Miguel Ângelo tem na última dúzia de anos espalhado muitas notas que arranca ao seu contrabaixo em discos da Carimbo Porta-Jazz: Pedro Neves e Map, MAU, Carlos Azevedo, Kuís Ribeiro e Mazam contaram com a elegância do seu som. E claro que pelo meio ainda houve um registo com o seu próprio quarteto. Mas agora, na sua recém fundada Mais Records, dá continuidade ao trabalho no formato de trio com a edição de Distopia, álbum em que conta com a colaboração de Luís Ribeiro na guitarra e de Mário Costa na bateria.
Em conversa a partir do seu estúdio caseiro, Ângelo explica como foi o processo que o conduziu até esta Distopia, como se conjuga este registo com o anterior álbum do trio, Utopia, e o que é que se esconde dentro de uma música que ele mesmo admite ser o resultado de uma abordagem mais exploratória e experimental.
Percebe-se que há aqui uma continuidade — Utopia e Distopia. De que maneira estes dois trabalhos se relacionam?
Relacionam-se logo na formação, em trio, e na abordagem. Os trios — antigamente com o Zé Miguel, agora com o Luís Ribeiro — eu aproveito-os para ser um bocadinho mais experimental, quer na composição, quer na parte da produção. Creio que o disco anterior era mais aberto, este é um bocado mais fechado, mas é mais experimental na perspectiva da produção. Há uma continuidade, claramente, na questão da descoberta própria da minha costela rock e pop que é mais evidente aqui — talvez pelo facto da guitarra estar muito presente. Aqui há claramente um trabalho de continuidade, de ligação, até mesmo pelo próprio processo, que está mais maturado e mostra melhor para onde quero ir.
Tu mencionas que este disco é um bocado mais fechado do que o anterior, mas depois também dizes que ele é mais experimental. Quando abordas a produção de um novo trabalho, tal como um realizador quando está a preparar um grupo de actores para filmar uma cena, há algum tipo de direcção que tu apresentes aos músicos que te acompanham? Ou é tudo um processo mais intuitivo?
Existe sempre material escrito e isso implica a comunicação de uma ideia. Mas não imponho… Eu prefiro que o pessoal pegue no material e acabe por se apropriar dele. Eu tenho ideias, claro, e em caso de indecisão… O processo aqui no trio é muito colaborativo. Numa sessão de uma semana, andamos aqui a preparar os temas, a decidir para onde vamos ou não vamos, quase como uma banda de rock, que é algo que eu curto bastante. O pessoal contribui todo. Há uma ideia colectiva e depois a decisão final acaba por ser minha. Mas a construção dos temas é um processo muito colaborativo.
De repente, viras-te para o Mário e dizes-lhe “acho que o tempo tem de ser mais rápido”? Viras-te para o Luís e dizes “se calhar, aqui, usava e abusava do pedal de distorção”? Dás esse tipo de instruções às pessoas que estão a interpretar as tuas composições?
Sim. Isso existe numa fase inicial. Mas depois há aquela coisa fixe de alguém me dizer: “Olha, mas eu tinha pensado assim…” Eu acho altamente essa coisa do contraponto.
E tu: “Realmente, assim soa melhor.” [Risos]
Ya, ya! [Risos] Às vezes saem coisas bem mais fixes. Ou então não [risos]. Quando a coisa funciona, vai sempre ficar fixe. Mas eu adoro esse contraponto. É isso que faz a diferença para que eu, em vez de marcar as sessões no Arda ou no CARA, onde não vou ter tanto tempo para isto, porque é tudo muito contado… Aí não acontece muito esta cena da experimentação e da maturação. Portanto eu prefiro estar aqui. Não é um estúdio espectacular, mas permite-me estar aqui uma semana, depois podemos tirar uma férias porque é Natal e retomamos o processo a seguir. Eu acho que o processo é mais criativo assim.
Eu estou a olhar para a parede que tens atrás de ti e não vejo nenhum relógio. Aí o tempo perde-se?
