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Fotografia: Felipe Vieira
Publicado a: 03/11/2020

Uma trapstar brasileira que quer pregar sem paternalismos.

Matuê: “Vejo o tempo como uma coisa não linear na minha jornada”

Fotografia: Felipe Vieira
Publicado a: 03/11/2020

Apenas dois meses após o lançamento de Máquina do Tempo, o seu álbum de estreia, Matuê quase dispensa ser apresentado. Ele teve a melhor semana de abertura na história do Spotify no Brasil, batendo o recorde que pertencia a Anitta: o disco saiu no dia 10 de Setembro e capturou todas as 7 faixas entre as 15 mais tocadas no serviço de streaming, servindo de atestado de popularidade para um artista que ultrapassou as barreiras das próprias caixas em que o quiseram fechar. 

Matuê é Matheus Brasileiro Aguiar, rapper do Ceará, 27 anos. A explosão na carreira é recente, uma vez que só em 2017 teve mais visibilidade com o singleAnos Luz“. Antes da edição do seu primeiro longa-duração, Tuê apresentou 18 singles, um deles é “Kenny G“, que neste momento totaliza uns impressionantes 139 milhões de visualizações no YouTube.



[É isso que a arte tem de fazer: gerar debates]

O trap feito de forma mais acessível é alvo de críticas de pessoas que dizem compreender o estilo nas redes sociais. A frase “Matuê não é trap” tornou-se um slogan, repetido na Internet por aqueles que não gostam do seu estilo. O próprio artista brinca com esta “acusação” de que não faz trap. Em “A Morte do Autotune” (2018) citou dramaticamente o efeito de voz comum no trap. No sucesso “Kenny G” (2019) ele imitou o desprezo dos fãs de rap que dizem “Eu não gosto de Matuê, não”. E para ele, independentemente do feedback, ver os fãs a defender e a multidão que não gosta a bater de frente é o ápice de toda a obra porque esse é o papel da arte. Causar debate, discussão, interacção e interpretação. 

Muitas destas discussões ocorreram tentando entender a parte conceptual do álbum, que conta a história de um eu-lírico que, se pudesse, iria recuar no tempo e mudar algumas coisas. Por mais que seja uma coisa mais lúdica, há muitos paralelos com o mundo real. Questionado sobre o que iria mudar, o artista falou sobre como o tempo também é um efeito borboleta.

“Vejo o tempo como uma coisa não linear na minha jornada. Nem sempre temos de voltar atrás no tempo para mudar algo do passado. Por isso, mesmo que pudesse, não teria coragem de o fazer porque não sei o que isso causaria no futuro. Nunca saberemos qual seria o reflexo desta ação. Voltaria no tempo para experimentar, ver ou saber algo que não tive a oportunidade porque já passou. Eu definitivamente voltaria no tempo para ter uma conversa com Bob Marley, para conhecer alguns dos meus ídolos musicais e pessoas que acredito terem feito a diferença na história da música e em outros aspectos. Voltaria mais por isso do que mudar alguma coisa, porque tenho medo de voltar e mudar a coisa errada.”

Matuê explicou ainda que seu eu-lírico é ele próprio “apenas de uma forma bem extrapolada, exagerada e mais emocional. As memórias e as emoções transformam-se numa versão mais intensa, mais colorida e psicadélica dentro do eu-lírico”.

“O álbum vem de várias experiências que eu realmente vivi, mas traduzidas de uma forma que poderia ser consumida de uma forma não convencional e não tão óbvia. Diria que quase tudo tem uma ligação com as coisas por que passei, coisas pelas quais vivi. As canções são acessíveis, são fáceis de aprender, de cantar, mas a mensagem e o conceito por trás delas são uma coisa pessoal. É uma coisa de evolução que tive durante este período de quarentena que estamos a viver. Para mim, que estou muito ligado aos meus fãs, à estrada, aos espectáculos, é muito difícil desistir disso e para mim foi um processo de aprendizagem, de reajuste, de saber qual era o meu novo propósito, o que poderia fazer para trazer um novo mundo para a malta, trazer uma nova forma de inspiração através da minha música e foi isso que procurei através deste disco. Foi um processo muito divertido para desenvolver esta história, foi difícil, mas ao mesmo tempo muito divertido e é legal os paralelos que ali são desenhados. Vejo muitas coisas erradas no mundo. Na minha concepção, caminhamos numa direção que não é positiva, muitas coisas precisavam de ser mudadas e dentro deste álbum faço esta montagem sem ter de a pregar como uma verdade absoluta. O Matuê do álbum vive num mundo pós-apocalíptico que quer salvar e quer trazer de volta a força da natureza, a ligação com as pessoas, com o mundo e estes são valores pessoais meus. Muitas vezes não é tão claro nas minhas letras, mas faz parte do meu dia-a-dia e do meu estilo de vida. Sou vegetariano há quase seis anos, acredito muito na sustentabilidade, nas energias renováveis, de qualquer forma… são coisas que vão melhorar no futuro e aparecer cada vez mais dentro do meu trabalho.”



[As origens e a construção da autenticidade]

Por muito grande que seja, o Brasil é um território fértil para artistas de todos os géneros. No entanto, aqueles que não estão no eixo Sudeste acabam por ter de trabalhar o dobro para conseguir a merecida visibilidade. Com Matuê não era muito diferente. Natural de Fortaleza, capital do Ceará, o artista diz que o complexo de inferioridade já é algo natural entre os artistas que ali se encontram. A infraestrutura para produzir é menor, o caminho é mais difícil e a situação cultural da cidade muitas vezes não é algo que motive o processo criativo, muito menos para acreditar no seu potencial para levá-lo mais longe, o que consequentemente afecta ainda mais a autoestima dos artistas. 

