Esta noite, na Casa da Criatividade, em S. João da Madeira, o Festival Novembro Jazz recebe o Maria Carvalho Quinteto, projecto em que a jovem baterista, compositora e arranjadora assume a liderança de um ensemble singular que revisita com frescura e plena liberdade a obra de José Mário Branco. Resultado de um trabalho final de mestrado, este ensemble estreou-se discograficamente com a edição do álbum Margem em que Maria Carvalho apresentou novas e deveras entusiasmantes leituras para um repertório profundamente enraizado na música e na palavra portuguesas.
Nesta entrevista, Maria Carvalho conduz-nos pelo seu percurso: da descoberta da bateria após anos de formação pianística e clássica, ao impacto transformador que a licenciatura em Jazz e Música Moderna — seguida do mestrado — teve na forma como hoje pensa o ritmo, a composição e a direção musical. Fala das referências nacionais e internacionais que moldaram a sua identidade artística, do processo de escolha dos músicos que integram o quinteto, da construção dos arranjos centrados na voz e da forma como equilibra a exigência do time-keeping com a responsabilidade de liderança. Reflecte ainda sobre o diálogo com o legado cultural e político de José Mário Branco, os desafios de afirmar uma voz própria num meio ainda marcado pela desigualdade de género, e os caminhos futuros que deseja abrir para este ensemble que já encontrou um lugar singular no panorama presente do jazz português.
Como descobriu a bateria e o jazz? De que forma a sua formação — licenciatura em Jazz e Música Moderna, especialização em bateria, e mais tarde o mestrado em Música — moldou a sua abordagem atual?
O meu percurso musical começou no piano. Fiz alguns anos de formação clássica mas, durante a adolescência, comecei a descobrir outros géneros musicais como o rock, que me fizeram querer aprender outros instrumentos, aprendi a tocar guitarra e, mais tarde, bateria. Tinha uma banda de garagem com alguns amigos da escola e este foi um grupo que fez muita diferença no meu percurso, partilhávamos muita música e íamos a muitos concertos. Penso que essa dinâmica, ao mesmo tempo que mantinha a formação em piano, foi muito importante para a minha motivação na música. Quando terminei o secundário fui para a Faculdade de Ciências estudar Matemática e foi durante esta altura que comecei a descobrir o jazz. Lembro-me de ir ver um concerto do trio do Mário Laginha ao Hot que foi, sem dúvida, um dos mais marcantes no meu percurso. Fiquei sentada no chão quase em cima do palco e saí daquele concerto a pensar “é assim que eu quero tocar”. Assim que terminei a licenciatura em Matemática comecei a licenciatura em Jazz e Música Moderna. Penso que, tanto na licenciatura como no mestrado, o mais importante foram as pessoas, tanto colegas como professores, mais do que a parte curricular. Conheci ali pessoas que me mostraram imensa música que não conhecia, com quem toquei bastante, tanto nas aulas como em sessões e concertos, e que me motivaram muito para estudar e procurar mais coisas por mim própria.
Quais são as suas maiores influências musicais, nacionais e internacionais, enquanto baterista, compositora e arranjadora? Sobretudo neste presente internacional tão diverso e criativamente agitado nos domínios do jazz?
Dentro da cena nacional, o Mário Laginha e o Bernardo Sassetti foram, provavelmente, os músicos que maior influência tiveram na minha entrada no jazz e continuam a ser duas das minhas maiores referências hoje em dia. Vou também buscar muita inspiração à música do Carlos Bica, do Bernardo Moreira, do André Fernandes e do Nelson Cascais. Lá fora, o Aaron Parks e, mais tarde, o John Taylor, foram músicos muito marcantes no meu percurso e cuja música me fez querer dar os primeiros passos na composição. Em relação aos bateristas, destaco como maiores influências o Alexandre Frazão e o Marcus Gilmore. Mantenho ainda muitas influências fora do jazz de bandas como os Rush ou os Radiohead.
Desenhou um ensemble com voz, guitarra, piano, contrabaixo e bateria. Pode contar-nos por que razão selecionou estes músicos em particular e o que cada um traz de essencial ao grupo?
