Ao segundo dia confirmou-se o palco do Teatro Académico de Gil Vicente como lugar de estreias absolutas de novos discos no menor — Festival de Música Electrónica. Premières que ninguém sabia, na antítese dos anúncios com função de trazer público e chamar a atenção para as novidades. Às sextas, as estreias discográficas são a regra para os novos discos, assim como as quintas para os filmes. O quebrar das regras abre novas possibilidades — o efeito surpresa. Ir a um festival de música sem saber o que se vai ouvir. Num contexto do “aqui e agora” haverá um público a sustentar a ousadia? E do lado de quem atrás da cortina surge para dar a conhecer a sua música a novas plateias? Far-se-á desta quebra uma regra a seguir no menor?
Rafael Toral, tornado em terceiro segredo revelado no menor. Com ele traz Spectral Evolution, álbum recém chegado como se deu conta aqui na habitual sexta-feira farta. “Ao todo, são 12 os andamentos que Toral nos serve numa só faixa, […] cuja edição aconteceu [dia 23/2] pela Moikai, selo subsidiário da Drag City e fundado por Jim O’Rourke, que volta assim à actividade com música assinada por um artista português. Nome de grande destaque dentro da cena experimental nacional — com terreno desbravado nos meandros do jazz, da electrónica e da ambient […]. Spectral Evolution foi gravado entre 2020 e 2022 com recurso a guitarra, baixo e vários instrumentos electrónicos.” Tudo isso para conferir num concerto de estreia anunciado à boca de cena, ao abrir da cortina, e como numa folha de sala lida em voz alta, é anunciando que o disco será tocado na integra em palco.
Tal como em disco Toral faz-se acompanhar da presença de um chapim-real projectado. A imagem que Sylvain Georges captou surge em fundo de palco. Pássaro em pose meta-estável, pronto a voar, de olhar fulgurante, pleno de emoção. Entre os demais chapins, esta é uma espécie com inumeráveis chamamentos, mais poderosos, ligeiramente sonhadores e melancólicos. O mote para Toral é não estar verdadeiramente sozinho em palco, assim como quando viu pela primeira vez a imagem sentiu a certeza da sua companhia. Um guitarrista em uso do instrumento para além dele, em diálogo evolutivo com o espectro surgido das interacções permanentes das cordas com o processamento a jusante, a devolver a corrente sónica dominante. A tónica é expressa em frequências controladas em afinações de maior conforto na fruição musical. Sente-se a organicidade do espectro sonoro a entrar e a acompanhar o ciclo contração-distensão cardíaca, na propulsão sanguínea vital. Toral é sabedor da música como agente de bem-estar e a esse propósito, assumido em disco, afina os instrumentos na frequência mais benéfica para a audição nuns propositados 432 Hz. Toca com todas as possibilidades, na expressão de maestro e executante em si mesmo, mãos nas cordas e pés nos pedais, coordenados em uníssonos imprescindíveis. Capaz de revelar um guitarrista a tocar consigo próprio, tantas vezes a tocar sem tocar-lhes — as cordas por si mesmas. Sucedem-se as composições do disco, em placo, de “Changes”, entre “Descending” até “Ascending”, num propósito condutor no posicionamento, que induz mudanças, descendo para ver de perto. Mais tarde faz subir ao cimo do lugar, deixando tudo incólume, sem perturbar, o que se revelou na incursão presenteada. Percursos para que se vislumbre melhor o microcosmos revelado de entidades emaranhadas no húmus sónico, onde vivem criaturas que só esta música pode revelar. Enternecendo em redor, pela paisagem desenhada, em cascatas de harmonias espectrais, alimentos sónicos demorados na degustação do momento. O efeito feedback, limpo e controlado à medida, em dose vital, alimentando as criaturas à mão. Evoluindo em espectros que pairam na dimensão do sonho melancólico, como os chamamentos outonais dos chapins. Para um grande final, em pé, como as ovações de plateias desprendidas o fazem, o mestre deixa a guitarra a tocar sozinha, em versão estendida, e ocupa-se do dispositivo teremim. Num voltar a “Changes”, agora tocada sem tocar no instrumento modelador do espectro para a derradeira “Changes Reprise”, numa despedida elementar e depurada. Foi o maior neste menor, assumindo também o músico este registo como momento maior do seu percurso até aqui.
Rita Silva & Mbye Ebrima foram os derradeiros nomes guardados do festival. Entre todos também os mais desconhecidos, mesmo que fossem revelados à partida. Rita é autora musical operando sintetizadores modulares e deu a conhecer a sua música com Studies Vol. I (2021) e the alternate inflationary epoch, mesmo no final de 2023. Consciente da possibilidade da música como entidade viva, como organismos com vida própria, encara assim cada retomar das suas composições a cada ocasião. Aqui surgida em placo junto de Ebrima, músico vindo da Gâmbia. Culturalmente enraizado nos mandinga-kaabunké, é musicalmente um jali, ou griot — nome dado aos indivíduos que, para além de tocadores de kora, são mestres de cerimónia dos povos Mandé, fazendo uso da palavra cantada e como pregadores de mensagens. Os dois músicos estabelecem um promissor encontro de culturas distantes até na lonjura do tempo, numa viagem comprometida com a descoberta, num cruzamento inesperado. Voltar a ver a “harpa” do oeste africano ali erguida é voltar de imediato à memória no mesmo palco onde Toumani Diabaté há muito tempo actuou e com sublime prestação elevou uma plateia pelos encantos das 21 cordas. Agora Ebrima presta-se a novos decalques no caminho deixado pelo mestre maliano. A kora é daqueles instrumentos que se combina com tantos quantos os que o sonho revele. Kora junto a um sintetizador modular é um desses casos certamente. Os primeiros instantes sónicos soam a um ancestral comum, como se estes dois instrumentos algures no tempo derivassem dum tronco comum, num diacronismo utópico. A realidade é que um sintetizador modular permite quase uma infinidade de possibilidades, permutável sem sair de si. Rita encontra-lhe o timbre granular à razão deste feliz encontro. A kora fala por si, como que (en)canta, em feitiço visual ante mesmo de se fazer ouvir. Como num tear, desenha-se um padrão que vem do cruzamento dos fios condutores, cordas ao alto e cabos multicolores. E nisto há recorrentes visitantes, de volta ao palco — aves canoras e ressonantes pica-paus. Proponentes de um mundo sonhado onde habitam os que ali estão em palco e sobrevoam em espectros sonoros o lugar. Esse lugar saboreia-se fora do tempo conhecido num espaço imaginado. O palco resulta numa miscigenação que enriquece, somando as partes e devolvendo mais que isso. Ebrima, para além da kora, percute uma calabash, instrumento como a caixa-ressonante da kora, hemisfério feito de gigantes cabaças africanas. Emerge na música o som da terra, quente e vermelha. Erradia a expressão vocal a completar a dimensão deste griot, que quer que nos levantemos pela harmonia dos povos. Volta o ciclo das três instrumentações, como num ritual telúrico — kora-calabash-voz. Terminam com o propósito de fazer levantar todas e todos, como representantes em assembleia, para a redenção final.
De menor, acabou por ficar apenas o nome, todo o mais foi tornado bem maior, revelados e vividos os segredos que o souberam fazer crescer.