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Publicado a: 24/07/2015

Michael Rother: era uma vez o Krautrock

Publicado a: 24/07/2015

[FOTO] Yusako Aoki/Red Bull Music Academy

 

Quando subir ao palco do festival minhoto Milhões de Festa, no dia 25, Michael Rother tocará ao vivo pela primeira vez em Portugal, mais de 40 anos após a edição do álbum de estreia dos Neu!, projecto que criou com o baterista Klaus Dinger após ambos terem tido uma breve experiência como integrantes de uma versão passageira dos Kraftwerk, ao lado de Florian Schneider. Rother tem igualmente programada uma apresentação para Lisboa, na galeria Zé dos Bois, no dia 27. Neste caso será um regresso, após uma visita promocional em 1978, a convite da Valentim de Carvalho que na época editou por cá o álbum Sterntaler. “Levaram-me a casas de fados e desde então que sou um fã da guitarra portuguesa, do seu som. Será bom regressar a Lisboa, após tanto tempo”, explica-nos, via Skype, Michael Rother, instalado na sua casa de campo em Forst e com um ar muito mais jovial do que seria de esperar tendo em conta que este ano celebrará o seu 65º aniversário.

Rother é, muito claramente, um conversador nato, que adora detalhar o seu pensamento, nunca se esquivando a perguntas. E possui uma memória muito clara de todos os episódios de uma vida musicalmente muito rica que representa, na verdade, uma espécie de intersecção no labirinto que o resto do mundo conhece como krautrock – “um termo a que eu resisto naturalmente”, confessa o guitarrista, “prefiro pensar na música que fazíamos como algo que se movia incessantemente em direcção ao horizonte, num movimento perpétuo”. Poético, mas pouco eficaz como divisor de secção numa loja de discos, por exemplo.

Em Future Days – Krautrock and the Building of Modern Germany (Faber, 2014), o autor David Stubbs dedica algum espaço a discutir as implicações do termo “krautrock” enumerando os exemplos de resistência ao classificativo nascido no seio da imprensa inglesa dos anos 70. Questiona Stubbs: “Como poderia uma única palavra encapsular tanto os ambientes extremos e espaciais dos Ash Ra Tempel como as pesadas colagens industriais dos Faust? A placidez falsamente burguesa dos Kraftwerk e a agitação caótica e feroz dos Amon Düül? Os patamares eclesiásticos dos Popol Vuh e as profundezas sacrílegas dos Can? O ruído sufocante, extremo e maximal dos Kluster e a beleza ambiental, esparsa e hortícola dos Cluster?”

Poderíamos, a esta lista de casos díspares, e questionar igualmente, pegando no currículo de Michael Rother, como poderia, afinal, esse único termo agregar tanto a perpétua deriva tectónica dos Neu! como a deambulação sem rumo aparente pela estratosfera conduzida pelos Harmonia? “Krautrock”, sugere ainda David Stubbs, “foi um fenómeno histórico e cultural, muito mais do que uma forma de tocar”. E esta é a ideia que atravessa também o discurso de Michael Rother que aceita guiar-nos pelo complexo labirinto musical desenhado na Alemanha do pós-guerra na década que se estendeu à frente do Maio de 68.

 


 


[SINTONIA GERACIONAL]

“Acabei a escola em 1969 e depois em vez de ir para a tropa declarei-me objector de consciência. Tocava em bandas desde 1965 e quando a década terminou o que se sentia era uma enorme agitação política e uma grande instabilidade social. Foi nesse período que a minha cabeça se abriu às questões políticas”, começa por explicar Michael Rother, “pintando” com algum detalhe a paisagem que serviu de cenário ao florescimento da geração que a imprensa inglesa agregaria então sob o termo krautrock. “Penso que todos sentíamos o mesmo, mas era mais uma questão de sintonia geracional do que algum movimento organizado ou uma origem comum. Só descobri mais tarde as pessoas que formaram os Kraftwerk, os Can, Amon Duul, Popol Vuh ou Cluster”, admite o músico, “não era como se viéssemos todos de um mesmo sítio”.

