“Nós ficámos presos no estúdio. Nosso amigo foi para o show da Dua Lipa, nos trancou por engano e levou a chave”. Esse pequeno erro foi essencial para que Thalin, Cravinhos, VCR Slim, Pirlo e Langelo se unissem para fazerem o projeto Maria Esmeralda. “Quando a gente conseguiu ir embora já estava quase de manhã”, diz Thalin. “Aí fomos para a casa de uma amiga (onde chegámos às 5 da manhã) e gravámos lá o videoclipe de ‘Lince’. No mesmo dia lançámos no Youtube. Isso foi mais de um ano antes de sair o álbum de fato, tá ligado?” Os cinco já se conheciam, mas essa foi a primeira vez que decidiram trabalhar juntos. É bem provável que se não fosse o acaso, um dos discos mais comentados de 2024 não teria existido.
Antes de partirem para as produções, fizeram um exercício criativo para escolher um nome para o futuro projeto que fosse simples, fácil, que gerasse identificação e representasse o conceito que tinham em mente. A ideia era que essa linha condutora fosse puxada a partir de uma personagem. Para chegar ao objetivo, desenvolveram um roteiro e foram lapidando tudo para entender onde de fato queriam chegar. A escolha de nome e sobrenome também deveria representar algo comum para todos e que tivesse um contraste que tivesse algum tipo de valor.
“Maria é o nome mais popular no Brasil, e a Esmeralda é o que traz essa questão preciosa”, observa Thalin, que logo é complementado por Cravinhos: “E o disco tem muito disso, de trazer a dualidade das coisas. Fala sobre ganância, fala sobre o amor… fala sobre o lado puro das coisas, que seria representado pelo Maria, e o lado ganancioso, que é representado pelo Esmeralda”.
Por tudo acontecer (inicialmente) sem um planejamento prévio, VCR Slim fala que não tiveram tempo de fazer uma arquitetura. Estruturaram a partir do gosto, da amizade e da vontade de mostrar para os outros o que achavam que fazia sentido. “Era muito mais troca, não tinha muito: ‘Ah, precisamos disso, precisamos daquilo, ou a gente precisa de um interlúdio aqui’”. Foi tipo: ‘Pô, ia ser da hora se a gente fizesse tal coisa.’ A gente gravava, testava e foi meio nesse modo que desenvolvemos”. Ele faz a afirmação quase 30 minutos antes de subir ao palco do C6 Fest, quase no final de maio em São Paulo. Todos estavam ansiosos para fazer um concerto acompanhado pela primeira vez de um trio de cordas. Por ali também estão Zudizilla e Matheus Coringa, que no camarim mesmo raspou o cabelo, dois convidados da única apresentação de rap do festival. À vontade, o quinteto está eufórico. Pirlo e Langelo apenas concordam com o que os três “porta-vozes” falam. “A partir de um momento, a gente percebeu que já tinha algumas faixas, e que a gente tava com essa vontade, que gente tava nessa bala. Aí acho que teve um momento sim que a gente falou: ‘Temos um disco, mas que disco é esse, do que a gente vai falar? Qual é o conceito?’”
Nesse processo, as músicas também foram surgindo de diferentes formas. Algumas foram feitas do zero, em grupo. Outras, alguém levava a ideia de um personagem para que o enredo fosse desenrolado de forma colaborativa. O único “ritual” é que nenhuma foi escrita antes do beat. A principal inspiração estética foi o álbum Who Made The Sunshine, do Westside Gunn. “Tanto sonora quanto de estilo”, revela VCR. “Até nos detalhes e a referência pra mixagem e masterização era pra estar soando que nem o disco dele”. Esse pode ter sido o diferencial para que o projeto tivesse a repercussão que teve em tão pouco tempo.
