[TEXTO] Ricardo Miguel Vieira [ENTREVISTA] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados
O espectáculo no Musicbox, no Cais do Sodré, a 1 de Setembro, que une dois pólos geracionais da música angolana, o rapper MCK e Bonga, foi sentidamente antecipado pelo escritor José Eduardo Agualusa:
“Bonga é mais do que um nome. Bonga é um marco no mapa da identidade e da geografia afectiva de quase todos os angolanos. As canções de Bonga acompanham a história de Angola ao longo dos últimos cinquenta anos, da luta pela independência ao desespero dos anos da guerra, e à desilusão pelo muito que ficou por alcançar. O rapper MCK, por outro lado, representa a voz nova de um país ainda à procura de si próprio. O encontro entre Bonga e MCK constitui um momento histórico dentro de um outro momento histórico. É o encontro de dois rios, unidos na formação de uma nova música angolana, de um tempo novo, de uma outra consciência. A esse mar onde estes rios desaguam podemos chamar Esperança.”
“Esperança“, palavra a negrito na língua portuguesa que tanto arde nos discursos do Brasil a Portugal, de Moçambique a Angola. É, ao mesmo tempo, um palavrão para os líderes políticos deste microcosmo lusófono, uma definição a rasurar do dicionário do povo. Como? Detendo 16 activistas angolanos enquanto amistosamente reunidos para debater ideias sobre democracia, sobre liberdade, sobre justiça.
Mas enquanto a palavra arder como sentimento entre a multidão, haverá sempre quem a ateie, mais e mais, através de outras palavras, que, juntas, são como caruma. MCK, rapper e filósofo angolano, é um desses mestres em fazer chegar a palavra “esperança” ao povo através das rimas, através de retratos discursivos. É o que se espera da sua conexão com Bonga no Musicbox.
Já lá vão quase quatro anos desde o Proibido Ouvir Isto, mas como é mais do que natural não tens estado parado desde aí: o que é que aconteceu na tua vida artística desde a edição desse álbum?
Artisticamente, esse álbum deu-me mais exposição do que os anteriores, se considerarmos o nível de vendas, impacto social e efeitos de continuidade. Em Luanda, a terceira edição encontra-se esgotada desde o ano passado, perfazendo um total aproximado de 18 mil exemplares vendidos. A nível político e social, estimulou acesos debates e despertou o interesse crítico para assuntos e temas até então discutidos em surdina – como as relações interraciais, a exclusão social, a longevidade do poder político, corrupção, religião, entre outros temas. O disco também regista efeitos de continuidade, pois tem sido uma ferramenta de suporte nas reivindicações e no activismo cívico nos mais diversos sectores da sociedade angolana.
Angola tem-se apresentado ao mundo como país de prosperidade e progresso, mas face a recentes acontecimentos percebe-se que muito está ainda por fazer. Os artistas têm especiais responsabilidades nesse processo?
Os artistas aproveitam a cultura para mostrar a quem tem responsabilidades públicas que as pessoas devem ser a prioridade absoluta em qualquer nação. E quando os recursos naturais terminam, há outras gerações que sofrem com isso, daí o sentido de responsabilidade da utilização racional dos recursos tendo em vista as gerações vindouras. Os artistas não estão preocupados com o El Dorado ilusório, mas sim com futuro do país.
Percebe-se pelo que acontece actualmente nos Estados Unidos, com todas as vozes que se têm levantado contra a violência policial, que o hip hop pode ser uma ferramenta de transformação social. O hip hop enquanto movimento também assumiu esse desafio em Angola?
Sem dúvida. O movimento hip hop é a melhor ferramenta para os jovens exercerem pressão política e social. Em algumas circunstâncias chega a ter as mesmas responsabilidades que a oposição política na fiscalização e denúncia de violações de direitos civis. O rap é o braço juvenil da luta pela liberdade de expressão, justiça e democracia.
O que podem fazer os fãs de MCK, os fãs de hip hop, as pessoas em geral, para contribuírem para a alteração do estado de coisas que em Angola conduziu Ikonoklasta à prisão?
Ikonoklasta e mais outros 14 angolanos… Devem exigir às autoridades angolanas que respeitem a Constituição e a lei, que respeitem a separação de poderes, que respeitem os diplomas das Nações Unidas a que aderiram. Que respeitem a vida humana e os direitos humanos e que libertem imediatamente os jovens activistas.
Um pouco de história: quem foram os teus mestres nesta arte de colar ideias e vontades de mudança a beats? Public Enemy? KRS-One? Valete?
Inicialmente fui buscar influências aos rappers americanos, principalmente os da West Coast. A seguir chegaram a Angola as primeiras coisas de rap em português provenientes do Brasil, como Gabriel O Pensador, Racionais MCs e outros. Valete é um artista extraordinário mas é ligeiramente mais novo que eu.
Vais pisar o palco do Musicbox em Lisboa ao lado de Bonga, que foi ele mesmo uma voz que lutou pela transformação de um país em discos como Angola 72 ou Angola 74. O que vão fazer juntos?
Será a concretização de um desejo nacional, estimular o encontro de gerações e a necessidades de diálogo entre mais velhos e mais novos em busca de trilhos para a construção de um país melhor.
Já trabalhaste com Valete no passado, será outro dos teus convidados no Musicbox?
Estamos a conspirar coisas mas deixo em aberto (risos).
Como é que se observa o hip hop português a partir de Luanda? Há afinidades, cumplicidades?
Acompanho com atenção o trabalho de vários artistas do cenário português, tenho estado a trabalhar com alguns e acho um movimento fantástico, movido por fortes motivações. Há toda uma cultura e um movimento, há amor e paixão puros sem grandes preocupações com as condicionantes do mercado, acho isso muito bom.
Como é que se vai chamar o teu próximo disco? Com tudo o que se tem passado, inspiração para letras não deve faltar…
Chamar-se-á Valores. Será um retrato fiel da dinâmica política, social e cultural da Angola de hoje, no que concerne aos valores gerais da nação.