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Fotografia: bytigre & o__parente
Publicado a: 14/12/2021

O trabalho foi editado em Setembro passado pela Monster Jinx.

Maze & AZAR AZAR: “Estas músicas são retratos de uma vida menos digna que não é vivida mas sobrevivida por muita gente”

Fotografia: bytigre & o__parente
Publicado a: 14/12/2021

É um dos mais recentes (grandes) capítulos de um JazzNãoJazzPT que não nos pára de surpreender. A união entre a mente criativa do imparável produtor e músico AZAR AZAR com as rimas certeiras de Maze já vinha das noites do Pérola Negra, mas agora expande-se aos registos discográficos com Sub-Urbe Vol. 1, o primeiro volume de uma trilogia que vai muito para lá do simples cruzamento de jazz e hip hop. 

Fomos, por isso, falar com os dois músicos na ânsia de perceber melhor que narrativa é esta contada por Maze, que visões sociológicas traz em si e que desafios estiveram presentes no seu acto, mas também toda a carga simbólica presente nesta edição.

O futuro está a ser preparado e, olhando para a admiração recíproca entre os dois pilares do projecto, não parece ter fim para breve. Vamos lá conhecer melhor os subúrbios. 



Eu gostava de abrir a entrevista, falando na escolha do formato. Vocês preferem ver o Sub-Urbe Vol.1 como um disco por si só ou mais como um EP?

[AZAR AZAR] Para a GDA é um disco.

[Maze] Com as versões instrumentais acaba por ganhar mais peso, mais formato álbum, mas por acaso isto acaba por ser uma questão interessante porque o programa mode da GDA só aceita álbuns, como se um disco de longa-duração valesse mais do que outro que tem menos. Hoje em dia isso está completamente desatualizado. Numa era em que se vive de singles, não é propriamente o tempo, ou o número de faixas, que determina o valor que uma obra tem. 

[AZAR AZAR] E se nós pensarmos bem, quando nos referimos a um disco nunca pensamos no formato. Nunca dizemos, “comprei agora um EP ou um LP ou um single”. É sempre, “comprei agora um disco”. Perdeu-se um pouco isto com o digital, mas antigamente quando compravas um sete polegadas tinhas um disco. 

Isso de limitar os apoios conforme o formato não faz grande sentido, realmente, até porque teoricamente quem mais precisa desses apoios são os novos projetos que, por tendência, tendem a gravar primeiro EPs. 

[Maze] Exactamente! Esse é um ponto muito relevante. Eles precisam destes apoios. E nem falamos de uma coisa muito extraordinária, porque esta questão dos direitos dos artistas, para o bolo de edições anuais, acaba por ser irrisório na divisão total. Mas é sempre um apoio. 

Esta questão de se o Sub-Urbe é um EP ou um álbum surge por causa da vossa escolha de dividir este projeto em três volumes. Porque é que decidiram fazer esta divisão, e não a reunião de todos os temas numa só edição, mais compacta, mais completa, mais, vá lá, clássica? 

[Maze] Acho que isso acabou por ter várias explicações. A primeira delas é que, quando nos propusemos a fazer isto, tínhamos um tempo de estúdio limitado, e isso acabou por ditar o número de músicas que o Sérgio [AZAR AZAR] pôde compor. Isso criou logo um limite de temas. Depois, quando comecei a escrever o storytelling, percebi que a história abria espaço para uma continuidade, e isso acabou por ser a principal razão para decidirmos fazer uma trilogia. Achámos que havia espaço para a história continuar. 

Isto se calhar seria uma pergunta mais para a banda na sua totalidade, mas, para a construção dos temas, fizeste muito o exercício de ouvir Dealema? De perceber como podes adaptar o instrumental à escrita do Maze?

[AZAR AZAR] Tu disseste que se calhar era uma coisa mais para a banda, mas até é mais para mim porque quando produzo sou um bocado control freak. Eu não faço beats como geralmente os beatmakers fazem. Eu construo a canção toda, desde a intro ao outro, a bridge, os kicks, eu faço tudo. Quando mandei os beats ao Maze, eles já tinham todos os arranjos, já tinham tudo no sítio. Obviamente, neste caso o Ricardo Danin vai fazer uma bateria muito melhor do que a que fiz, assim como o Bruno vai fazer um baixo melhor. Mas a cena é que se eles fizeram o que está ali, o que mandei, eu já fico feliz, porque a verdade é que as coisas já funcionavam daquela maneira. 