Perde-se completamente. E aqui podemos fazer tempos de pausa, que é uma coisa que nos outros estúdios raramente acontece, pois as sessões são sempre gravar, gravar, gravar. Às vezes tu precisas daqueles cinco, dez minutos, ou até uma hora para beber um copo de vinho, fumar um cigarro, jantar, espairecer… Esse tempo da quebra, de parar por um bocadinho, acho que existe pouco.
Fala-me do processo de criação. O que nós escutamos em disco é o resultado de vocês os três a tocarem ao mesmo tempo no estúdio? São takes completos? Há muita edição posterior?
Tens as duas coisas. Posso dizer-te que o primeiro tema, “The Big Bang”, são dois takes. O “Universe Inflation” também foi de rajada — foi, talvez, o segundo tema que gravámos e ficou logo. O “Realtime” e o “Imaginary Time” também foram num só take. Nós tínhamos ido jantar, bebemos um copo de vinho, na boa. Depois viemos gravar e foi um daqueles takes em que tu chegas ao fim e dizes: “Não mexe. É isto!” Mas há temas que levaram edição posterior, coisas mínimas, de pormenor.
Colar dois minutos do terceiro take com quatro minutos do quinto take, isso não existe?
Não, não. Fiz, claro, no “A Tiny Fracton of a Second”, porque já tinha a ideia para esse tema, que tem aqueles espasmos de bateria. Eu pensei: “Isto assim ficava altamente.” Porque é um tema tão linear e banal, com aquela melodia sempre a correr, que precisava de alguma coisa que quebrasse com a rotina. Nós gravámos o tema, com os solos e tal. Ele tem uns layers de guitarra que o Luís meteu e depois o Mário gravou aquelas coisas completamente “fora” na bateria e eu montei-as. Há aí um trabalho de produção, claramente. No “The Partnership” também há claramente overdub.
De quem é a voz?
Temos duas. Uma é do Stephen Hawkins e a outra, no final, é do Carl Sagan.
Foste buscar dois génios só porque sim.
Porque eu gosto muito desta objectividade da ciência, contra o disparate da chalotice. Há aquela ideia de que Deus e Einstein estão mais próximos do que separados. E há aquela frase do Stephen Hawkins, que ele diz que via Einstein como quem via Deus, porque o ajudou a perceber a origem de todas as coisas.
Como é que registas as tuas composições? São ideias que captas com o telemóvel e depois mandas por WhatsApp aos teus companheiros ou é uma coisa mais sólida? Tens pautas escritas?
Eu sou mais formal nesse capítulo. Tenho ideias que gravo, mas concretizo sempre no papel. Às vezes até faço uma cena estúpida, que é gravar tudo. Gravo a guitarra, gravo o baixo, meto a bateria… Faço um trabalho de pré-produção para perceber se aquilo faz sentido. Mas no fim tenho sempre uma partitura.
Mas o primeiro contacto dos teus colegas com o material é através da partitura ou já lhes mostras coisas gravadas?
Neste disco mostrei cenas gravadas. Fiz aquilo de que falava antes, de gravar tudo.
És uma pessoa que responde criativamente às imagens que vês no telejornal, a um acontecimento que acabou de suceder na tua rua ou a um título de jornal? Essas coisas mexem contigo?
Mexem muito. Eu também sou professor, dou aulas, e nunca abdico da minha função de educador. Até posso estar no recreio, mas não abdico nunca desse papel. Acho que uma pessoa tem mesmo de ter esse sentido cívico. Eu defendo isso com a minha família, com a minha filha, e faço isso nos meus concertos também. Acho que o mundo, mais do que nunca, necessita disso. Portanto, é claro que me afectam as imagens do estado do mundo e tento que isso faça parte do meu discurso ao longo dos dias. Não podemos excluir do que fazemos aquilo que está à nossa volta. E nós, músicos, temos alguma vantagem na questão da visibilidade — temos palco, as pessoas prestam-nos atenção. Eu acho que nós, de alguma forma, temos de usar esse poder ou essa dádiva para alguma coisa útil, que não só a música.
E consegues lembrar-te de exemplos concretos? Alguma notícia que tenhas visto que te tenha feito ir para o estúdio para passares o que estavas a sentir para a música?