A partir do momento em que decidi que ia trabalhar música de José Mário Branco estabeleci logo que ia ter voz e que os poemas originais seriam o centro do projeto, não queria fazer apenas versões instrumentais dos temas. Tive a sorte de conhecer a Sara Afonso quando estava na ESML e foi a pessoa que imaginei para este grupo desde início. A Sara tem uma forma muito verdadeira de transmitir os textos, não são apenas palavras com notas, são histórias e mensagens que ela consegue passar de uma forma muito clara, aliada a uma voz fantástica. Sendo o piano o meu segundo instrumento, foi ao piano que escrevi os arranjos todos e por isso fazia sentido que o grupo incluísse um pianista. Também conheci o Luís Lélis na ESML e decidi convidá-lo para este este projeto por ser um pianista muito sensível e lírico, que me pareceu alinhado com o som que eu procurava. A Juliana Mendonça é a pessoa do grupo que conheço há mais tempo e com quem tocava regularmente durante o curso, tendo sido a escolha imediata quando formei o grupo. Fiz grande parte do processo de composição com a formação tradicional de quarteto em mente, no entanto, mais para a frente achei que seria benéfico juntar outro instrumento e decidi que seria a guitarra por poder introduzir alguma variedade no som geral dos temas e por ser um instrumento que pode assumir um papel melódico ou harmónico. Decidi chamar o Bruno Ponte por ser um guitarrista que, para além do domínio que tem da linguagem jazzística, tem também colaborado com artistas ligados à música portuguesa como o António Zambujo e que acaba por trazer essa sonoridade para o projeto, o que faz o cruzamento de linguagens que eu procurava.
Como equilibra o papel de baterista — tradicionalmente ligado ao time-keeping — com o papel de líder e arranjadora do projeto?
A voz é, para mim, o ponto central deste projeto e foi com isso em mente que construí os arranjos. Apesar de este ser o meu projeto, procuro sempre que a bateria sirva a música sem assumir um papel destacado relativamente aos outros instrumentos da secção rítmica, faço a condução da banda a partir da bateria da forma mais subtil que me é possível de forma a tentar evitar ofuscar a voz ou o solista. Como referi anteriormente, escrevi todos estes arranjos ao piano, longe da bateria e, por isso, acabo por me sentir num papel diferente quando estou a tocar os arranjos que idealizei.
O que tem aprendido em palco, nos concertos que tem feito com o quinteto e que impacto essas experiências têm na sua visão criativa?
Graças ao volume de trabalho que temos tido, neste momento este grupo funciona quase exclusivamente com o trabalho de palco, só quando quero introduzir alguma ideia nova é que marcamos um ensaio, mas de resto tenho tentado deixar tudo para os concertos de forma a não saturar a música e a permitir que as coisas fluam com naturalidade. Acho que é no palco que os projetos ganham vida e onde os grupos passam a soar a bandas, mais do que nos ensaios. Em concerto somos obrigados a estar com muito mais atenção aos nossos colegas, a reagir de forma rápida e assertiva caso surjam problemas e somos obrigados a lidar com as nossas frustrações, se uma determinada música correr mal não há nada a fazer, o momento já passou e não posso repetir. Tento também estar com atenção à reação do público ao longo do concerto para poder ajustar o repertório se necessário. Apesar de procurar fazer música que me seja natural não descuro a satisfação de quem fez o esforço de vir aos meus concertos, por isso procuro sempre que a ligação com o público seja sempre a melhor possível, algo que tenho vindo a ajustar com a experiência.
De onde surgiu a ideia de revisitar a obra de José Mário Branco? Quais foram os maiores desafios e libertações ao transportar esse repertório para o contexto do jazz?