[Maze] O Sérgio já tinha uma visão muito clara de como queria que a música soasse.  Aliás, a coisa já estava de tal forma tão apurada que às vezes percebíamos que a mistura tinha de voltar ao original, porque o sample tinha de estar em determinado sítio, com os instrumentos a fundirem-se nele. 

[AZAR AZAR] O André [Maze] até acabou por ter um papel muito importante nisso, porque colocou sempre muita atenção nos samples e na forma como eles tinham de transparecer nos instrumentais. Se calhar porque, ao escrever, sentiu que a coisa funcionava daquela forma. 

Mas voltando à questão, eu toquei com Dealema, conheço o trabalho do Maze, mas a proposta aqui até era fazer as coisas de uma forma um bocadinho diferente. Algo mais próximo do que fazíamos juntos nas noites do Pérola Negra. Algo mais orgânico, com banda, até porque sempre senti que o André ao vivo é completamente diferente, é “monstruoso”, ficas mesmo surpreso. O André já é rapper há tantos anos, já gravou tantos discos, acho que era fixe fazermos as coisas de uma forma um bocadinho diferente.

[Maze] Isso é uma das coisas que aprendi nestas experiências de tocar ao vivo com uma banda. Eu apercebi-me muito facilmente que a minha interpretação é completamente diferente se estiver acompanhado por uma máquina ou se estiver neste ambiente mais orgânico de banda. Acabo por me estimular muito mais nesse desafio, nessa interação, nesse estímulo do outro. Acaba por puxar por mim de uma outra forma. 

Vocês não foram para estúdio já com as músicas pré-ensaiadas? Não chegaram a fazer ensaios antes?

[AZAR AZAR] Não, não fizemos ensaios nenhuns. As pessoas quando ouvem o disco vão ter as mesmas sensações que nós tivemos nas gravações, ou seja, o Maze já conhecia os beats, mas nunca os tinha ouvido a ser tocados pela banda. Da mesma maneira que eu nunca ouvi o Ricardo Danin a tocar esses beats na bateria, como nunca ouvi o André a rappar as letras, apesar de as conhecer. Este é um álbum orgânico e acho que isso se sente no resultado. Ainda agora, quando escuto os temas, lembro-me de coisas super engraçadas, como saber que, em determinado take, o Ricardo não acentua determinada palavra, mas no take seguinte já o fez. E isso acontece porque era a primeira vez que ele ouvia a voz. Há determinados breaks que acontecem e que depois foram atacados de certa maneira, porque as coisas não foram ensaiadas. Foi tudo uma coisa do momento. Por muito que a estivesse a dirigir, foi tudo um bocado à “cabeçada”.

[Maze] Eu estava a ver-vos na outra sala e sentia-vos pelos headphones, e para mim isso também foi uma experiência incrível porque fez-me perceber que desta espontaneidade nascem coisas completamente diferentes. Hoje ouço o disco e há flows que faria de forma diferente, mas naquela altura saiu assim, e foi assim porque naquele determinado momento estávamos todos naquele ponto, a interagir, com tempos e ritmos diferentes, mas a partilhar o mesmo espaço. 

[AZAR AZAR] Ya. O Maze, ao imprimir determinado flow, leva a banda atrás, e isso faz-nos criar um determinado beat, que também vai fazer com que o Maze reaja. Eu lembro-me de um tema em que estávamos a tocar ligeiramente mais lento que o beat que tinha produzido e o Maze até disse, “ok, isto está diferente, ajusto-me” e o resultado ficou altamente, porque ele foi para um registo diferente do que era usual. 

[Maze] Essa magia só surge nesse espaço de criação mais espontânea.

O AZAR AZAR falou das noites no Pérola Negra como uma influência para a forma deste álbum. Acham que este Sub-Urbe Vol.1 existiria, se essas noites não fossem interrompidas pelo Covid? Foi como uma necessidade de continuar?

[Maze] Eu acho que, automaticamente, essas festas alavancaram tudo isto porque começámos a perceber que nos dava imenso prazer ter estas dinâmicas em palco. Acabámos, também por ser um pouco empurrados pelo Jonathan, que estava atrás da programação do Pérola. Ele sugeriu-nos transformar aqueles concertos em disco porque achava que poderia funcionar, que fazia sentido. Acho que essas noites acabaram por ser fundamentais. 

[AZAR AZAR] Nós até já tínhamos tido uma experiência parecida há alguns anos, no Armazém do Chá, mas a banda era completamente diferente e envolveu outros rappers. Era uma ideia onde tocávamos mais clássicos do hip hop. Eu recordo-me de ter ensaiado com todos, menos com o André, só o conseguimos fazer já no soundcheck e já nessa altura eu pensei, “um disco com ele é que era”, mas a ideia ficou meia perdida. A banda em si também foi importante para isso, porque tem um som característico.