Não assim dessa forma directa. Mas sinto que, quando pego num instrumento, o que se passou nesse dia acaba por influenciar o meu estado de espírito e a forma como acabo por escrever, o meu discurso musical. Mas não há uma causa directa. Aliás, às vezes fico tão revoltado que nem consigo… Enfim. Há coisas que me revoltam mesmo. Pode ser um bocadinho estúpido, mas ultimamente até evito ver notícias, pois anda aí uma violência tremenda.
Se por um lado Utopia e Distopia sugerem uma continuidade na exploração de um tema e um certo foco conceptual, por outro lado é impossível não ver aqui também um conjunto de mudanças. Passaste da Porta-Jazz para a tua própria Mais Records, trocaste de guitarrista… O que é que podemos ler nestas transformações?
A questão do guitarrista tem, se calhar, a ver com o conceito. O Zé Miguel é um guitarrista exímio, um gajo muito criativo, mas está envolvido no seu próprio projecto e tem alguma dificuldade em gerir o seu tempo e libertar-se disso. É uma questão de agenda. Depois, este disco é diferente, claramente, em que caminhamos para um outro sítio que assenta melhor no Luís Ribeiro. É o assumir de uma costela mais rockeira, menos conceptual. Esses são os dois factores para a mudança do guitarrista. Em relação à Porta-Jazz, eu continuo a gravar para lá através de outros projectos, mas eu sinto que há coisas com as quais eu nem sempre concordo, com alguns desviares de caminho do ponto-de-vista estético. Não é que eu já não me identifique, mas achei que era melhor seguir o meu caminho. A Porta-Jazz continua a fazer o trabalho fantástico que sempre fez, mas eu queria ter a liberdade de escolher o meu caminho, sem ter a avaliação de um comité que me vai dizer se sim ou não, ou que “não pode ser este mês, não tenho slot para meter o teu disco”, ou os gigs em que tu não tens opinião sobre o cachê… Senti que as coisas eram limitadoras nesse sentido, então segui este meu caminho da liberdade.
E qual é o plano? A Mais Records servirá apenas para lançar projectos teus ou já imaginas este selo como uma coisa mais aberta que, de repente, pode acolher outros projectos?
Nesta fase vejo isto como uma extensão de mim. Não descarto outras coisas, que eventualmente apareçam outros projectos, mas não é uma coisa que vou fazer activamente, tipo “venham para cá.” Isto vai ser uma extensão minha, onde vão surgir os meus discos. Mas as coisas acontecem como acontecem e às vezes acontecem sem a gente chamar por elas. Portanto, se aparecerem outras coisas que façam sentido, porque não?
Uma das coisas que eu acho admiráveis, sobretudo neste mundo do jazz, é a quantidade de projectos editoriais controlados por músicos. A Porta-Jazz é um deles, mas há também a Phonogram Unit, a Robalo, este teu projecto é mais um exemplo disso… Há um ecossistema em que são os músicos a quererem controlar todos os aspectos da divulgação da sua arte e eu acho isso uma coisa muito saudável.
Isso é indiscutível. Eu acho que as editoras faziam sentido no passado, porque elas tinham um papel muito importante no financiamento, tinham os seus próprios estúdios, produziam os discos, pagavam aos músicos… Hoje isso não acontece. O que é que a maior parte das editoras te oferece? A Clean Feed, por exemplo, tem uma visibilidade do caraças e é, obviamente, uma editora super-importante, de renome, com uma visibilidade grande e que consegue pegar no teu disco e metê-lo nos sítios certos. Mas uma grande parte das editoras não consegue fazer isso, portanto, porque é que não faço eu mesmo? Assim tenho total controlo do processo. E depois, grande parte das editoras acabam por ficar com os teu direitos digitais, e não me faz muito sentido abdicar disso a troco de nada, sinceramente.
Para realizares este disco, vejo aqui na contracapa que tiveste alguns apoios importantes, nomeadamente da fundação GDA. Tu candidataste-te ao financiamento, foi isso?
Foi. E é fundamental. Eu acho que a GDA substitui muitas vezes o Estado [risos]. A GDA tem um papel fundamental no apoio a estes nichos, não só na música, como no teatro, na dança… Eles têm planos de apoio à formação, apoio à digressão… Não é muito nem é pouco, é o suficiente para conseguires ser sustentável. Tenho um enorme respeito pelo trabalho que eles fazem e sou um acérrimo defensor deles. Há coisas discutíveis, como a distribuição dos direitos, mas acho que é preferível essa justiça com erros do que uma ausência total dela.
