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Fotografia: Nuno Rocha
Publicado a: 21/03/2022

Escuta reactiva.

Maria Radich e Carla Santana na Cossoul: mudanças de rumo

Fotografia: Nuno Rocha
Publicado a: 21/03/2022

Estava planeado para Março um mês de programações da Phonogram Unit para o Rastilho, em Marvila (Lisboa), com mulheres improvisadoras e do jazz criativo. Não aconteceu, porque o espaço em causa sofreu o dilema do costume: queixas dos vizinhos por causa do ruído e dos agrupamentos de pessoas. Teve de encerrar portas. A editora e produtora reagiu depressa (apenas duas das sessões ficaram canceladas, e designadamente aquela que seria a mais simbólica, porque a 8 de Março, Dia Internacional da Mulher) e mudou armas e bagagens para as novas instalações da Cossoul na Rua Nova da Piedade. O primeiro concerto foi na passada quinta-feira, dia 17, com Maria Radich e Carla Santana, e os dois restantes estão marcados para as próximas quintas-feiras. 

Começou da melhor maneira, com a apresentação de um novo projecto que junta duas integrantes do colectivo Lantana. Em público, só uma vez, e durante 10 minutos apenas, a dupla actuara antes, numa ImproJam da Penha sco. Se já isso era uma bem-vinda novidade, acrescentaram-se outras mais-valias: Radich e Santana alargaram os seus recursos habituais e o que fizeram foi uma boa surpresa, marcando uma mudança de rumo nos percursos de ambas.

A cantora e bailarina levou para as imediações do Parlamento o tipo de material que a caracterizou no contexto português: um estilo conversacional e de glossolália e “speaking in tongues” que nos remete tanto para o misticismo religioso como para a fala esquizóide. Em termos globais, o trabalho que tem desenvolvido só é comparável com o que faz uma Anna Homler e é tão notável quanto o da vocalista norte-americana. Esse foco trouxe-lhe, no entanto, um problema de repetição e deixava de fora outras virtualidades, aquelas que lhe conhecemos em contexto rock, com os AbztraQt Sir Q, e em outras situações musicais, dentro e fora da livre-improvisação, nas quais a melodia, as harmonizações vocais e o uso de notas longas eram ingredientes. Na Cossoul utilizou tudo isso e encontrámos uma Maria Radich dando bom proveito à sua enorme paleta de técnicas e expressões.

Algo de semelhante caracterizou a actuação da manipuladora de dispositivos electrónicos. Se Carla Santana sempre entendeu o seu modo de estar na música improvisada como uma criadora de bases e ambientes para sustentação das intervenções de terceiros, fosse em grupos maiores (Lantana) ou em outros duos (por exemplo com Carlos Santos), e que muitas vezes surgia em formato de drone, desta feita não só samplou a voz de Radich e a processou em tempo real (algo que estreara o ano passado, no MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia, com a violinista Maria do Mar), como escolheu uma prestação textural muito presente, afirmativa e em igualdade de parâmetros com a sua parceira, não se coibindo de ocupar o primeiro plano. Santana deixou de ser uma (tão excelente quanto fundamental, de resto) acompanhadora e experiências recentes como o seu trio com os bateristas João Valinho e Felice Furioso terão contribuído para esta alteração de posicionamentos, bem como as colaborações com o declamador Rodrigo Brandão em que esteve associada a músicos como Rodrigo Amado e Hernâni Faustino.

Este novo duo não tem Radich como solista e Santana como produtora de envolvências: foi um diálogo que se desenrolou diante de nós, todo ele feito de escuta. Uma escuta profunda, imediatamente reactiva, apostada em tirar o máximo efeito dos pequenos pormenores, em construir dinâmicas e em estabelecer entrosamentos. Vários factores estiveram em jogo: sentido de oportunidade, relevância das escolhas sonoras realizadas e uma contenção nos volumes que contrastava com a rapidíssima variabilidade das situações.

O ciclo continua dia 24 de Março com outro duo inédito, o de Maria da Rocha (violino) e Hernâni Faustino (contrabaixo), e a 31 com o trio de violoncelos formado por Helena Espvall, Miguel Mira e Fred Lonberg-Holm, este já com um percurso firmado.

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