Falando do storytelling do álbum: de onde veio esta ideia de tocar nas questões da “sub-urbe” citadina?

[Maze] Os ambientes dos instrumentais levaram-me um pouco nesse sentido. Quando comecei a escrever, a primeira história acabou por desenrolar um guião que parte da história dessa mãe e desse filho — que tem o papel principal — e que retrata um pouco essa luta constante que se vive na cidade, em que os pais trabalham o dia todo para sobreviver e acabam por nem ver os filhos. Estes acabam por não viver nos melhores ambientes, acabam por ser estimulados para uma vida menos lícita, e para as ilusões que a sociedade vai impingindo às pessoas. Estas músicas são retratos de uma vida menos digna que não é vivida mas sobrevivida por muita gente. 

Sentes que há diferenças nestes pólos suburbanos de quando começaste a escrever sobre esses problemas para agora? 

[Maze] Eu acho que não mudou muito, para ser sincero. Da geração de quando era miúdo para agora, que sou pai, noto os mesmos problemas. Há crianças que continuam a viver na mesma situação, que se deparam com os mesmos problemas. Os tempos mudaram, mas o que não mudou, e que já está calcificado há séculos, é a educação, e é preciso haver uma profunda alteração na educação para haver uma profunda transformação social. Só a partir daí é que começamos a saber lidar com isto das segregações e com este tipo de problemas que existem sobretudo nas cidades.

Mas dirias que há uma certa personificação da tua pessoa nestas músicas?

[Maze] Eu não consigo não o fazer…. É um bocado complicado para mim dissociar-me desse lado autobiográfico, mas neste projeto tentei mesmo construir algo que fosse mais distante do que eu sou. 

Pensaste em virar o bico ao prego ao direcionares agora uma maior atenção ao lado dos pais destas crianças nos próximos volumes?

[Maze] Não queria adiantar muito, mas o próximo volume é uma prequela. Vai estar, por isso, mais focado na história antes deste jovem nascer. 

Há uma linha que me chamou muito à atenção e que, se calhar, retrata todos estes problemas, que é a “Não te disseram que és um poema”.

[Maze] Eu não posso pedir muito crédito por essa frase, porque é uma frase dita muitas vezes pelo professor Agostinho da Silva. Tratar o homem como escreve, diz e pensa. Eu gosto dessa metáfora, dos seres humanos como poemas, em que vamos escrevendo a nossa vida, cada um na sua forma. Achei que era um bom sítio para eu lançar essa semente, de maneira a pôr as pessoas a pensar dessa forma também. 

Duas coisas que achei interessantes, e que comunicam muito bem o espírito deste trabalho, são os títulos das músicas e sobretudo a capa.

[Maze] É verdade isso. O Pedro Podre fez um trabalho incrível. Nós já adorávamos o trabalho dele e quando a Monster Jinx colocou o nome dele em cima da mesa dissemos logo que sim. Ele interpretou mesmo muito bem as músicas da forma como queríamos que fossem interpretadas. Acho que retrata mesmo bem o que são as músicas. As capas vão ter uma continuidade, por isso quem comprar este vinil vai querer também ter o segundo e o terceiro volume. Em relação aos títulos, tudo começou na primeira música que criei, em que fiz referência a uma pedra preciosa, no caso a esmeralda, e na segunda acabou por haver uma referência ao quartzo e senti que havia ali um padrão e um sentido narrativo que decidi continuar a seguir nas outras músicas. E acabou por ficar claro o sentido dos títulos.

Já falamos da capa e dos títulos, mas lembrei-me agora: como é que foi trabalhar com o Random Freaks?

[Maze] É mais um génio. Também já seguíamos o trabalho dele e percebemos que as coisas que estava a fazer encaixavam bem no ambiente do disco. Abordámos o Marco, e ele começou logo a trabalhar as ideias, a desenhar uma direcção e a fazer maquetes. Percebemos logo que era aquilo que queríamos, que pintava e complementava toda a narrativa. Foi excelente trabalhar com ele, é muito talentoso e temos a certeza que vão aparecer muitas coisas dele no futuro. E assim temos uma boa equipa montada para os próximos volumes, desde o vídeo ao design, a editora — porque a Monster Jinx também soube ler o projeto –, os instrumentistas. 

E os fãs de Dealema, como é que estão a reagir a este álbum? 