“No início, este foi um desafio muito grande, uma coisa que pesou muito na minha cabeça, incluindo, o grande desafio inicial da minha carreira era precisamente poder chegar a outros lugares. Assim que conseguimos fazer isto (quando digo ‘nós’, falo em nome da 30PRAUM, as pessoas que trabalham comigo nas partes musicais, conceptuais e de marketing) começámos a notar que poderíamos levá-lo a um nível ainda mais alto. Dentro do hip hop, ao longo dos anos, conseguimos fazer lançamentos que realmente protagonizaram, não é? Esta foi uma transição para mim de um cara que era totalmente regional, que fazia um som para a malta da mesma cidade e que queriam evoluir para além disso, mas sempre estava ligado à cidade, sempre manteve a essência de Fortaleza. Chegando a este nível de um álbum que é o número 1 no Brasil, muitas paragens no Top 10 do Spotify e tal, destrói totalmente esta concepção inicial que não conseguimos, que não conseguiríamos porque estamos fora do eixo. Também é bom ver o impacto que isto teve na cena do rap como um todo. Ao longo dos anos temos visto MC, um artista emergindo de tudo o que é possível lugar no país. Sou muito analítico em relação ao meu trabalho, no âmbito do processo de criação é difícil agradar-me. Eu sei quando a coisa está pronta, mas dentro do processo, o que normalmente seria aceitável e seria bom, às vezes fica um pouco abaixo do que eu quero e continuo a tentar obter o que realmente vai ao encontro das nossas expectativas do que é bom, não necessariamente pensar nas expectativas das pessoas. Não aceitamos repetições. É uma das nossas chaves. Não gostamos de repetir nada, não queremos seguir um caminho que já foi trilhado porque muitas vezes é um caminho que funciona mas o retorno não é tão satisfatório do que se correr riscos, fazer algo que não foi feito e ver os rapazes vibrarem assim, ter uma reação, positiva ou negativa, mas uma reação de facto a isso, interaja, critique, elogiei e reparei que o disco também fez muito disto. Especialmente após o lançamento deste trabalho, recebi uma lição muito grande, que foi: a canção escolhida pelos rapazes [‘777-666’, que na altura desta publicação já tinha ultrapassado os 37 milhões no YouTube] é a canção que menos acreditei dentro de todas as canções do disco. Acreditei que seria importante, mas não que tivesse potencial para ser a número um, a mais ouvida.”



[É nos detalhes que as referências se revelam]

Desde antes do lançamento do álbum, surgiram mil e uma teorias. Na cidade de São Paulo, o artista imprimiu um enorme painel num edifício, e noutras capitais brasileiras, espalhou stencils nas ruas com arte inspirada na identidade visual do álbum. A ideia foi comentada até por portais não relacionados com o hip hop porque chamou a atenção de muitas pessoas. O artista estava bem desligado das redes sociais e, claro, aparecer primeiro nas ruas e só depois na Internet gerou ainda mais teorias. 

“A ideia de divulgação com cartazes veio do desejo de trazer de volta uma sensação e depois surgiu a ideia de atirar coisas para a rua. Quando era mais jovem. Acompanhei as bandas de que gostava e eram mais bandas subterrâneas e quando anunciaram um disco para vir, um trabalho que iam lançar, a expectativa de que isto criava em mim era enorme! Estava mesmo à espera disso, a pensar no que ia acontecer. Hoje em dia, como vivemos num mundo onde esta viabilidade da criação musical e dos lançamentos são mais fáceis, mais rápidos e acessíveis a todos, o que é positivo, claro, também tem o lado negativo, que é o sobrelançamento, cada vez que sai uma obra de alguém e tal e não podemos seguir tudo como era nos velhos tempos. O meu objetivo era trazer a mesma sensação de frio na barriga que tinha à espera do álbum de uma banda, de um artista de quem gostava muito naquela altura através daquele disco. Depois tive uma ideia e disse: ‘Porque não vamos para a rua? Desde que me fui embora, já que me desliguei um pouco das redes sociais, porque não aparecemos na rua, fisicamente, antes de aparecermos na Internet?’”

Claramente, a ideia não podia ter dado mais certo. O álbum é comentado por quem gosta, por quem não gosta, analisado pelos resultados, pela letra, pelo conceito e todos os dias alguém aponta outro detalhe da obra. O real é que a dualidade entre a nostalgia da viagem no tempo e a modernidade ao som de Matuê cria um álbum interessante, que funciona tanto consumido na totalidade como com as suas canções soltas e até cíclicas, uma vez que a última canção leva-nos de volta ao primeiro. O álbum conceptual também traz um Matuê muito mais seguro.

“Para mim, o maior troféu de tudo, muito mais do que os números, é mesmo a ligação dos fãs com o trabalho, porque eu queria mesmo dar-lhes um presente, um universo que pudessem explorar, escapar ao que estão a passar, porque acredito que a música tem esse papel. Às vezes vem passar uma mensagem, ensinar algo que uma pessoa não vive e não tem acesso, por isso é uma forma de se conectar com outra cultura, outra realidade, mas também é uma forma de escapar à sua realidade mesmo que seja por um momento e acredito que esta é a minha especialidade.”


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