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Publicado a: 03/10/2016

Maseo dos De La Soul: “As coisas que têm acontecido… essa merda é muito mais importante do que música!”

Publicado a: 03/10/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTOS] Direitos Reservados

Os históricos De La Soul  regressaram aos discos 12 anos depois de The Grind Date. O novo álbum, And the Anonymous Nobody chega recheado de convidados e apoiado por uma das mais bem sucedidas campanhas de crowdfunding de sempre no mundo da música.

 

Quando pisaram o palco do Meo Arena no passado dia 16 de Julho, os De La Soul provaram carregar consigo o peso de uma rica história que agora se prepara para abrir um novo capítulo. Até ao álbum de 2001 AOI: Bionix, a segunda peça da trilogia Art Official Intelligence que nunca chegou a ser completada, os De La Soul estiveram ligados à Tommy Boy, uma subsidiária da Warner que teve sérios problemas. Depois de se desprenderem desse gigante, o trio nova-iorquino ainda tentou o circuito independente com a ligação à Sanctuary que rendeu The Grind Date em 2004, mas esse contrato também não resultou deixando o grupo no limbo durante mais de uma década.

 


https://www.youtube.com/watch?v=ZF_iin5OINw


Nesse período, porém, os De La Soul estiveram sempre a trabalhar, permanentemente na estrada, vendo o hip hop a crescer até níveis inimagináveis quando começaram a dar os primeiros passos. E como contemporâneos seus – Beastie Boys, A Tribe Called Quest, Public Enemy -, os De La Soul também viram a sua reputação erguer-se até à condição da referência incontornável. Maseo, Dave e Posdnuous, no entanto, não parecem interessados em ficar presos ao passado e anunciaram no arranque de 2015 uma campanha de crowdfunding que tinha por objectivo recolher 110 mil dólares para financiar as gravações de um novo álbum. O grupo acabou por recolher mais meio milhão de dólares do que o que pretendia e And The Anonymous Nobody afirma-se agora como um novo marco numa carreira prestes a bater nas três décadas.

O grupo fechou-se em estúdio com uma série de músicos, gravou jam sessions e depois tratou o material registado como os samples que até aí se recolhiam de velhos discos de vinil. Isto são os De La Soul a contornarem todos os problemas de direitos de autor que os afligiram no passado e que poderão estar na base da indisponibilidade de boa parte do seu catálogo passado. São os De La Soul a tomarem as rédeas do seu futuro. São os De La Soul e isso é uma excelente notícia. Maseo, MC, produtor e DJ do grupo, abre aqui as portas do bastante resguardado universo interior dos De La Soul, fala de música, de política, dos fãs e do futuro.

 


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Quase 30 anos depois do nascimento dos De La Soul e muitas voltas ao mundo depois, o que pensa da forma como esta cultura do hip hop se disseminou por todo o lado?

É bonito. Graças a pessoas como o Russell Simmons e o Lyor Cohen (NR: ambos lideraram a editora Def Jam) que tiveram um papel importante em tentar fazer desta cultura algo mundial, além de pessoas como o Afrika Bambaataa, que provavelmente foi o primeiro de sempre a ir em digressão com o hip-hop. Mas também o modelo de negócio do hip-hop, temos que agradecer a pessoas como o Russell Simmons e o Lyor Cohen e tantos outros que vieram atrás deles, que realmente implementaram um modelo de negócio para a cultura hip-hop.

E depois também há os artistas, que fizeram a música, com pessoas como os Run DMC ou os Beastie Boys, que tiveram álbuns importantes e clássicos e hits que também transcenderam esta cultura e tocaram em públicos globais.

Centremo-nos no novo álbum. Vocês decidiram tomar a produção nas vossas próprias mãos quando lançaram a campanha de crowdfunding no Kickstarter. Mas o que aconteceu há-de certamente ter-vos surpreendido ou não?

Sim… nós tínhamos traçado uma meta realista com base no tipo de negócio que há actualmente na indústria musical, por isso estabelecemos o objectivo de 110 mil dólares. Conseguimos ultrapassar essa meta em 8 ou 9 horas e ao longo de seis dias conseguimos cerca de 600 mil dólares para gravar inteiramente o novo álbum, o que foi surpreendente e entusiasmante. Muito mesmo. Porque, ao conseguirmos arrecadar essa quantidade de dinheiro igualámos os melhores budgets que tivémos para trabalhar no passado. Quando tens um orçamento significativo como esse é possível realizar as ideias.

Pode dizer-se que encontraram uma solução para os problemas que tiveram com as editoras no passado, transformando os próprios De La Soul numa editora?

A realidade de isto tudo é que agora somos nós a editora, de facto. Isso permite-nos ser e tornarmo-nos o que quisermos. O crowdfunding foi uma mensagem única das pessoas que queriam estar connosco, que queriam mesmo ver isto a acontecer. Sem ter qualquer tipo de agenda… apenas para ver os De La Soul a fazer acontecer. Isso foi tudo muito bonito e… sentimo-nos abençoados, saber que tínhamos pessoas que se preocupavam connosco o suficiente para quererem investir num novo disco nosso é como… Bem, percebo que fizemos um grande trabalho ao longo dos anos ao criarmos música que fez com que as pessoas nos quisessem apoiar a fazer este disco sem ter qualquer tipo de agenda.

