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Publicado a: 02/04/2018

Marvin Gaye: A voz do amor… e do sexo

Publicado a: 02/04/2018

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Rob Verhorst/Redferns/Getty

Em 1973, depois de revolucionar consciências, Marvin Gaye dedicou-se a agitar corpos e a libertar o mundo de preconceitos sexuais editando um álbum clássico. Quarenta e cinco anos depois, Let’s Get It On mantém o génio intacto e ainda inspira milhões de ouvintes, alguns deles também cantores.

Marvin Gaye é muitas vezes pintado como um homem no centro de um turbilhão e poucos factos reforçam melhor essa ideia do que o momento em que gravou Let’s Get It On: na altura, este “trouble man” de 33 anos era casado com Anna Gordy, irmã do patrão da Motown, que então contava 50 anos, e no momento em que no estúdio se encontrava a gravar o tema que daria o título ao seu novo álbum apaixonou-se por Janis Hunter, a “mulher-menina” de apenas 16 anos que inspiraria praticamente todas as canções que Marvin haveria de gravar até ao final da sua carreira. Casado com uma mulher 17 anos mais velha, apaixonado por uma mulher 17 anos mais nova: a vida de Marvin Gaye não deu um filme (ainda…), mas traduziu-se numa série de álbuns clássicos, incluindo o enorme Let’s Get In On, editado em Agosto de 1973, há praticamente 45 anos.

Sem Marvin Gaye a história da soul seria necessariamente diferente e talvez hoje não fosse possível ouvir artistas como Frank Ocean, Drake ou até Kanye West se o crooner da Motown não tivesse um dia decidido romper com as apertadas malhas pop da sua editora para gravar What’s Going On. A América era um sítio diferente em 1970, sobretudo para os negros, então ainda embrenhados na luta pelos Direitos Civis que tinha vitimado Martin Luther King, Jr. um par de anos antes. Os tumultos que se viviam nas ruas eram então pouco consentâneos com a pop açucarada e romântica que Berry Gordy insistia em impor aos seus artistas, preocupado que estava em vender sucessos de rádio à América branca. Mas Marvin, que tinha assistido ao transtornado regresso do Vietname do seu irmão Franky e que todos os dias presenciava a repressão nas ruas, decidiu gravar “What’s Going On”, um tema que Gordy inicialmente travou por acreditar ser «demasiado político» para a rádio. Mas “What’s Going On” foi a alavanca da independência criativa de Marvin que se recusou a gravar mais uma nota sequer até que a Motown colocasse esse single nas ruas. Quando foi editado, em 1971, as ruas reconheceram em “What’s Going On” algo de diferente, elevando o single até ao topo das tabelas de vendas e vendendo no processo mais de dois milhões de cópias. Com argumentos assim, Berry Gordy não conseguiu desviar Marvin que gravou nesse momento um dos mais perfeitos álbuns de que há memória, um trabalho que alterou para sempre a história da soul, insuflando uma dura realidade adulta onde antes existiam apenas inocentes fantasias adolescentes.

Entre What’s Going On, de Maio de 1971, e Let’s Get In On, lançado em Agosto de 1973, a voz de “Inner City Blues” ainda editou a banda sonora de Trouble Man, uma espécie de fincar de pé para Marvin que tinha então conseguido finalmente completo controle artístico da sua carreira e uma renovação de contrato no valor de um milhão de dólares que fazia dele o mais bem pago artista negro do seu tempo. Trouble Man era uma banda sonora essencialmente instrumental, exceptuando o tema-título, que Marvin usou para se sintonizar com os tempos: artistas como Curtis Mayfield, Isaac Hayes, Barry White ou James Brown incluíram igualmente nas suas discografias um «desvio» pelos terrenos da blaxploitation, momento de gestão de carreira absolutamente incontornável para os maiores nomes da música negra americana na década de 70. Trouble Man foi exactamente isso para Marvin – um desvio, um capricho para provar a Berry Gordy que podia fazer o que quisesse. Mas o real sucessor do estrondoso What’s Going On foi o álbum seguinte, Let’s Get In On.

 


https://www.youtube.com/watch?v=hf7L-qWL6Ik


Não era apenas entre mulheres simetricamente opostas em termos etários que Marvin se encontrava nesta altura. What’s Going On era o álbum das profundas questões morais e espirituais, um disco em que Marvin sintonizava a sua dor com o sofrimento de toda uma geração, levantando pertinentes questões sobre o futuro. E Let’s Get In On o disco em que prometia levar todos os que o quisessem ouvir para a cama, um álbum atravessado por uma evidente tensão sexual, com o desejo carnal literalmente à flor da pele: “Um festim carnal”, de acordo com a Crawdaddy, “uma brilhante celebração da alegria do sexo” para a Rolling Stone, “uma desenvergonhada ode a f***r”,  como escreveu o crítico Jim Feldman.

