: a identidade não é mais do que um fragmento semântico. Etnomusicologicamente, é uma rara apropriação pop da análise da língua, onde o nonsense desvela o drama. É um tema que parece pequeno, mas abre um abismo: afinal, quem é esse me que fala?

[“Elefante”: o animal ausente no centro da sala]

Não encontro o elefante / que andava aqui pela sala / deixou de ser relevante / pirou-se e nem fez a mala.” O famoso “elefante na sala” é aqui nomeado e depois dissolvido.

A canção expõe a arte da negação: todos sabem, mas ninguém fala. O narrador finge normalidade enquanto “afundamos / e não há bóia para ninguém.” Filosoficamente, é a metáfora de uma sociedade que se habitua ao desastre. É também herdeira das canções satíricas populares, que preferiam rir-se da desgraça a encará-la de frente.

[“Tanta Tampa na Garganta”: a claustrofobia da voz contida]

Hoje acordei com vontade de abrir a janela e gritar”. Mas a frase logo se curva: “assim, fechei uma tampa / guardei a garganta para um dia pior.”

A voz contida transforma-se em corpo doente. Há aqui uma etnografia do silêncio imposto, uma censura íntima que ecoa práticas sociais mais vastas: a contenção como sobrevivência. É uma canção que parece pessoal, mas que é também colectiva — quantos de nós não guardamos palavras por medo, por cálculo, por cansaço?

[“Pescossso”: o corpo que não consegue escapar de si]

Por mais que queiras viajar / levas a cabeça contigo.” O jogo de palavras simples abre-se à reflexão ontológica: não há fuga possível, o corpo é cárcere e casa.

Ao insistir que “nenhum pescoço é tão comprido”, Miguel aproxima-se da sabedoria das canções de migração, onde o exílio nunca corta o fio à origem. A ironia esconde uma verdade antropológica: levamos connosco a nossa condição. É um tema de nonsense, mas que ressoa como sabedoria popular.

[“Nadador Safador”: o vazio como desporto radical]

Tenho uma coisa para dizer / eu matei um instrumental”. Logo no arranque, a canção afirma a sua condição de assassinato criativo. O narrador reconhece a futilidade de falar apenas por falar, confessando-se condenado a “encher chouriços”.

Aqui, Miguel constrói um retrato da criação como acto redundante, onde a luta não é contra a censura, mas contra o vazio. Do ponto de vista etnomusicológico, é um canto de trabalho sem função, herdeiro dos ritmos repetitivos que mantêm o corpo em movimento, ainda que não reste nada para transportar.

[“Coisas Suspensas”: a promessa incumprida do silêncio]

Gostava que tu ouvisses / a canção que nunca te fiz.” Este gesto suspenso torna-se a própria canção: falar do que não se disse, cantar o que não foi composto.

Miguel transforma a ausência em presença. São “coisas em suspensão”, como notas que pairam sem resolução, um eco do inacabado que em muitas tradições adquire valor ritual. É uma canção que parece mínima, mas é talvez das mais radicais do disco: não há refrão que resolva, não há catarse, apenas o vazio da promessa. E esse vazio é, afinal, profundamente humano — porque todos vivemos cercados de gestos que nunca chegámos a cumprir.

[“Um Dia Qualquer”: a repetição ansiosa da vida farmacológica]

Era uma vez um dia qualquer / que prometia não ser igual / acabei por reconhecer / era mais do mesmo afinal.”

A canção retrata o cansaço da repetição, o vazio dos dias, o remédio que falha: “foi o efeito que não fez o raio do Alprazolam.” É uma espécie de fado químico, onde a modernidade se traduz em comprimidos que já não funcionam. O refrão resignado poderia ser cantado em qualquer esquina de Lisboa, entre cafés e farmácias: uma balada do quotidiano medicado.

[“Papapapa”: o sentido inventado do absurdo]

O sentido disto tudo é inventar um propósito / e fingir que o descobrimos.” A letra assume a sua própria futilidade.

O nonsense finaliza o disco com sabedoria cínica: não há lógica, mas fingimos que sim. Como mantra minimalista, “Papapapa” é fecho e síntese — a vida reduzida ao ruído, ao balbucio que se aceita como sentido. Aqui o absurdo deixa de ser brincadeira para se revelar como única forma de verdade.

[“Cenografia”: o palco invisível da vida social]

Julguei que achavas um sítio estranho / que tivesses ido ali ao engano.” O narrador descreve um cenário de festa, entre pessoas satisfeitas, mas onde paira o desconforto.

