Entre outros, existem dois factores que moldam completamente a experiência de assistir a um concerto e que raramente são mencionados, mesmo que sejam evidentes: o tempo e o espaço. Ver um artista no seu auge ou estar presente na apresentação oficial do álbum que vai determinar uma carreira, por exemplo, são experiências totalmente diferentes do que se formos ver uma banda na sua fase mais nostálgica, quando as suas grandes canções já acumulam décadas de história. O mesmo acontece no espaço. Ver um artista tocar na sua terra-natal ou num país distante torna a performance substancialmente diferente — o contexto é determinante.
Serve esta pequena reflexão e introdução para nos posicionar em relação ao concerto dos Micro desta sexta-feira, 18 de Julho, nas Festas de Carcavelos e da Parede. É óbvio que o trio composto por D-Mars, Sagas (ou Sagaz) e DJ Nel’Assassin deixou para trás os maiores dias de glória enquanto grupo, com todas as circunstâncias internas e externas que se alteraram desde então. Mas vê-los a jogar em casa, junto do Mercado de Carcavelos e tendo os comboios graffitados da Linha de Cascais a passar atrás como pano de fundo, tornou a experiência distinta em relação a uma qualquer sala de espectáculos ou festival.
Numa noite em que os grandes cabeças de cartaz eram, naturalmente, Branko e Regula — também tendo havido espaço para o local DJ Big — a festa começou com uma comitiva da velha escola do hip hop tuga da Linha de Cascais. DJ Cruzfader foi o primeiro a subir ao palco, tocando um set de meia hora e dando, depois, a vez aos Micro.
Também o grupo formado em 1996 decidiu abrir com os pratos, com Nel’Assassin a assumir a posição de anfitrião inicial, dando as boas-vindas às centenas de pessoas que se iam acumulando no recinto das Festas de Carcavelos e da Parede, incentivando o público a entoar as faixas que ia seleccionando — muitas das quais, se não mesmo todas, com instrumentais produzidos por si, sobre os quais escutámos rimas de Sam The Kid, Mundo Segundo, Fuse ou Phoenix RDC, entre outros. O já clássico “It’s A Complow”, editado há mais de duas décadas, também não falhou o alinhamento.
Estava o aquecimento feito para que Sagas e D-Mars irrompessem pelo palco adentro, logo com uma das suas faixas mais badaladas da última década. “Micro saiu de casa para pôr os pontos nos i’s”, ouve-se no refrão contagiante, mostrando logo ao que vinham com “Pontos nos I’s”. Embora tenham lançado há quatro anos o disco Crónicas Microlandesas, um concerto de Micro é um acontecimento raro nos dias que correm, sempre envolto numa aura especial de reunião, que desta vez atraiu velhos amigos e colegas de escola, numa zona em que são uma referência maior da história do hip hop.
Sem nunca perderem a humildade que também os caracteriza, D-Mars e Sagas foram puxando desses galardões, reivindicando um legado palpável que foi fundamental para estabelecer os alicerces de um movimento independente nos anos 90 e 2000. Afinal, a par de Sam The Kid, foram os primeiros em Portugal a lançar um disco por si próprios, sem precisarem de uma grande editora por trás. Mesmo que o grupo já não se encontre numa fase de actividade constante, os Micro apresentaram-se como uma máquina mais do que oleada, provando que a experiência é um trunfo valioso e que também existe espaço para um rap maduro e adulto numa época de crescente infantilização em várias áreas.
O mais curioso e digno de nota é que, para tal, não precisaram de apresentar novas canções nem de revelar versos recentes — as grandes faixas do seu legado, erguido em grande medida durante a sua juventude, espelham bem esta maturidade e uma sólida consciência artística e social, até porque os Micro foram fundamentais na construção de um imaginário em torno do hip hop feito em Portugal, na união das diferentes vertentes da cultura na crew Microlândia. Pelo meio, prestaram um sentido tributo ao malogrado Nomen, herói local e figura fulcral do graffiti em Portugal, outro dos imprescindíveis da crew.
“Rimas e Batidas”, “Microlandeses”, “Políticas à Parte”, “Rimassassinas” e, claro, o emblemático “Respeito” foram alguns dos temas interpretados em palco que demonstram a vitalidade destas canções — tantos anos depois, mantêm rimas pertinentes e refrões orelhudos, com a química entre os dois MC’s, cujas diferenças sempre resultaram num equilíbrio invejável, a sair enaltecida, desde a frieza eslava de D-Mars ao calor crioulo de Sagas.
Feitas as contas, uma noite de nostalgia — qualquer movimento artístico e social com longevidade necessita das suas referências, dos seus cânones, do seu imaginário colectivo — que volta a demonstrar que, por baixo de qualquer cultura de massas, existem bases sólidas, caves robustas, que sustentam um edifício cada vez mais alto, qual arranha-céus a furar a atmosfera.
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