 



Bem, parte do dinheiro recolhido serviu para montarem uma banda e levá-la para estúdio. Como é que decorreu essa parte do trabalho: chegavam ao estúdio e davam-lhes indicações ou foi tudo mais livre?

Bem, nós fomos aprendendo a estar com músicos e a comunicar com eles: há cerca de dez anos, quando começámos a celebrar o vigésimo aniversário de 3 Feet High And Rising, implementamos uma banda chamada Ryhtm Roots Allstars, de Los Angeles, e passámos muito tempo com eles. Por outro lado, ao longo dos anos, fomos estudando muitos grupos em documentários e programas de televisão, gente como os Parliament, Funkadelic ou James Brown, ou os Ohio Players… Penso que percebemos como funcionam as coisas e por isso a atmosfera que criámos no estúdio foi muito solta: algum do melhor material veio simplesmente de jam sessions. E podes ter uma jam session durante duas horas, mas podem ser apenas 20 segundos dessa sessão que soam mesmo bem, e é isso que pode depois chegar o disco… É apenas chegar ao estúdio e tocar… e, claro, cada um leva as coisas para uma direcção, temos esta maneira, talvez tentemos outra, e outra… E todos estão vulneráveis o suficiente para estarem de guarda em baixo para poderem estar abertos para as ideias de todos os outros.

A lista de convidados em And The Anonymous Nobody é impressionante: Usher e David Byrne, Snoop Dogg e Roc Marciano… Apontam em muitas direcções diferentes com gente assim. Alguma história mais curiosa sobre o recrutamento destas pessoas?

Sinceramente, nada de muito louco, mesmo. Podemos dizer que sempre que trabalhamos com alguém é porque somos fãs da sua música. Somos fãs deles e da sua música. E sempre foi assim, mesmo nos discos que fizemos no passado… quando trabalhámos com a Chaka Khan, ou qualquer outro, com o Devin The Dude… foi sempre porque nós éramos fãs da música destas pessoas. Claro que ser fã destas pessoas ou de música no geral e ser também um criativo pode levar a que as coisas não resultem. O ideal é fazer um tema que elogie ambos. Não queres fazer um tema apenas para ter aquele nome na capa. Tu queres fazer algo pela criatividade e porque aprecias estas pessoas pelo trabalho que fazem e eles admiram-nos a nós pelo trabalho que nós fazemos, por isso o desafio é sempre tentar fazer um grande tema que elogie toda a gente. Que não soe a algo forçado… E acho que não soa forçado porque a música dita sempre como é que as pessoas se vão encaixar nela. O conceito, por vezes, também ajuda: quando trabalhamos com um conceito forte e definido, isso dita sempre quem deveria ser a pessoa que deveríamos ouvir no disco, tal como se fosse um instrumento – “aqui agora entrava bem um piano”. As pessoas com quem sempre trabalhámos soam como um instrumento que precisa de estar no disco, como Redman, em “Oooh”.

Pode descodificar o título do álbum, And The Anonymous Nobody?

O álbum é sobretudo dedicado ao grupo de pessoas que nos apoiou neste disco, simplesmente porque o queriam ouvir. E é também dedicado aos Rhythm Roots, a banda que esteve envolvida, que, quando fomos juntos em tour, estavam sempre a insistir muito para fazerem um disco connosco. E também os fãs que se ligaram a nós através do Kickstarter… se tivéssemos chamado ao álbum outra coisa, nunca saberias quem eles são. Isto somos nós a respeitar as pessoas que queriam mesmo ver isto a acontecer, talvez até mais do que nós.

Em 2017 os De La Soul vão assinalar 30 anos de carreira e celebrar uma longevidade que não é comum no hip hop. Olhando para trás, o que diria que vos manteve juntos durante todo este tempo?

Sermos amigos. Irmãos. Sermos completamente honestos entre nós nos bons e maus momentos. Não sei se eles os dois pensam da mesma maneira, mas, na minha opinião, quando este sonho se tornou uma profissão, eu só senti que três coisas podiam realmente quebrar o grupo. E essas três coisas, para mim, eram: alguém ter um problema grave com drogas, alguém roubar dinheiro ou alguém se meter com a mulher de alguém. E nunca nenhuma dessas coisas aconteceu entre nós. Estes são os meus irmãos, os meus amigos, fora do negócio e da música estes são os três gajos de que eu quero saber e com quem me preocupo.

Em 2016 o De La Soul Is Dead fez 25 anos, o Stakes Is High fez 20. São datas muito redondas. Porque não aproveitaram para celebrar estes discos, talvez para os reeditarem com material extra como aconteceu recentemente com o álbum de estreia dos A Tribe Called Quest, por exemplo?