O espírito primeiro, a carne, depois. Não era apenas da camisa-de-forças da Motown que o homem de Let’s Get It On se estava a libertar, mas também da repressiva educação imposta por Marvin Gay, Sr., o pai rígido, fundamentalista cristão que acreditava que o único propósito do sexo deveria ser a procriação. Nas notas de capa de Let’s Get it On, o próprio Marvin procurou justificar-se: “Não consigo ver nada de errado no sexo consentido entre duas pessoas. Penso que isto se complica demasiado… SEXO É SEXO e AMOR É Amor. Quando combinados, funcionam bem juntos, se as duas pessoas estiverem em sintonia. Mas trata-se na realidade de duas necessidades discretas e deveriam ser assim encaradas. Não acredito em filosofias exageradamente moralistas. Façam o vosso sexo, pode ser muito excitante, se tiverem sorte. E espero que a música que vos trago aqui vos dê sorte”. A “baby making music”, que tem animado a soul, de Sade e Anita Baker a R. Kelly ou Miguel, começou aqui.

 



Ed Townsend foi o produtor eleito por Marvin para trabalhar em Let’s Get In On. Ed compôs boa parte do material, dando créditos a Marvin que foi sempre capaz de se impor a qualquer tipo de material que compunha, alterando por vezes a sua natureza apenas com a força da interpretação. Em 1998, à revista Goldmine, Townsend referiu-se a essa capacidade: “Quando eu escrevi o tema “Let’s Get In On” não era suposto haver nenhuma carga sexual. Na altura tinha tido um problema com o álcool e depois tinha deixado de beber. E na clínica de desintoxicação eu costumava dizer às pessoas “let’s get on”, vamos prosseguir com as nossas vidas. Depois a canção desenvolveu-se e acabou por ser sobre um rapaz e uma rapariga. Mas, ao mesmo tempo, o Marvin poderia cantar o hino americano e torná-lo quase sexual. Ele tinha uma espécie de dom divino para fazer as coisas com uma natureza sexual”.

Responsável pelo lado A de Let’s Get In On, Ed Townsend ajudou a compôr o material que forma uma espécie de suite, como sublinha David Ritz, biógrafo de Marvin Gaye, em Divided Soul: “Como em What’s Going On”, escreve Ritz, “Gaye precisou da inspiração inicial de um parceiro, Ed Twonsend, que, juntamente com Marvin, co-produziu o lado e ajudou a escrever as suas quatro canções”. À Goldmine, Townsend explicou o processo de trabalho, referindo que por esta altura Marvin gostava de se fazer valer das possibilidades oferecidas pela tecnologia, gravando várias pistas de voz, por vezes apenas com alguns gemidos, encarando a performance como uma espécie de puzzle feito de várias peças. “Eu não gostava muito disso”, admitiu o produtor, “porque a minha escola dizia que se tinha que começar no princípio e ir até ao fim com uma interpretação, sem a ajuda das multipistas porque no início não havia esse equipamento. Nós tivemos uma pequena discussão em estúdio e eu disse-lhe que parecia que ele só se conseguia concentrar por 15 segundos. Ele respondeu ‘o quê?!’, tirou a camisa e cantou 10 minutos seguidos. Era demasiado longo e nós dissemos “keep getting it on””. Nasceu aí o tema que fecha o lado A, uma espécie de improviso em cima do tema-título.

 



O segundo lado do álbum é mais emocional, com temas como “Come Get To This” ou “Distant Lover” a imporem uma toada mais emocional, interrompida depois pela soul de bolinha vermelha no canto que é “You Sure Love to Ball”, toada essa que se mantém no tema que encerra o álbum, “Just to Keep you Satisfied” que, explica David Ritz, é uma espécie de adeus a Anna Gordy, a mulher com quem Marvin estava prestes a embarcar num amargo divórcio que teria como consequência directa o álbum Here My Dear de 1978 (tal como a sua relação com Janis – com quem se casaria depois – haveria de render I Want You, álbum de 1976).

Let’s Get It On é o álbum-chave nesta década prodigiosa de Marvin Gaye, o disco que permite descodificar o seu pensamento e que está na base de tudo o que viria depois. Jon Landau, o homem que nas páginas da Rolling Stone viu o futuro do rock and roll e que haveria de se tornar o manager de Bruce Springsteen, escreveu em 1973 que em Let’s Get It On, Marvin “continuava a transmitir o mesmo grau de intensidade de What’s Going On, enviando tons quase cósmicos enquanto eloquentemente vai fraseando letras por vezes simplistas. Mas isso não deveria surpreender, vindo do homem que cantou ‘she makes my day a little brighter / My load a little lighter / She’s a wonderful one’ de uma forma que torna difícil recordar se ele cantava sobre Deus ou mulher – e se ele sentia que haveria alguma diferença”.

 


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Texto originalmente publicado na revista Blitz. 

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