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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/05/2022

A liberdade de uma tela em branco.

Maze x spock: “As nossas músicas não estão fechadas. É fixe deixar estas pontas soltas para coisas novas poderem surgir”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 10/05/2022

A Simbiose desenvolvida entre o MC portuense e o produtor da Amadora foi-se desenvolvendo lentamente entre 2019 e 2021, três anos de muitas vivências e experiências para ambos, culminando neste disco que, como ambos descrevem, não é convencional, pois não segue estruturas predefinidas ou fórmulas da indústria musical — é tudo resultado de um trabalho fluído e orgânico, materializando-se numa viagem de 20 faixas preenchidas com lições de vida, episódios bem reais e outras apelando à criatividade do rapper dos Dealema, mas sempre sob um valor bem vincado: a genuinidade.

O Rimas e Batidas esteve à conversa com Maze e spock sobre o seu primeiro disco colaborativo, revelando-nos vários detalhes da concepção do mesmo.



A simbiose entre vocês começou quando? Já vem de alguns anos atrás, não?

[Maze] Foi sendo construída aos poucos, não muito mais tempo que os três anos que o disco demorou a ser feito. Uns meses antes [do inicio de produção] é que começámos a comunicar, ele enviou-me uns beats e fomos trocando umas ideias, e só no momento em que ele me envia o beat que deu origem à faixa “Negro Luto” é que começámos a estabelecer uma relação mais próxima. Esse foi o ponto de partida para criarmos uma amizade e uma vontade de fazer mais música juntos e depois, sim, no primeiro ano de produção, que antecede esta pandemia [2019], fazemos o grosso do disco. Nos dois anos seguintes fomos trocando algumas ideias à distância e quando a pandemia permitiu gravámos o resto do disco, fomos limando as arestas numas faixas mais avançadas, algumas regravações também. Pode-se dizer que foi uma simbiose que foi sendo construída ao longo dos anos.

[spock] Foi mesmo como o Maze disse. Surge tudo no “Negro Luto” , mas obviamente que já o conhecia pelo seu passado enquanto MC e membro de Dealema e já nos tínhamos cruzado em algumas festas de hip hop também e por aí comecei a sentir que tinha uma energia parecida com a minha, uma pessoa reservada e pacata. Quando fiz o “Negro Luto” veio-me logo à cabeça que ficava ali bem o Maze! Mandei-lhe mensagem, ele pediu-me o beat e lembro-me das suas palavras mal o ouviu: “Tenho cenas para dizer aqui”. E assim foi, ele escreveu, passado umas semanas marcámos uma sessão de gravação juntos e esse foi logo um bom teste à nossa química e dinâmica enquanto duo, porque se ela não existir fica difícil haver uma continuidade natural no trabalho. Mas felizmente tudo isso existiu, um ambiente de trabalho mesmo brutal, uma energia muito boa. Foi um processo mesmo natural.

[Maze] Completamente, fomos fazendo música de forma mesmo orgânica e natural, íamos marcando sessões de estúdio, criando mais coisas e é engraçado falares dessas vezes que nos cruzámos em backstages, Hugo [nome real de spock], porque lembro-me de uma situação num festival, o NOS Alive se não me engano, em que estava a conversar com o João [nome do músico Buda XL], e ele disse-me “epá, já que estás por aqui, agora tens mesmo que passar pelos estúdios da Contentor Records”, e era algo que já estava prometido há algum tempo mas que nunca foi acontecendo, mas acabou por acontecer nesta situação, e ainda bem que assim foi.

Tocando no vosso processo de concepção musical, todas as dinâmicas de artistas são sempre um tema que acho muito interessante. Gostariam de destacar alguns episódios durante estes três anos?

[spock] Durante três anos acontece muita coisa, a parte bonita é essa. Este álbum é crescente, na primeira faixa temos poucas vivências e na última já nos conhecemos de uma maneira completamente diferente. Começámos por gravar num estúdio da CNTR Records em que de um mês para o outro tivemos de sair, encontrar outro local, isto a meio da gravação do disco. Durante as várias sessões de estúdios aconteceram sempre coisas engraçadas e divertidas, havia sempre risada.