“Foi em 1971 que conheci, no estúdio deles, o Ralf Hütter, o Florian Schneider e o Klaus Dinger. E o Ralf Hütter foi decisivo para mim porque foi o primeiro músico que conheci que tinha, tal como eu, uma abordagem à música muito distinta da de outros músicos mais devedores das escalas clássicas dos blues. A nossa bagagem harmónica e melódica era decididamente mais centro-europeia”. Michael Rother aponta, logo aí, um dos traços mais marcantes do DNA musical da sua geração. Se, por um lado, era fruto de uma época de agitação política, de imposição de valores ideológicos que os distanciassem do passado que então ainda era muito recente da Alemanha Nazi, por outro lado também não mostrava grande interesse em adoptar a cultura trazida pelo exército americano que ocupava tantas bases em território germânico.

“Foi um encontro importante, esse. Através do Ralf Hütter e do Florian Schneider conheci também o Conny Plank”, outra figura muito importante dessa época”, explica Rother, referindo-se a um produtor-chave de toda a música alemã desta época, “e claro depois fui levado até ao Dieter Moebius e ao Hans-Joachim Roedelius, os Cluster, com quem haveria de criar os Harmonia. Foi tudo obra do acaso, só precisei mesmo de seguir aquele fio condutor”, minimiza o fundador dos Neu!. “Uma coisa que tínhamos em comum era o desejo de sermos todos diferentes, únicos”, prossegue. “Isso obrigava-nos a lutar constantemente por causa da música, porque tínhamos personalidades tão diferentes uns dos outros: o Moebius era um anarquista total, nunca ensaiava, tudo o que fazia resultava de improvisos; já o Roedelius era muito diferente, ele tocava sempre os mesmos padrões que abriram espaço para a minha guitarra, era generoso, e muito imaginativo: com pouco equipamento fazíamos coisas incríveis – nunca tivemos montanhas de sintetizadores, como os Tangerine Dream por exemplo”.

Na esfera mais imediata de Michael Rother estava ainda Klaus Dinger, claro, o baterista dos Neu!: “Nunca conheci ninguém como o Klaus”, começa por garantir o guitarrista. “Ele tinha uma enorme força e determinação, era impressionante. Ele não gostava da expressão motorik que foi tantas vezes usada para o descrever. Na verdade, ele não era um baterista fantástico do ponto de vista técnico, não era nada preciso como por exemplo o Jaki Liebezeit dos Can, que conseguia soar como um metrónomo. Mas o Klaus tinha uma visão de uma música diferente, ele era imparável – numa noite boa ouvi-lo a tocar era como ser atirado para o horizonte. Nós não éramos amigos, éramos tão diferentes… mas nunca discutimos a propósito de música”. Michael Rother parece falar quase de um sentido de missão, de uma visão comum que não apenas impulsionava os Neu!, mas toda uma geração de músicos que tinham vontade de escapar ao passado e construir um futuro diferente.

 


 


[O ELOGIO DA DIFERENÇA]

“Éramos um pequeno grupo de pessoas a fazer coisas experimentais, à procura da diferença e da novidade”, garante Rother, contrariando a ideia de que musicalmente a Alemanha caminhasse nessa época numa única direcção e em perfeita sintonia. “O Conny Plank tinha uma visão semelhante e procurava igualmente fazer as coisas de forma diferente. O seu instrumento era o estúdio e ele usava-o de forma incrível. Na verdade, ele procurou gente maluca como nós porque ele queria fazer coisas malucas. Nós fomos ter com ele levando apenas ideias malucas e nenhum dinheiro e ele nunca deixou de querer partilhar o risco connosco – não tínhamos contrato, nem garantias e ainda assim ele acreditou sempre nos Neu!”, explica o músico, deixando claro que o espírito de aventura, muito mais do que alguma noção aguda de mercado, guiou os seus Neu!. “Quanto mostramos o tema “Hallogallo” a um tipo de uma editora no estúdio do Conny Plank ele abanou a cabeça e disse-nos que o som de bateria estava todo errado e que deveríamos ouvir como os ingleses gravavam baterias”. Michael Rother nem precisa de sublinhar a ironia de tal opinião, quando, décadas depois, é precisamente para a fundação rítmica de Dinger que se aponta quando se procuram razões para a longevidade desta música e para o seu impacto em gerações posteriores.