Furar a bolha surpreendeu porque até aquele momento Thalin, Cravinhos, Pirlo e Langelo já tinham uma caminhada no rap, porém, sem grandes repercussões fora do underground. “Muita gente acha que o Maria surgiu com contatos ou coisas assim, e até acham que esse é o primeiro trabalho de nós cinco. A única pessoa que teve o primeiro trabalho lançado com o Maria Esmeralda foi o VCR Slim”, ressalta Thalin. “É óbvio que a gente sempre tem esperança, mas tem que jogar com a realidade. Às vezes não esperamos nada e acontece, ou vice-versa”. A surpresa não pegou Cravinhos desprevenido, porque acreditava que de alguma forma poderiam conquistar um lugar ao sol. “Eu sabia que estava bom, mas não criei muita expectativa porque… pô, olha quanto o trampo foda pra caralho sai todo dia também e não tem a devida repercussão, né?”.
[Diferente, mas nem tanto]
Digo que, na minha visão, o reconhecimento do Maria Esmeralda aconteceu por fugir do convencional. De ir na contramão do que o rap brasileiro estava propondo até aquele momento. Não que tenham reinventado a roda — ou que outros MCs não sigam essa mesma textura. Ao invés de fazer algo retilíneo, escolheram o imprevisível. Imediatamente VCR Slim pede a palavra para discordar. “Eu não acho tanto”, afirma. “Não tô falando que é um álbum comum, mas pegando tantas referências que a gente têm, tantos bagulho que a gente gosta de ouvir, eu acho… que segue um tipo de direcionamento já consagrado. Essas músicas só existem porque eu gosto muito daquela outra música ali ou porque eu ouvi alguém fazer isso”. Para somar os pensamentos, Cravinhos faz sua análise.
“Como são cinco pessoas fazendo, a gente multiplica por cinco vezes. E aí, eu acho que quando olhamos de dentro sabemos exatamente de onde veio tudo”, reflete. “Mas acho que vendo de fora, essas cinco referências juntas podem dar a impressão de que é uma coisa que foge sim do que tá rolando. E que talvez até fuja mesmo. Se você olhar faixa por faixa não acaba vendo muita coisa diferente. Isso acontece mais no contexto geral, quando junta tudo”.
Um dos grandes êxitos do Maria Esmeralda foi o resgate da obra de Marília Medalha, uma das grandes cantoras brasileiras que teve seu ápice artístico nos anos de 1960 e 1970, tendo gravado com Vinicius de Moraes, Baden Powell, Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, Toquinho, Carlos Lyra. Inclusive, é um vídeo dela declamando um poema (o mesmo da introdução do álbum), que foi descoberto na casa da cantora, que abre o show. A aproximação começou depois de Langelo aparecer no estúdio com discos dela para possivelmente samplearem. Duas semanas depois, Thalin conseguiu o telefone de Marília. “Mesmo sem fazer a menor ideia de quem eu era, só liguei e ela atendeu, tá ligado?”, lembra. “Assim começou essa conexão e fomos lá algumas vezes desde então. Hoje em dia a gente tem uma amizade mesmo”. Antes do Maria, o último lançamento de Marília foi Bodas de vidro (1992). “Acho que se fosse qualquer outra pessoa, acredito que não teria acontecido do jeito que aconteceu”.
Se sorte, destino ou coincidência, o caminho de Maria Esmeralda foi traçado para ser do jeito que deveria ser. Para quem espera uma continuidade, pode se decepcionar. “Por enquanto continua sendo só um projeto único, tá ligado?”, declara Cravinhos. “A nossa ideia agora, nosso foco é focar no show, que é uma coisa que a gente tem curtido muito fazer e tem tido um retorno legal”. De fato, a apresentação também foge do tradicional e dá mais sentido ao álbum. Um dos destinos que vislumbram no futuro é a Europa. “Até acho que o show é menos convencional do que o disco”, diz VCR. Então acho que esse é um caminho”. Vencedor na categoria de Artista Revelação do prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), um dos mais importantes do Brasil, o Maria Esmeralda prepara também uma versão em vinil e voos ainda mais altos.