[Maze] Sempre, aconteciam sempre coisas que nos deixavam num bom estado de espírito. Mas agora que falas dessa mudança do CNTR, regresso um pouco à primeira pergunta para também responder a esta. Fomo-nos conhecendo e a nossa relação foi crescendo ao longo desse tempo duma forma em que mal nos conhecíamos no início e depois dessa transição do CNTR e nesse processo todo os laços fortaleceram-se tanto que eu fui ao casamento do spock! Passou tempo, aconteceu vida, ele foi pai, aconteceram coisas na minha vida. Isso é muito satisfatório, mais do que fazer musica.

[spock] Lembro-me no início, nas primeiras sessões, o João [Buda XL] virar-se para mim e dizer, “porra meu, o Maze está lá dentro a comer pizza como se nada se passasse” [risos]. E é fixe desconstruíres tudo isso. Foi uma coisa que eu disse ao Maze e que tenho com o Buda que é: nós já fomos a tantos concertos de Dealema mesmo antes de conhecer o Maze que sentimos que eles são os Xutos e Pontapés da nossa geração! Por mais que conheças as músicas, são hinos da tua geração, e depois desconstruíres isso para entenderes que o Maze é o André, é mais um de nós e está ali contigo só vai lá com tempo. Com tempo e com pessoas naturais, genuínas, sem complicações. 

A título de curiosidade, a primeira faixa concebida foi a “Negro Luto”. E a última? 

[Maze] A última a ser gravada por mim foi uma regravação de uma faixa que não estava tão bem gravada, que foi a “Entre Amigos”.

[spock] Tal e qual, foi a única gravada em casa, ali no pico da pandemia, e estava com uma energia diferente das outras, foi por isso que a regravámos.

20 faixas é algo que me saltou logo à vista, é uma duração grande para um disco, especialmente em 2022. Por que razão optaram por isso? O disco Assim Como Vai produzido pelo spock e com rimas da Sitah Faya também é longo, noto aqui numa certa continuidade neste aspecto.

[Maze] Eu acho que gostamos ambos de discos à antiga, coesos, que contem uma história e essa é a nossa referência. Queremos que quem ouça sejam os fãs de rap como nós somos, e que absorvam o disco dessa forma, sabe sempre a pouco quando ouves um disco e tem 7 faixas. Acho que o único disco curto que me preenche da maneira certa é o Illmatic do Nas, que tem 10 músicas. Eu acho que o spock aí tem muita culpa, vai produzindo em série e percebendo o que funciona e onde, tenho ideia de que quando ele faz um beat sabe perfeitamente quem vai rimar, se é SXR, a Sitah Faya, se sou eu, isso está muito presente na cabeça dele. Com isto, ele foi-me enviando vários beats e eu fui encaixando temas em vários desses instrumentais e as músicas foram-se acumulando e chegámos ali a um ponto que até nos questionámos senão tínhamos dois discos, mas as músicas começaram a encadear-se de uma forma tão natural que percebemos que por agora temos um disco. Depois fazemos mais.

[spock] Se fôssemos comparar os discos que gostamos, há quase sempre um ponto em comum: são todos discos longos e que contam histórias. Tenho mesmo imenso prazer em ouvir discos coesos, com continuidade, deixá-lo tocar e seguir. E nós com este trabalho quisemos fazer isso, contar um bloco de histórias, e com o da Sitah também foi um pouco por aí, é assim que eu gosto e sei fazer música, é este o nosso caminho. 

Há uma linha que e coesa, os temas explorados são todos bastante íntimos e profundos, lições de vida, isso deixou-me colado, é uma viagem coesa.

[Maze] Mas sabes que é mesmo uma viagem, o álbum começa no [tema] “Túnel”, onde o som é o veículo para toda esta viagem, é o inicio para esta história, onde eu e o spock estamos no cockpit a comandá-la e convidamos toda a gente a juntar-se e a perceber a nossa visão, que os ambientes do spock contam e das histórias que as minhas rimas contam. O meu rap é muito autobiográfico, gosto de causar essa sensação de soco no estômago que te deixa um pouco sem perceber o que estás a sentir, mas estás a sentir alguma coisa. A história do outro está reflectida em ti e é isso que mais prazer me dá ao escrever, que o outro sinta e pense alguma coisa com o que eu estou a dizer.