Esse material está, basicamente, debaixo do guarda-chuva da Warner Brothers. Portanto, claro que nós gostaríamos de fazer muitas coisas diferentes, em termos de novos lançamentos. Principalmente, gostaríamos de ver a música na Internet. Isso é algo que não foi feito. Gostaríamos de ter o nosso antigo material no iTunes e outros meios que vendem e tocam música na Internet. Esse tem sido o problema de o catálogo ser da Warner Brothers. Mas, claro, se a Warner Brothers estiver disponível para fazer qualquer coisa de especial, para o material antigo, isso seria excelente. Pessoalmente, gostaria de ver uma boxset com edições especiais em single de 7 polegadas, ou algo do género. Mas, sobretudo, gostava de ver a música na Internet.

 



A América tem vindo a atravessar uma fase turbulenta da sua história, sobretudo com a sucessão de casos de violência policial. Algum dos novos temas aborda essas questões?

Não, nem por isso. Não há nada no álbum sobre o que se está a passar nos EUA neste momento.

E isso é porque vocês não gostam de falar de assuntos políticos ou simplesmente não aconteceu?

Não, ninguém foge de assuntos políticos. Só que eu posso fazer o meu statement sem ter que o colocar num disco. Isso é uma coisa que vai além de fazer um álbum. Nós podemos gritar, fazer álbuns, fazer manifestações nas ruas e isso tudo… nós já fizemos isso tudo. Isso já foi feito. Por que é que haveríamos de repetir? Há outras coisas que têm de ser um pouco mais eficazes do que cantar uma canção. E agora isto tornou-se mais emocional. Estou a ver isso descaradamente com o mundo da tecnologia, em que podes realmente ver em imagens amadoras o que acontece, por oposição ao que dizem as notícias, e podes realmente ver a brutalidade descarada sobre as pessoas negras na América, que acontece desde bem antes de eu ter nascido. E o Marvin Gaye já fez um disco chamado What’s Going On, porque é que haveria eu de fazer outro? Nós já fizemos isso. Temos de fazer algo um pouco mais eficaz.

Pode dar um exemplo? Estar envolvido na eleição do próximo presidente, por exemplo? Isso é importante, neste momento?

Do meu lado pessoal, a cena é que eu sou apenas uma pessoa… E a pessoa em que eu teria votado nem sequer vai ser um candidato…

Ou seja, Bernie Sanders?

Sim. Podia dizer que confiava nele? Não posso dizer isso, tudo o que podia dizer é que tinha fé.

Acha que a América perdeu a oportunidade de ter um bom homem eleito?

Para mim é tudo poeira que nos atiram para os olhos, é entretenimento. Para fazer um resumo, é simplesmente entretenimento, para mim. É semelhante ao desporto, é um negócio corrupto. A América é uma corporação. É uma empresa. Não é gerida como uma terra ou um sítio, é uma empresa. Por isso, as pessoas vão fazer tudo o que têm de fazer para proteger a empresa.

Criativamente, no entanto, este pode ser um momento estimulante para o hip hop na América, por causa do assumir de posições. E visto de fora, parece ser isso que está a acontecer: têm saído muitos discos interessantes. Essa percepção é correcta?

Não, não acho que seja. Simplesmente tens indivíduos na América e indivíduos no Mundo. Ponto. Focados em fazer as suas próprias coisas. Estamos a lidar com pessoas que, especialmente no que toca à música, operam com um negócio que mudou completamente. Por isso há muitos artistas a fazeerem as coisas por si próprios, e mesmo muitos artistas que estavam a fazer coisas de uma forma mainstream, até eles estão a mudar. Todos estão a arriscar mais criativamente porque uma música já não vende… os artistas são muito mais espertos hoje em dia, o jogo está armadilhado. E ao mesmo tempo a Internet tornou-se um grande sítio para teres uma ligação directa com o público que está mesmo a procurar-te. Já não há propriamente guardiões que te impeçam de entrar. Nesse aspecto, e com o que se está a passar no mundo, a tecnologia tem um papel importante pelo facto de as pessoas serem um pouco mais humanas. Do género, “deixem-me apenas ser eu”. “Deixem-me apenas fazer aquilo de que eu gosto, e se mais ninguém gostar, quem quer saber?”. Estamos mais nesse espaço, em que as pessoas não estão a tentar agradar a ninguém. Há mais gente a assumir a sua individualidade, a fazer o que lhes passa pela cabeça. E isso é positivo.

As coisas que têm acontecido… essa merda é muito mais importante do que música! E as pessoas que criam música reconhecem isto que se está a passar no mundo e os ideais de fazer música costumavam ser o de estares feliz, divertires-te, algo que te tira da miséria do dia-a-dia. Aquele momento da tua vida em que podes ser criativo, brincalhão e diferente… e ligares-te ao teu espírito e à tua alma e não tentares agradar a ninguém sem ser a ti mesmo.

 

Entrevista publicada originalmente na revista Blitz.

 


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