“Encontrámos uma editora, a Metronome, que tinha um selo chamado Brain e eles aceitaram a nossa visão. Mas até a Brain hoje beneficia de uma diferente imagem – é vista como uma editora com um catálogo muito experimental, mas esses são apenas os discos que resistiram ao tempo. Eles editaram algumas coisas terríveis, como os Scorpions, por exemplo”. está visto que Michael Rother não alinha com a visão mais romântica construída em torno da ideia de Krautrock. A Brain, etiqueta formada Bruno Wendel e Gunter Karber, estreou-se de facto com Lonesome Crow, dos Scorpions, mas abriu espaço no seu catálogo a bandas como Cluster, Embryo, a músicos como Edgar Froese e Klaus Schulze (ambos dos Tangerine Dream) e claro aos projectos de Michael Rother Neu! e Harmonia. Gunter Karber sairia da Brian em 1975 para inaugurar outro selo importante, Sky, que lançou, por exemplo, o álbum de Brian Eno com os Cluster e os discos a solo do próprio Michael Rother. Etiquetas como a Bacillus, a Ohr ou a sua sucessora Kosmische Musik – termo aliás preferido por muitos músicos como designação conceptual mais justa para o que aconteceu à zona mais exploratória da música alemã dos anos 70 – ajudam a completar o mosaico comummente designado por krautrock.

 


 


[DOS CAN A DAVID BOWIE]

Se existe uma santíssima trindade no céu cósmico do krautrock e os Kraftwerk representam o pai, os Neu! o filho, já que são um projecto que nasceu, precisamente, após uma experiência ao lado de Florian Schneider e Ralf Hutter, então os Can de Michael Karoli, Irwin Schmidt, Holger Czukay e Jaki Liebezeit serão o negativo do espírito santo. “Os Kraftwerk, quando eu e o Klaus ainda estávamos no grupo, fizeram pelo menos dois concertos com os Can, em 1971. E foi aí que percebi a enormidade do Jaki Liebezeit. A partir daí ouvi sempre o que eles foram editando e a conclusão era sempre a mesma – a de que aquele baterista era um mágico. Não hesitei em convidá-lo para mais tarde trabalhar comigo nos meus álbuns a solo. Ele consegue acrescentar valor a cada uma das notas que toca”.

Mesmo após tantos anos e após uma tão notória consagração crítica dos Can, Micahel Rother continua a não se rever inteiramente na música dos homens de Tago Mago, embora não poupe elogios ao seu baterista. Mas nessa resistência pode ler-se igualmente mais uma prova da diversidade de um género, mesmo no seio do seu trio nuclear. Kraftwerk, Neu! e Can eram entidades artísticas de facto muito diferentes e até quase opostas. E talvez fosse essa diversidade, por oposição a uma maior sintonia de mercado, que músicos britânicos começaram a querer explorar também em meados dos anos 70.

“O Brian Eno visitou-nos em 1974, num concerto, e começou a dizer-nos que ele e amigos seus como o David Bowie falavam muito sobre a nossa música e sobre o quanto a achavam importante. Isso deveria logo aí ter sido um sinal, porque a verdade é que a nossa música nunca registou impacto junto das massas, mesmo anos mais tarde”. Rother refere-se à dificuldade que na época os músicos da sua geração tiveram em perceber o alcance das suas experiências. Esse processo de validação exterior, mesmo tendo em conta os ecos na imprensa inglesa da época que ao adoptar a designação krautrock não escondia uma certa desconfiança ideológica perante o que então borbulhava na Alemanha, demorou décadas. “Foi gente como Thurston Moore e os Sonic Youth que fizeram uma canção chamada “Two Cool Rock Chicks Listening to Neu” (na verdade uma criação do projecto paralelo Ciccone Youth) que confirmou e validou o que tínhamos feito muitos anos antes . Depois vi uma banda como os Stereolab a tocar e até parecia que me estava a ouvir a mim mesmo. Mas a verdade é que nenhum de nós pensou alguma vez que seríamos ouvidos 10 ou 20 anos mais tarde”, assegura Michael Rother.