[spock] O que acabaste de dizer, Carlos, é o que mais gostava de sentir ao ouvir discos, que aquela pessoa estava a ser honesta, sem filtros, é a parte mais bonita da arte que eu gosto. É chegar ali a uma zona que se expõe ao próximo sem medos, faz parte de ser artista, expor as tuas entranhas e contar as tuas histórias e expores-te aos outros. O ouvinte acaba por aprender muito mais do que com histórias inventadas. Quando tu notas que é mesmo honesto, é diferente, ’tás a ver? Lembro-me de inúmeras músicas que me fizeram crescer enquanto pessoa e artista por sentir isso, é super gratificante saber que está a chegar assim às pessoas. Para mim isso é o apogeu a nível artístico, saber que as pessoas estão a viver essa intimidade, que aquela música os tocou. Até houve uma pessoa que me disse que ouviu a faixa “Negro Luto”, mas, como viveu algo tão parecido àquilo que a faixa conta, ela não a vai conseguir ouvir mais por se sentir tão tocada pelo que está ali enquanto música. Significa que a única vez que ouviu aquilo viveu a faixa mesmo.

[Maze] A arte tem uma componente muito curativa e terapêutica, para quem a faz e a ouve, e que de repente vê-se reflectido na experiência que o artista está a partilhar. Aproveitam as palavras e ambientes que os artistas partilham para se resolver e combater os seus demónios, e isso interessa-me muito.

[spock] Apesar da minha componente ser instrumental, se há algo que eu quero que seja a imagem de marca das minhas produções é que elas reflictam sentimentos. Quero que quando alguém os oiça seja transportado para um certo canal das suas emoções, entendes? Sempre foi aquilo que eu gostei de ouvir em instrumentais, como quando ouvia o instrumental “Frio” do Sam The Kid, porque aquilo é mesmo deep, gostava de estar ali no fundo ao som daquilo. Igual com o “Lamentos”. São dois instrumentais que me fizeram crescer enquanto artista, aquilo conseguia-me contar uma história, meter-me num certo caminho, diziam-me algo mesmo.

[Maze] E é incrível porque depois todos os MCs que escrevem para um determinado beat, quando o instrumental induz um determinado sentimento, o desafio é transformares essa emoção em palavras, esse é o grande exercício. Como gostamos os dois de provocar e de perceber que estamos a mexer com as emoções, acho que os nossos estilos encaixam mesmo bem um com o outro. 

E a nível criativo, escreveste para os beats do spock ou o contrário? Pode ser um processo pouco linear para um álbum com 20 faixas.

[Maze] O processo não foi assim muito diferente entre as faixas. O spock foi-me enviando beats e, consoante ia fazendo essa descodificação do sentimento que esse instrumental me transmitia, eu ia-me dedicando a essa faixa, sentia que era o momento para essa faixa, a janela de oportunidade que eu tenho para dizer as palavras certas nos instrumentais. A rima vem sempre para o instrumental, funciona sempre assim, nunca há palavras já feitas que depois se moldam a determinadas produções, faço o exercício inverso, perceber o sentimento que o instrumental me transmite e aí sim escrevo as rimas.

[spock] E é aí que acho que começa o processo de conheceres a pessoa para lá do artista, porque a “Negro Luto” foi o início desta simbiose, e sentimos que haviam muitos pontos coincidentes que deram pernas para este projeto andar. Nas sessões de estúdio seguintes a criarmos essa faixa, passámos 30% do tempo a gravar e os outros 70% a conhecer-nos enquanto pessoas. E é a partir dessa partilha de experiências e conhecimentos que o produtor entra no mundo da outra pessoa, e parece que é um bocado fantasia mas não, estás mesmo focado naquilo e acabas por levar a música para aquele estado de espírito que esta coesão te transmite.

Relativamente ao spoken-word, Maze, depreendo que é algo que te sintas confortável a fazer. Gostarias de o fazer cada vez mais nos teus trabalhos talvez com features de outros artistas, como o Chullage, que tem criado bastantes faixas nesses registos?

