Depois de três décadas juntos, os Sonic Youth separaram-se 2011, sabemos agora, porque Thurston Moore, então marido de Kim Gordon, se apaixonou por outra pessoa. A partir daí foi o divórcio, de Kim e da banda, e a verdade é que é impossível contar a história dos Sonic Youth sem mencionar este relevante episódio. Aparentemente, mesmo o underground tem o seu “Brangelina”.
De lá para cá, Kim editou não só o seu magistral disco The Collective, mas também a biografia A miúda na banda, na qual dissecava a traição do marido com todas as consequências emocionais e artísticas, mas também a incapacidade dos homens em lidar com a verdade. Em jeito de resposta, e ao mesmo tempo tentando não alimentar a polémica, Thurston publicou em 2023 Sonic Life (sem edição em português) onde escreve a sua biografia a par, como não poderia deixar de ser, da da sua banda e da cena independente e experimental da Europa e dos EUA. Ao longo de 500 páginas, viajamos do CGBG de meados dos anos 70, onde pontificavam nomes como Patti Smith e os Television, através de 50 anos de música onde coabitam a experimentação, o punk rock e o mainstream do mundo pós-Sonic Youth.
Assim como no percurso da sua banda, também ao longo de Sonic Life o autor cria uma amálgama de universos diferentes, onde personagens como Iggy Pop entram em convulsão enquanto outras como Yoko Ono entram em delírio. Nesse aspecto, o universo dos Sonic Youth remete, em certa medida, para o de uns Velvet Underground e da Factory de Warhol, ao redor dos quais também estrelas mediáticas bebiam uma cerveja com os ídolos do underground de forma bastante blasé.
Apesar do óbvio interesse para os fãs da banda, mesmo quem não o for encontrará um documento da cena musical das últimas décadas. Em simultâneo, Sonic Life lê-se como uma coming of age story, ainda que padeça de alguma frieza e distanciamento nesse campo. Ao longo dos anos, tanto o percurso da banda como as trajectórias individuais se pautaram pela forma inesperada como conjugavam sensibilidades pop com experimentalismo e uma ética punk, tudo realidades aparentemente inconjugáveis. Por isso, além da própria música, os Sonic Youth, enquanto encarnação ideal desse vértice, foram sempre uma referência para milhares de pessoas e inspiração para centenas de projectos artísticos.
Que os momentos retratados por Moore sejam os pontos mais altos de uma história apresentada em arco, não deixam de ser uma espécie de anticlímax. Além disso, a própria veracidade dos factos, aqui surgindo como bastante romantizados, pode ser discutível, mas a revisitação da história tem destas coisas, e numa era em que os mitos parecem estar extintos e todos os mistérios resolvidos, aproveitemos esta fantasia para criar a tão necessária nova mitologia. Uma em que ainda existam pessoas dispostas a viajar centenas de quilómetros para fazer arte para pequenos públicos, apesar de estarmos cada vez mais a sucumbir ao modelo de pensamento mágico das redes sociais, onde o que não corre bem é apenas um episódio de onde saímos mais fortes.
Fica a faltar aqui — uma vez que a relação de Moore com Gordon é como que uma parceria público-privada e, nesse sentido, quase do interesse geral — uma explicação mais clara da relação extraconjugal que manteve durante 6 anos do seu casamento, que é exposta apenas como uma consequência normal da vida. O facto é que, nos agradecimentos, não só não consta o nome de Kim, como o de nenhum dos integrantes da antiga banda de Moore.
Muitas das críticas a este livro foram desfavoráveis, alegando apresentar uma visão fantasiosa do que foi a vida dos Sonic Youth. Mas não concederemos nós o direito a um autobiografado se apresentar da forma que decidir? Sobretudo numa era em que todas as verificações de factos parecem conduzir a mais notícias falsas, talvez precisemos apenas de curtir. Sem esquecer de trucidar os poucos ídolos que ainda restam, de preferência com estilhaços de guitarras partidas.