[Maze] Eu vou tendo algumas interacções na minha página e nas redes sociais. Tenho tido algum feedback interessante, mas acho que este disco ainda está um pouco na sombra. Ainda estão a sair entrevistas e ainda não tocámos. Acho que as pessoas vão começar a descobrir o disco nos próximos meses, e acho que vai chegar a um número de pessoas mais pequeno que os próximos. Penso que vai ser um processo evolutivo e talvez no terceiro volume consigamos chegar ao nível de pessoas que queremos chegar. Também já vamos conseguir montar o concerto que realmente queremos que, mais do que música, conte uma história, quase uma peça. Os fãs de Dealema, se calhar, estão habituados a uma sonoridade diferente, mas acho que vão gostar. Apesar, se calhar, de haver um generation gap, que pode não facilitar. 

Tu disseste isso do generation gap, mas a mistura do jazz com o hip hop está super em voga hoje em dia, isso até pode ser chamativo. Por outro lado, mesmo na produção, eu senti vários toques de Dealema. Apesar de distinto, eu acho que há certas coisas que poderiam perfeitamente funcionar num trabalho de Dealema. 

[Maze] Sim, podiam. Quando eu falei de ser algo diferente, referia-me mais à questão da orgânica, apesar de ter o sample. Dealema, normalmente, é algo mais maquinal, tem um beat mais quadrado. A cena incrível disto da mistura com o jazz é que a nossa geração cresceu a ouvir jazz e rap, mas a geração do Ricardo se calhar só ouviu hip hop, a ouvir beats do J Dilla, e agora está a reproduzi-los apesar da sua formação jazz. Está-se, se calhar, a fechar o ciclo onde tens os novos músicos que ouviram jazz através das músicas que foram sampladas.

[AZAR AZAR] Sim, por acaso ouvi uma entrevista ao Robert Glasper que dizia isso. Ele estudou jazz, mas quando era miúdo o que ouvia era hip hop. E o que ele dizia é que hoje em dia é a malta do jazz a se influenciar no hip hop, na mesma malta que reciclou o jazz, o que faz a malta nova do jazz não ouvir o antigo, é como se houvesse uma inversão, e isso é fixe. 

Pegando na questão dos instrumentais, vocês chegaram a dizer na apresentação do Sub-Urbe que era interessante ter os instrumentais até para permitir que outros fizessem rimas sobre eles. Já pensaram na hipótese de lançarem uma parte extra onde poderiam estar presentes rimas de pessoas que estão a viver agora este lado que tentaram ilustrar no disco.

[Maze] Eu acho muito interessante essa tua sugestão e isso podia ganhar uma dimensão tal, que nem eu nem o Sérgio temos tempo para isso.

[AZAR AZAR] Até porque já me mandaram — malta que me disse que ouviu o André — e depois repararam que vinham os instrumentais e não resistiram. Sentiram-se inspirados pelo André e viram ali uma tela para eles, e acabaram por gravar vídeos e isso. Eu adorei, achei mesmo bonito terem-me enviado, até porque este é um álbum de partilha. Perceberes que há pessoas que sentem isso e que também querem partilhar. É incrível! Se calhar mais para a frente até soltamos um sample pack e uns acapellas. Mas eu acho que isso tem de acabar por partir das pessoas. 

[Maze] Ya, isso é espectacular! Isto tem de partir das pessoas, mas, ao mesmo tempo, estes exercícios que podem ser feitos nesses ambientes suburbanos,… tens iniciativas de associações, de pessoas que estão a fazer com que esses miúdos ocupem o tempo da melhor forma. Quando tiveres as autarquias a apostar numa educação diferente, com uma aposta numa educação não formal de crianças, então podem começar a estimular e a promover estes jovens e talvez isto até possa ser um projecto desses, porque o que dizes faz todo sentido. Ter essa visão de outras pessoas, de uma outra geração, que estão agora a ter essas vivências e a partilhar isso nestes beats. É quase um projeto social, quem sabe. 

Concertos? Podemos contar para breve com alguns?

[AZAR AZAR] É algo que estamos a ponderar. Gostávamos de apresentar o disco, mas a logística é complicada. O Maze está em Lisboa, eu estou aqui no Porto. O Maze tem os Dealema, eu dou aulas e toco com outras cenas. O Bruno toca com o Abrunhosa, o Ricardo com os Expensive Soul. E para tocarmos ao vivo precisamos de conseguir ensaiar, não pode ser igual ao que aconteceu em estúdio. Estamos a tentar que a coisa seja possível, mas também viável. É preciso ter blocos para tocar, mas também para ensaiar, e queremos também incluir já temas do segundo volume, para não serem apenas cinco temas. 


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