[Maze] Sim, o Chullage é uma referência de spoken-word desde sempre, e é alguém com quem decididamente vou trabalhar no futuro nesse registo, até já falamos varias vezes sobre isso. Mas há mais pessoas dentro desse meio que são referências para mim e com quem gostaria de trabalhar também, não vou destacar ninguém em especifico porque se calhar vou ser um pouco injusto — ainda são algumas. Mas cada vez estou a mergulhar mais nesse universo, é uma coisa que já venho a fazer há algum tempo, ao vivo, em algumas sessões. Cada vez mais me dedico à palavra dita, não deixo de ser o rapper que sou, nem nunca me vou deixar de apresentar nesses moldes, mas de repente tenho um universo e uma forma diferente de explorar a palavra que eu gosto de fazer. A intenção é diferente, os espaços são diferentes para fazer as palavras chegarem ao outro. As datas que tenho marcadas neste momento são quase todas nesse sentido, espectáculos relacionados com a palavra, em que vou estar a fazer sessões de poesia, sessões de spoken-word e, no fundo, é credibilizar o rap enquanto poesia, porque necessita de haver essa afirmação ainda. Estamos numa segunda categoria, somos vistos de uma forma muito marginal, num meio que devia ser mais aberto e receber a palavra de todas as formas vindas de várias vertentes. E se calhar isto começa a acontecer, eu não sou o único, sou uma das figuras que está ai a tentar fazer isto acontecer, mas por exemplo, também temos o NERVE com as suas sessões da PURGA, está a ser um impulsionador incrível do spoken-word também. No caso do Simbiose, fluiu naturalmente, havia alguns beats que tinham ambiente de interlúdio, não pediam para ser faixas com rap, então surgiu de uma forma muito orgânica, comecei a escrever textos, começámos a ter várias faixas que iam nesse sentido, e sentimos que isto podia dar muito material para o álbum.

E como foi produzir para spoken-word, spock? Muito diferente de produzir para uma faixa de rap?

[spock] Na verdade nunca produzi para spoken-word, assim dizendo. Alguma parte dos meus instrumentais são lentos, de ambiente, sem marcação dos drums, os chamados drumless, e o Maze é que decidiu enveredar por um caminho que não fosse tanto de rap, mas mais essa vertente de spoken-word. Quando fomos gravar e ele me mostrou só a partir do primeiro é que comecei a ver como aquilo funcionava tão bem, porque o spoken-word em termos de ritmo e flow torna-se um malabarismo mais livre e bonito para quem produz. Tu fazes os tempos, apesar de por vezes não teres a marcação dos drums, mas eles estão lá, está tudo certinho, e quando ele debita a poesia nessa formato, as palavras acabam por cair em tempos diferentes, quase como se fosse jazz-

[Maze] É uma boa comparação, é exactamente isso, quase como se fosse jazz!

[spock] Por exemplo, quando vais gravar um vídeo, tens que fazer um lip sync e em spoken-word é muito difícil, cada vez que isto sai é jazz, não há dois takes iguais, até para live é bastante interessante. Cada vez que vais assistir estas faixas ao vivo elas vão soar-te diferentes, soa com a intenção do local, com o teu estado de espírito. Soa sempre diferente.

[Maze] Foi o que disseste, como há essa liberdade, quem escreveu não sabe propriamente quantos milissegundos de espaço existem entre palavras. Quando existe um metrónomo de rap, sabes onde as palavras vão cair, sabes que não podes sair dali, ou seja, é muito mais simples decorares uma letra, porque é uma lengalenga e a tua memória é quase muscular, é mais a tua língua que decora a letra que propriamente a tua cabeça. Num texto de spoken-word é completamente diferente, os tempos são muitos diferentes, é um exercício muito exigente e ainda estou nesse processo de decorar estas 20 músicas. É uma empreitada.

Nas faixas “Sem Arrependimento” e “Que Horas São”, utilizaram um poema do Mário Quintana. Assentar e utilizar isso deve ter sido curioso, a nível de tons e sonicamente falando. Gostei muito destas faixas, foi um combo interessante. Falem-me delas. 

[spock] Começando pela “Sem Arrependimento”, o instrumental dizia-me aquilo… as voltas que a vida dá, como as coisas começam, como acabam. E por vezes quando queres transmitir isso a um MC para ele se expor naquele campo, há esta forma, que é como fazer uma abertura do instrumental, que dá introdução ao tema e o MC pode escrever sobre aquilo e correu super bem. A faixa ficou mesmo incrível, diz mesmo que as coisas são como são, nem é bom nem é mau, às vezes nos filmes as coisas acabam sempre bem e nesta faixa mostra que acabam apenas de forma normal.

[Maze] Deixa-me acrescentar que para um MC é óptimo ter a “papinha feita”, porque quando já tens o tema encaminhado, já tens uma direcção, é muito mais simples tu abordares e dares a tua visão daquele tema. O que mais atrasa no processo criativo é descodificar exactamente o sentimento do instrumental em ti, perceber o que tens de dizer e como tens de o dizer. Então, quando isso já vem da parte do produtor, é muito mais directo, atacas logo o tema dessa forma, fica tudo mais claro. 