E talvez o que se passou entre Rother e David Bowie tenha contribuído para essa desconfiança. O “período de Berlim” do camaleão é hoje visto como dos mais férteis em termos artísticos no seu catálogo e para isso muito contribuiu o absorver de ideias que alimentavam o lado mais aventureiro do krautrock. “ O que o David Bowie fez foi acordar a nossa música, pegar em certos elementos, mas não tendo a coragem de abandonar a sua bagagem cultural britânica”, lamenta, tantos anos depois, Michael Rother. “Na verdade, eu não conhecia a música dele assim tão bem. O Klaus Dinger adorava-o e ouvia os discos dele muitas vezes, por isso eu tinha consciência da música dele, mas não era o tipo de música que eu colocava para ouvir quando chegava a casa. Na verdade não ouvíamos assim muita música pop, embora possa dizer que os Roxy Music eram uma banda popular entre nós, tal como o Brian Eno mais tarde. Lembro-me que ouvíamos Moondog com alguma frequência também…”

“Quando eu ouço o “Heroes”, que é o álbum em que eu deveria ter tocado, penso que é uma música interessante. Não posso dizer que seja algo muito próximo da minha música, porque ainda se baseia no formato canção, mas nos momentos mais ambientais, em coisas como “V-2 Schneider”, sinto uma maior afinidade. É definitivamente mais interessante do que 90 por cento da música pop. Mas é um exercício curioso pensar no que teria acontecido se tivéssemos de facto colaborado”. Michael Rother explica que o management que controlava a carreira de Bowie na época terá resistido ao impulso inicial do músico de colaborar com artistas alemães e o telefonema inicialmente feito para Michael Rother acabou por não gerar frutos dando aliás azo a um equívoco que levou décadas a ser desfeito, algo que só aconteceu graças ao cruzamento de entrevistas na imprensa inglesa: Bowie acreditava que Michael Rother simplesmente tinha ignorado o seu convite e o músico alemão pensou que a estrela pop simplesmente tinha desistido de um capricho fugaz.

“Eu era um hippie”, explica já em jeito de conclusão Michael Rother, “ em certos aspectos ainda sou. O foco do que fazíamos e do que continuamos a fazer nunca foi o dinheiro. Claro que o aceito sempre que possível, mas o que nos guiava não eram números de vendas ou cachets milionários, mas uma sede inexplicável de fazer música diferente, de explorar regiões novas”. Essa sede de que Michael Rother fala continua presente e o guitarrista não esconde, por exemplo, a excitação em que vive por ir receber a cantora Anika, que participa nesta digressão, na sua casa de Forst para a gravação de novo material. A cantora, que gravou para a Stones Throw e para a Invada, editora de Geoff Barrow dos Portishead, é claramente influenciada pelo clássico som kraut e por isso a aliança com Rother faz pleno sentido: “ainda não sei bem o que vamos fazer, vamos experimentar coisas novas, certamente”. Ao contrário de Ralf Hütter, que muito claramente tem guiado o legado dos Kraftwerk no sentido da cristalização do seu modelo clássico, tratando a música do grupo como se trata a obra de um pintor numa exposição, Rother tem outras ideias. que expõe antes de se despedir: “Quero viver e não ser enfiado num museu. Se preferirem ponham-me num foguetão e disparem-me em direcção ao universo. Seria um destino muito melhor do que ficar confinado a uma redoma”.

*Texto originalmente publicado na edição 108 da revista Blitz.

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