Este projeto começou em contexto académico e foi o meu projeto artístico final de mestrado quando estava na ESML. Eu estava com muita vontade de trabalhar música com letra, em particular letra em português, e de explorar o lado da composição e do arranjo que tinha ficado um bocadinho de lado durante a licenciatura e primeiro ano de mestrado. Achei também que seria bom sair um bocadinho do universo do jazz no qual estive tão imersa durante o curso e procurar respirar novos ares. O jazz é uma música que se reinventa a partir da fusão com outras sonoridades e culturas e por isso achei que seria a oportunidade perfeita para procurar caminhos diferentes dos que tinha percorrido até à altura. Encontrei na música de José Mário Branco a oportunidade ideal para ver cumpridos todos estes desafios a que me tinha proposto. É um músico cuja obra é vastíssima, desde as canções que escreveu para si como as que escreveu para outros artistas e acaba, por isso, por ser muito representativo da música portuguesa na sua globalidade, passa pelo fado, pela pop e até pelas marchas populares. Para mim, o maior desafio de trazer este repertório para o jazz está relacionado com as letras, mais do que com as componentes melódica e harmónica. A língua portuguesa tem características muito particulares e torna-se baste desafiante arranjar música com textos que não posso alterar e que não fui eu que escrevi. Sendo a parte da mensagem presente nas letras um ponto fulcral para este projeto, passei muito tempo a estruturar os textos para garantir uma prosódia correta, algo que foi particularmente difícil nos temas em que fiz alterações mais consideráveis à estrutura rítmica original.
Como dialogou com o património cultural e político de José Mário Branco sem perder a sua voz artística própria?
Eu tenho sempre tentado que o meu método de trabalho seja o mais intuitivo possível. Neste projeto em particular, para garantir que a música fluía de uma forma natural, só recorri ao instrumento numa fase mais avançada do trabalho ou quando precisava de verificar alguma coisa em particular. A primeira fase passou por deixar que a minha cabeça levasse a música para onde queria sem grandes regras pré-definidas. Foram muitas viagens de autocarro a imaginar os arranjos e a deixar que as músicas se construíssem a si próprias e só depois de ter um primeiro plano delineado é que passei para o piano de forma a transpor tudo isto para algo mais concreto. Fiz também uma análise bastante extensiva ao conteúdo das letras e ao contexto em que foram escritas de forma a garantir o máximo de coerência entre os arranjos que estava a fazer e o propósito original das canções.
Num meio ainda fortemente marcado por presenças masculinas, sobretudo na bateria e na liderança de grupos, como tem lidado com o facto de ser uma das poucas mulheres líderes e instrumentistas na cena jazz nacional?
Este é um assunto que tem surgido bastante nos últimos tempos e folgo em ver que o meio está, em geral, bastante mais atento a esta questão. Nós, mulheres instrumentistas, continuamos a ser bastante menos em número do que os homens, algo que tende a causar algumas dificuldades na nossa credibilidade enquanto performers, no entanto, recentemente, têm surgido muitas raparigas a tocar a um nível muito alto que penso que eliminam quaisquer dúvidas que possam existir em relação àquilo que somos capazes de fazer. Eu tenho tentado fazer o meu percurso da forma mais natural possível sem ter este assunto demasiado em conta para que não seja este o ponto central da minha carreira. É sempre difícil responder a estas questões porque sei que a minha experiência será, certamente, bastante diferente da de outras raparigas no meio mas, felizmente, este nunca foi um assunto que tivesse interferido com a minha motivação para fazer aquilo que quero. Elevar o meu trabalho ao nível mais alto que consigo, tanto a nível da composição como das minhas capacidades enquanto baterista, é o que me tem permitido ganhar o meu espaço e que espero que possa abrir portas e facilitar o caminho a quem vier depois de mim. Penso que ter como prioridade máxima a qualidade do meu trabalho é o melhor contributo que consigo dar à comunidade.
Que atitudes e escolhas considera decisivas para afirmar a sua identidade artística e ganhar espaço como líder e compositora?