Como é que isto tem sido declinado ao vivo? Já houve apresentações do Distopia?
Já. Tivemos a apresentação do disco no dia 17, agora espero que apareçam mais alguns concertos. Mas nós já tocámos algumas vezes o disco antes de o gravar.
Quão dramáticas são as alterações que esta música sofre quando passa do disco para o palco?
É inevitável ela transformar-se. Para começar, esta música, enfim, muita dela vive do momento e portanto nunca será igual. Existe sempre o factor surpresa, que é incrível. Depois tenho o Mário e o Luís, que são gajos super-criativos, então esse factor surpresa atira-te para sítios muito fixes. Às vezes, estamos a tocar e: “Epá, nunca tínhamos chegado aqui.” E nesta fase inicial é particularmente fixe porque é uma descoberta nova dos caminhos que podemos percorrer. Há coisas que são adaptadas, como é óbvio, porque não posso ter aquelas partes editadas, os overdubs… Mas a gente reinventa-se e a música acontece na mesma, de formas diferentes.
Isto é uma pergunta de um não-músico para um músico: como raio vocês comunicam em palco? Certamente que não estão a mandar mensagens pelo WhatsApp uns aos outros a meio de um concerto [risos]. Fala-me sobre essa química que vocês desenvolvem e que vos permite comunicar em tempo real e quase telepaticamente.
Acho que esse processo se torna muito mais simples quanto melhor tu conheces a pessoa. Ou seja, quando há uma relação de empatia ou de amizade…. Eu já conheço o Mário e o Luís há muito tempo, já toco com eles há imenso tempo. É quase como estares casado [risos]. Por exemplo, há dias em que a minha mulher chega a casa e eu sinto: “Ok, hoje não é um bom dia. Deixa-me lá ir eu cozinhar.” Sentes essas coisas. Vais percebendo os sinais, reacções físicas e musicais. Às vezes o estado das pessoas leva a música para um certo sítio e ela tem mesmo de ir para ali, porque não há volta a dar. Depois também temos uma certa linguagem a tocar, ideias e grelhas, do género: tu percebes quando surge uma certa frase ou uma certa mudança na harmonia e isso diz-te para onde vais a seguir. E quando conheces bem as pessoas, isso torna-se tudo mais simples.
Fala-me do teu contrabaixo de eleição neste momento. Que bacalhau é que usas hoje em dia? [Risos]
O meu bacalhau de eleição é aquele que eu já tenho há mais tempo, que se chama-se Mingus, obviamente [risos].
Porque será? [Risos]
É a minha referência desde sempre. É um contrabaixo que era do Pedro Cravinho, um etnomusicologo. É da altura em que ele estudava jazz aqui no Porto. Depois acho que se casou, ia mudar de país ou uma cena qualquer, e teve de se desfazer do contrabaixo. Ele acabou por deixar o contrabaixo no Belinha, aqui de Paços Brandão, que eu conheço bem. Quando ele recebeu o contrabaixo, ligou-me: “Olha, tenho aqui uma coisa que vais achar fixe. Anda cá ver.” Eu não tinha guito, estava a estudar ainda. Lembro-me de que na altura estava a uns 500 contos. Fui com o meu pai ao banco, ele foi meu fiador, e pedi crédito para o comprar. Até hoje é o meu contrabaixo de eleição. Tenho outros, mas este é o meu menino.
Tens ideia do ano de construção?
Ele é mais do que centenário. O Christian Nogaro foi a última pessoa que mexeu nele. Nunca deixei mais ninguém mexer nele. E ele disse-me que deve ser um contrabaixo francês, até pelo corpo dele. E é assim, tem mais de um século. Não te sei especificar a origem ou quem é o luthier, porque não é conhecido. Se calhar o Cravinho até tem mais informação do que eu sobre isso, mas acho que não, porque presumo que ele teria divulgado isso. É um contrabaixo que andava aí perdido no espaço [risos].