E estiveram sempre em sintonia nesse processo de descodificação, nunca existiram faixas onde o instrumental vos transmitia sentimentos diferentes?  

[Maze] Existe uma sintonia muito grande entre nós, estamos mesmo alinhados a criar. O spock enviou-me muito mais que estes 20 beats, está tudo guardado numa pasta e são todos válidos para um futuro trabalho entre nós também. Nunca há uma discórdia, há sempre um tempo para fazer as coisas, acho que é isso.

[spock] Estes 20 temas chegaram a bom porto por eles próprios, foi uma maneira de trabalhar super fácil, fluída, sem grandes pressões… também três anos, não é [risos]. O processo foi sempre de ir para estúdio e era lá que o Maze fazia a letra, a lógica era estarmos lá, íamos trabalhando, eu ia mostrando beats pela primeira vez.

[Maze] E com esse espaço de intervenção que tens sempre, do género, “essa rima, talvez tenta dá-la de outra maneira, o flow aqui ainda não está no ponto, retira essa palavra” e, para um MC que está embrenhado na sua obra, não existe essa distância, logo é importante existir esse espaço para receber essa visão no momento de gravação, para poder polir melhor algumas ideias. 

[spock] Em termos de feeling das letras nos instrumentais, se eu achava que o instrumental já estava deep, quando ele me mostrava as letras e ainda ia mais profundo… foi sempre uma surpresa muito positiva.

[Maze] A faixa “Que Horas São?” é um desses exemplos. É uma música longa com texto também longo, não é só um skit, que eu fui construindo com tempo e pensando no que eu queria dizer, qual era a urgência das palavras, respondendo a essa pergunta da música, perceber que era tempo do quê, há urgência em fazer o quê? E essa foi uma das primeiras faixas e deu o mote ao resto das canções de spoken-word.



spock, gostava que me falasses um pouco mais da tua parte de produção, se tiveste algumas fontes de inspiração que te foram surgindo. É um disco bastante coeso a nível de ambientes e até de algumas partes sónicas, com alguns elementos instrumentais que até foram sendo reciclados e reutilizados durante o disco.

[spock] Quando estás a produzir, uma parte boa é, quando te consegues embrenhar no projecto, saberes que estás a produzir para aquele disco e lembrares-te de várias sonoridades que colocaste. A “Que Horas São?” e a “Negro Luto” acabam por ter composições semelhantes, só kick e clap, e depois vais crescendo. As inspirações também é um ponto interessante. Como conversamos bastante durante estes processos, trocámos imensas músicas e acabámos por debater vários álbuns um com o outro porque o Maze também é uma pessoa com um espectro musical bastante amplo. Acabámos por estar num mundo musical muito próprio.

[Maze] Foi incrível perceber que estamos a fazer coisas muito parecidas com o que se faz no rap underground britânico, tem muito essa cena, estamos numa sintonia muito própria. Estamos mais alinhados com isso do que se calhar com rap americano.

[spock] E foi mesmo na base da descoberta, de perceber que eles utilizam os instrumentais muito mais como uma cama, a dar lugar à palavra, a não brilhar mais que o MC. Realmente viu-se que era uma coisa que sem querer estávamos a seguir essa linha, fomos descobrindo vários artistas a seguir por aí também. Na pós-produção deste disco contei com o Buda XL, um irmão nosso, que abrilhantou vários instrumentais com guitarras, com baixos, é um daqueles meus amigos com os quais ia aos concertos de Dealema quando era mais novo, como referenciei [risos].

Tenho que ouvir alguns desses nomes mais underground!

[Maze] Vais gostar, segue esta nossa linha musical. Por lá há espaço para estes nichos, que vão sobrevivendo. Em Portugal também existem, como esta nossa linha, eu e o spock estamos aí numa linha underground e independente, é essa a nossa batalha, conseguirmos estar por nós, não precisarmos de ninguém, de dar justificações de nada a ninguém, não estar na máquina, não ter que cumprir certas estruturas quase predefinidas para estar na grande montra. A nós não nos interessa isso.

[spock] É um luxo poder não estar nesse caminho. É um luxo poderes conceber a tua arte sem pensares em outras intenções, marketing muito desenvolvido para tocar em certos mercados. Mas pronto, nem todos os artistas se podem dar a esse luxo. Podem pretender outras coisas. 