Eu acredito que toda a gente tem um som próprio e individual e que só surge se permitirmos que isso aconteça. Por essa razão, acho que a única forma de ganharmos o nosso próprio espaço é que permitir que a música aconteça naturalmente tanto no momento da performance como da composição — sem isto, há muitos anos que teriam deixado de aparecer artistas com propostas novas. Creio que toda a gente tem algo de novo a acrescentar mas, para isso, é necessário esquecer regras e ideias pré-concebidas e deixar que essa identidade se afirme. É bastante comum no contexto jazzístico, durante o processo de composição, surgirem questões ligadas à linguagem e às características mais idiomáticas do género, mas acho que não devem ser barreiras à composição natural e intuitiva. Tenho tentado abordar sempre a música desta forma e não impedir que as influências que tenho fora do jazz transpareçam no meu trabalho. A minha música pretende ser um reflexo que todas as influências e experiências que tive até agora e é isso que me permite ter um espaço só meu.
Que horizontes gostaria de explorar com o quinteto — novos repertórios, colaborações, internacionalização?
A obra de José Mário Branco é muito vasta e por isso explorar repertório novo é, sem dúvida, o próximo passo. Este é um processo que envolve muito trabalho de investigação tanto na parte da seleção da música a trabalhar como na elaboração dos arranjos e por isso acaba por ser algo demorado. Tenho estado nos últimos tempos a revisitar muita da música que ouvi e ainda a descobrir muito material novo. O trabalho de investigação é algo que me dá muito gozo e, felizmente, graças ao trabalho feito pelo CESEM em colaboração com o INET-MD e pela FCSH na criação do Centro de Estudos e Documentação José Mário Branco – Música e Liberdade e da disponibilização de muito material no Arquivo José Mário Branco, tenho visto o meu trabalho mais facilitado. Ao longo deste último ano tenho tido a sorte de conhecer e tocar com artistas que admiro muito, dentro e fora do meu projeto, e por isso não fecho portas à possibilidade de integrar outros músicos no grupo ou de ter alguns convidados num próximo disco, tudo dependerá daquilo que sentir como mais benéfico para a música. Num futuro mais próximo, espero conseguir continuar a levar o meu trabalho a mais salas e a mais festivais, com um público o mais abrangente e diversificado possível, seja a nível nacional ou internacional.
Como vê o equilíbrio entre respeitar a tradição (do jazz português e da música de intervenção) e a necessidade de inovar e explorar novas margens?
Penso que quando estamos a trabalhar música com uma identidade tão forte como esta é importante perceber quais são os pontos estruturais dessa música e quais é que são as partes mais maleáveis. Se trabalho música de intervenção, então o conteúdo da letra é a parte que mais a caracteriza e, para mim, faz sentido que tudo o resto seja construído tendo isso em mente. Ter uma nova estrutura rítmica ou harmónica, neste contexto, devem ser apenas veículos para transmitir a mesma mensagem mas de uma forma diferente. Acho que quando trabalhamos música de outros artistas, como eu tenho feito, este é um ponto a ter em conta e do qual não podemos fugir. Quando escrevemos música original, como referi antes, acho que o mais importante é seguir o caminho que nos é mais natural, mesmo que isso signifique uma rota mais afastada da tradição.
Já se viu no papel de referência para jovens instrumentistas do sexo feminino a darem os primeiros passos no estudo do jazz? Procuram-na para pedirem conselhos?
Eu não estou de momento a lecionar em nenhuma escola de música e por essa razão o contacto que tenho com alunos mais jovens tem sido reduzido. Vou-me cruzando com alguns alunos em festivais e workshops, mais recentemente no festival Theia, que aconteceu na Lousã em Setembro deste ano onde tive a oportunidade de tocar na jam session com os alunos que se encontravam a fazer o estágio do festival durante essa semana e foi um momento de partilha bastante enriquecedor para mim. No entanto, acho que na música o percurso de cada um é moldado por uma série de fatores que tornam difícil para mim a tarefa de dar conselhos mesmo que sejam pedidos. O meu foco é a música que escrevo e a maneira como toco e quero acreditar que esse trabalho pode vir a ser fonte de inspiração para alguém, mesmo que não tenha um contacto direto com essa pessoa. O meu percurso é ainda bastante curto e tenho a certeza de que irei daqui a uns anos ver as coisas de uma forma diferente da atual, por isso tenho sempre alguma relutância em responder a essas questões, só tirei o aparelho dos dentes o ano passado.