Bem no meio de toda aquela gente / tu parecias ser um pouco diferente.” A letra expõe o contraste entre alinhar e destoar, entre fingir e revelar. É teatro quotidiano, cenografia onde a autenticidade se disfarça de ironia. Cada verso é um foco de luz sobre a performance social: o riso ensaiado, o copo na mão, a coreografia invisível de corpos que fingem naturalidade.

[“O Plano Maravilha”: a ilusão do génio doméstico]

Tive uma ideia que me parece fenomenal / decidi que a partir de hoje eu vou ser genial.” Mas logo depois: “só que não.”

O narrador expõe a fragilidade do sonho de grandeza, desmontando o plano que deveria mudar tudo. É sátira e auto-ironia, lembrando as canções tradicionais de escárnio. Aqui, a cultura do sucesso é reduzida a refrão falhado. Ao mesmo tempo, é uma reflexão sobre o nosso tempo: todos somos pressionados a ter um plano genial, mas a genialidade esvai-se sempre no sarcasmo do quotidiano.

[“Lentes de Contrato”: a apatia como óculos partidos]

Bem sei que tenho imensa coisa por fazer / mas isto não funciona assim.” A falta de energia torna-se tema, a desistência ganha forma de balada breve.

O título joga com “lentes de contacto” e “contrato”: visão e obrigação confundem-se, mas nenhuma se cumpre. É uma canção curta, quase um fragmento, mas condensa em poucas linhas o retrato da fadiga contemporânea. Etnomusicologicamente, poderíamos vê-la como equivalente urbano do fado menor: uma confissão íntima de incapacidade, sem gritos nem melodrama, apenas um murmúrio resignado.

[“O Verso da Contracapa”: o prazer secreto de complicar]

Sabe tão bem complicar.” A frase repete-se como mantra.

A simplicidade do enunciado revela o avesso: complicar é conforto, enrolar é prazer. Miguel escreve uma contracanção: em vez de resolver, diverte-se com a dificuldade. É como se dissesse: o enigma não é um obstáculo, é um lugar onde se pode descansar. Uma filosofia da contracapa, onde o acessório ganha protagonismo e o detalhe eclipsa o essencial.



[A Capa do Urso: Pop-Art em Estado Sonoro]
Entre a bricolage total e a ironia musical

Em A Capa do Urso, Miguel Feraso Cabral é orquestra inteira. Todos os instrumentos — guitarras, teclados, bateria, baixo, percussões, electrónica, manipulação de cassetes, objectos encontrados e até invenções próprias — passam pelas suas mãos. E sobre tudo paira a sua voz, ora em sarcasmo íntimo, ora em nonsense libertador. Gravado entre Algés e Campo de Ourique, ao longo de duas décadas, o disco carrega tanto de diário secreto como de obra cuidadosamente encenada.

O resultado é um verdadeiro gesto de pop-art musical: um quadro sonoro onde se colam fragmentos de estilos, frases do quotidiano, resíduos de ensaios e lampejos de génio. Miguel recusa a homogeneidade, prefere a colagem. O disco salta da pop lírica, com melodias frágeis e transparentes, para momentos de explosão caótica, onde o peso do heavy thrash death metal surge como caricatura sonora. Há aqui uma paleta de cores vasta: baladas que roçam o minimalismo, guitarras saturadas que soam a demolição, electrónica que brilha como néon e batidas que parecem brinquedos avariados.

A produção, apesar de caseira, é meticulosa. Tudo soa claro, intencional, no seu equilíbrio entre excesso e contenção. Há ironia mas também há rigor: a bricolage não é descuido, é método. Etnomusicologicamente, o disco é um inventário de tipologias — da pop sentimental às linguagens extremas — atravessado pela poética do absurdo. Filosoficamente, é um tratado sobre como o humano inventa sentido, mesmo quando o disfarça de ruído.

A Capa do Urso é, assim, um álbum criativo e original: uma obra que assume o kitsch e a colagem como armas críticas, que se diverte a brincar com os limites de género e que transforma fragilidade em potência. É música que sabe rir-se de si própria, sem nunca deixar de ser séria na sua procura de expressão.

[O Eco do Resto]
O absurdo como verdade sonora

Miguel Feraso Cabral lembra-nos que a música não precisa de um território fixo para existir: pode ser ruído reciclado, sarcasmo em refrão ou silêncio que se estende até ao absurdo. A Capa do Urso é menos um disco do que uma errância — e talvez o som mais verdadeiro nasça, afinal, do que parecia resto.

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