Na “Construir e Libertar” resumes isto dizendo que não segues tendências, és a referência.

[Maze] Sim, chega ali um momento da tua carreira, com uma certa maturidade artística, que deixas de procurar a aprovação do outro, nessa fase isso passa para um segundo plano. Se estás a fazer a tua música para o outro, não estás a fazer da forma certa, não estás a ser genuíno, estás a fabricar alguma coisa sempre a pensar no que o outro vai achar, mas as pessoas acabam por se relacionar muito mais com o que é verdadeiro quando ressoa nelas. Artisticamente é só isso que me interessa, não tenho interesse em coisas plásticas.

[spock] Hoje em dia existem N fórmulas que batem, que são o padrão das rádios, das redes sociais. São inúmeras. E tu quando te podes dar ao luxo de fazer música apenas e só enquanto uma tela em branco, é aí que grandes obras podem nascer, sem estarem limitadas, sem balizas. Se a música tiver que ter 6 minutos tem, se tiver que ter 30 segundos tem. 

[Maze] Foi esse o nosso foco e acontece neste disco! Se calhar temos a “Despertar para Sempre”, que é uma música longa, não tem um formato muito regular, e depois tens a “Celebra A Tua Essência”, que é um refrão repetido várias vezes e depois sai! É tão bom decidires que podes fazer apenas o que gostas…

[spock] Tive várias pessoas a dizer-me sobre a “Despertar para Sempre” que “o Maze tem X barras mas depois a Sitah rima mais do que ele, mas eu não consegui tirar nada da música…”. Aquilo nasceu assim, ela não conseguiu parar porque tinha tudo aquilo para escrever sobre aquele tema e o Maze parou ali porque achava que era a vez dela entrar.

[Maze] E isso é tão bonito! Se tivéssemos egos diferentes, o artista principal reagiria: “Não, esta música é minha, o convidado não pode ter mais espaço para brilhar do que eu”. E isso não é o que interessa aqui. Aqui o que interessa é o melhor para a música.

Outra faixa completamente liberta de estruturas ou normas é a “Missiva”, onde o Maze está a rimar e depois há ali um fade out mas dá a sensação que o Maze continua a rimar, quase uma música que não termina.

[Maze] É um conceito que eu queria desenvolver há algum tempo, lembro-me até de uma viagem que fiz com o Sam [The Kid] e estávamos a falar sobre rimas e eu lembro-me de lhe ter dito que já haviam músicas assim, mas eu nunca o fiz…

… a “Hereditário” dele entra nestes moldes.

[Maze] Exacto! É um conceito que me interessa, de repente a rima desaparece, mas fica ali implícito que aquela rima pode nunca terminar, então decidimos explorar este conceito nesta faixa. Era o contexto perfeito porque são rimas soltas, não há um tema específico aí, é um registo de um momento e estou a falar sobre vários temas.

[spock] Aquela música teve total liberdade disso acontecer, aquilo na vida simboliza que o MC está ali a rimar e a certo momento ele decide seguir, e seguiu, mas pode voltar a qualquer momento na mesma rima.

[Maze] Isso interessa-nos bastante, as nossas músicas não estão fechadas. Talvez no próximo disco que façamos haja muitas coisas que vão renascer deste a partir do Simbiose. É fixe deixar estas pontas soltas para coisas novas poderem surgir.

A nível de produção, na faixa “Chama a Coruja” há um sample muito bonito no fim. É música portuguesa/brasileira, spock, não querendo que dês sample snitching….

[spock] [risos] É brasileiro sim, mas pronto…. É isso [risos].

[Maze] Ainda bem que falas nessa faixa, são dois instrumentais diferentes que agora estão juntos. O skit final dessa música deu o tema e o tópico para a faixa principal, que já tem esse ambiente e casou muito bem. O meu refrão é baseado nesse interlúdio quando eles ainda estavam separados.

[spock] Não sei se o Buda [XL] estava lá durante a gravação dessa faixa, mas o conceito dessa faixa é curioso: viste uma coruja a pousar e estavas a escrever e registaste aquilo ali, só demonstra o quão reais e genuínas as coisas são. Realmente aquela coruja esteve lá no momento em que aquela letra estava a ser escrita e ficou registado.

