Foi da seguinte forma que fomos recebidos pelos Memória de Peixe na Culturgest quarta-feira passada (16 de Abril): uma “interferência” propositada no aviso de desligar o som do telemóvel, um monólogo sobre um tempo dentro do tempo, e a chegada de uma cápsula espacial à terra (ou talvez a outro planeta). Depois, os cinco músicos: o trio nuclear formado por Miguel Nicolau na guitarra, Filipe Louro no baixo e Pedro Melo Alves na bateria, e as adições de João Hasselberg nos teclados e Bernardo Tinoco no saxofone, de frente para esta presença alienígena em palco, deram-nos música tão excêntrica como este começo, e permitiram ao público viajar dentro dos seus próprios corpos. Parece tão especial quanto espacial — e foi — mas indiciou uma apresentação marcada mais pelo vácuo do que pela substância.
É apropriado que uma banda que é hoje quase estrangeira ao paradigma musical português se muna do imaginário sci-fi para anunciar o seu regresso. Desde Himiko Cloud, lançado em outubro de 2016, não ouvimos mais trabalho novo do projeto de Miguel Nicolau até final do ano passado, com os singles “Good Morning” e “03:13”. O seu indie-pop experimental pede igualmente o acompanhamento destes universos extraterrestres e, como veríamos mais à frente no concerto, também remetentes à natureza. Desde o início ao fim da hora que passámos dentro do Auditório Emílio Rui Vilar, ficou claro que os Memória de Peixe queriam dar-nos mais do que um concerto: a proposta era uma experiência imersiva, uma viagem que pudéssemos levar a cabo bem instalados nas poltronas da sala principal da Culturgest.
Havia boas razões para que o público estivesse entusiasmado com este concerto: III é, em primeiro lugar, um álbum exemplar, com poucos paralelos a outros projetos musicais portugueses, pelo menos nos últimos tempos. Indie de gema, mas que beneficia igualmente de influências estrangeiras e de uma irreverência que não se costuma associar ao género. Existe um mundo sonoro particular dentro da banda, e daí a ideia de viagem que esta nos apresentou no concerto não chocar: é muito fácil ser transportado para um outro universo alternativo através da audição do álbum. Foram também capazes de cumprir o objetivo que qualquer músico deve ter quando toca ao vivo: provar que a forma ideal de ouvir a sua música é, efetivamente, em concerto. Não se pode dizer que esse resultado é surpreendente, tendo em conta a experiência deste quinteto, mas é sempre mais fácil falar do que executar, e é bastante difícil sequer identificar um único pormenor que não tenha corrido tão bem musicalmente. Foi uma performance de pura harmonia e qualidade técnica, e por si só é mais do que suficiente para valer a deslocação, o tempo, e o preço. Há ainda que destacar a qualidade da mixagem em palco: a nitidez de todos os elementos e a sua coesão sonora foram fatores que elevaram ainda mais a experiência, cortesia do trabalho do técnico de som Hugo Valverde.
O trabalho de luz e o espetáculo visual foram igualmente, em vácuo, praticamente perfeitos. A cenografia de Bruno José Silva, o design de luz de Ângela Bismarck e os elementos videográficos de Gonçalo Verdasca e Rui Major trabalharam em conjunto de forma a apresentar um espetáculo visual verdadeiramente belo e hipnotizante. É raro que num concerto a plateia esteja tão vidrada que até se esqueça de bater palmas, mas a verdade é que os primeiros aplausos que se ouviram não aconteceram até meio do concerto. A junção dos elementos visuais e auditivos permitiram um estado geral de transe, e nesse sentido o objetivo foi cumprido. Porém, num concerto de uma hora, em que pelo menos um quarto deste foi dedicado apenas ao espetáculo visual, surge uma questão: qual é o propósito dele na história que se pretendeu contar aqui?
É claro que os Memória de Peixe não tocaram na Culturgest para dar “apenas um concerto”. Mas é difícil entender em que é que o trabalho visual realmente adicionou à experiência, além da sua beleza. Quando em 15 a 20 minutos de um concerto de 1 hora se toma a decisão consciente de privar o público de ouvir a banda que os levou a comprar o seu bilhete e é entregue um espetáculo que, por mais qualidade que tenha, poderia igualmente ter sido apresentado separadamente do concerto em si e a sua integridade e objetivo artístico seria em pouco ou nada alterado, a sua validade é posta em causa. Evidentemente, a ligação entre os elementos existe: tentou-se construir um universo em que a música dos Memória de Peixe, alienígena e igualmente natural, se enquadrasse. Agora, para ver esse universo alternativo, não é necessário qualquer tipo de construção imagética. Esse sentimento está impregnado na experiência que é ouvir III, especialmente no formato de concerto. Por isso, é difícil justificar a necessidade desses 15 minutos, que podiam ter sido gastos a ouvir a banda durante mais tempo, mas que, ao invés disso, serviram para uma apresentação visual que, por mais impressionante que seja, é igualmente dispensável. Aliás, essa escolha, no limite, passa a mensagem de que a música da banda não chega para dar um espetáculo com “E” maiúsculo, o que é um desserviço à qualidade dos Memória de Peixe e ao seu esforço e trabalho.
Apesar de tudo, é difícil sair descontente de um concerto como este. Nos cerca de 45 minutos em que nos foi permitido ouvir a banda, assistimos a uma masterclass de técnica musical, e à melhor forma possível de experienciar III. Porém, o resto da hora em que a plateia despendeu do seu tempo para assistir ao concerto dos Memória de Peixe, experienciou uma “vibe”, que em nada enriqueceu ou elevou a proposta musical do novo álbum da banda. Se o objetivo do elemento visual de qualquer concerto é despoletar todo o potencial artístico de um projeto musical pelo meio do diálogo interdisciplinar, esta proposta falhou estrondosamente no que toca a cumprir esse objetivo. E quando é feita a decisão de propositadamente gastar 15 minutos de 1 hora para dizer algo com a imagem, isso é o mínimo que devemos exigir. Ao contrário do que se espera de quase todos os artistas musicais de todo o mundo, é provável que o concerto dos Memória de Peixe no Paredes de Coura no próximo verão valha ainda mais a pena do que este. Porque lá, ouvi-los-emos durante a hora completa que nos foi prometida.