[Maze] Há certas coisas que aparecem nas minhas letras e as pessoas ficam na dúvida se são minha fantasia, se são coisas reais ou a minha criatividade, e eu gosto de deixar no mistério, mas há coisas que podem parecer surreais, mas aconteceram mesmo.

Ainda no universo dos pássaros, também gostei bastante da faixa “Pássaro Livre”.

[Maze] Curiosamente é das faixas que temos recebido mais feedback, acho que as pessoas se relacionam com o que disse ali. Gosto de seguir este meu caminho do autoconhecimento, da autoquestão e de me ir conhecendo. Essa música fala muito da maturidade emocional, do que já procurei numa relação, do que procuro, da normalidade da vida, da efemeridade, nada dura para sempre e está tudo bem com isso.

[spock] Por acaso, os feedbacks que tenho recebido dessa faixa é mesmo isso, já me chegaram a dizer que grande parte da música feita hoje em dia é pintada de rosa, as coisas correm sempre bem, o artista sai sempre por cima, e aqui é te mostrado que as coisas são como são, o artista mostra que as coisas não são nem tanto para cima nem tanto para baixo. É muito importante saber que as coisas podem não correr tão bem mas que está tudo bem, amanhã é um novo dia. Mais do que música para dançar, é música com uma função quase psicológica, não precisas de estar sempre em altas, está tudo bem em teres tido só um dia normal.

[Maze] Sinto-me cada vez mais confortável em expor-me como sou e como me sinto, demonstrar-me vulnerável, sem problemas. Gosto de o fazer porque estou a mostrar a uma geração que tem que ganhar sempre, que tem que sair sempre por cima, que têm de ser sempre os melhores e não podem ser fracos senão são engolidos pelo mundo, que podes seguir essa tua verdade, podes-te posicionar de outra maneira. E há coisas muito boas vindas daí.

Até escreves sobre os adolescentes e a velha mania da comparação.

[Maze] Isso mesmo, parece que estás sempre numa constante competição, é um problema gravíssimo da nossa sociedade, e que queres sempre chegar a um pódio e ser o melhor e tu notas nisso numa nova geração de rap. Há sempre esse drive, de querer ser melhor que todos, estar no pódio – eu sei que isso está inerente ao hip-hop – mas quando chega a um ponto que é doentio, já não faz bem, não é saudável…

… especialmente em ambientes por vezes mais pequenos, em vez de se entreajudarem uns aos outros dedicam-se a a estarem numa competição pouco saudável. 

[spock] Os rappers jovens só transmitem o que é a juventude a um nível global, essa competição está em tudo o que é redes sociais, tens que ser o que tens mais gostos, mais seguidores, o mais popular. Hoje em dia, com a montra que são as redes sociais, eles estão-se constantemente a comparar, antigamente isso existia na escola também, mas acabavam as aulas e a malta meio desligava, e agora estão quase sempre ligados. Eu sinto com a música que faço que isto é uma missão, temos ambos filhos e ambicionamos que podem ir mais devagar, não precisam de ir a correr. Se eles trilharem um caminho próprio, que é só deles, não há uma competição. Só tu é que fazes o teu caminho e a partir daí a competição é diferente, só tens que ser tu próprio.

[Maze] Tocaste num ponto fundamental: a escola. Primeiro, a educação começa em casa, mas quando as crianças chegam à escola são completamente formatadas para estarem nesse registo de comparação e competição com o outro, é despejada uma matéria que eles têm de decorar sem assimilar propriamente e depois é feito um teste, quem vai ter as melhores notas, as melhores médias para ir para as melhores universidades e é assim. É um problema grande da nossa sociedade.

[spock] É um problema reconhecido, mas não está perto de mudar, sabe-se que cada vez mais que a depressão na adolescência é um tema comum, por tudo isto, e as coisas não mudam. 

[Maze] As crianças não precisam dessa pressão, só precisam de ser livres e de serem educadas para descobrirem essa identidade, que têm os seus skills e os podem explorar tranquilamente, irem-se descobrindo e perceber quem realmente são de forma muito natural e bonita. Não interessa à sociedade resolver isto, não interessa libertar o indivíduo, a sociedade está feita para a produção, que todos sejamos números e que consigamos e produzamos números. Então não se liberta o indivíduo a pensar por ele próprio e a fazer coisas que não ajudam essa produtividade, porque abrandam os ritmos e põe-nos no nosso próprio ritmo, sem ser o ritmo da máquina, que nos põe a correr na máquina como pequenos ratinhos.


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