CD / Digital

Marco Santos

Everyone is the One

UartM Records / 2024

Texto de Ricardo Vicente Paredes

Publicado a: 20/09/2024

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O compositor e baterista Marco Santos, despido da pele de coreógrafo — ou talvez nem tanto, já lá iremos — traz à edição um disco diverso e versátil, que se escuta como um contador que se abre. É da ordem da memorabília, assente numa ideia de gavetas, em que cada uma se guardam emoções, vivências, experiências que resistem ao tempo, que as valoriza e valida hoje. Compor a partir de memórias é atravessar um riacho numa dessas passagens feitas de poldras. Haverá que dar passadas certeiras de poiso em poiso contando com o vazio entre elas, é um percurso feito de invariáveis hiatos. Contudo é nesses espaços de ausência que se constroem e romantizam as memórias, de outra forma eram exactas, e sem espaço criativo algum. Este disco que parte desse desafio de uma memória percorrida nos últimos 17 anos é um exercício de psicanálise. Se Marco Santos o fez para arrumar a sua casa interior ou como terapia é da sua conta, ficamos pelo resultado, com o que vem do processo. Também deixamos no campo das possibilidades abertas se as composições resultam de um processo de construção gradual — estilo diário de bordo dessa viagem no tempo; ou antes de uma revisitação, partindo do agora para esse tempo. Fará alguma diferença na escuta e fruição? Nada mesmo, certamente.

Para os oito temas inscritos em Everyone is the One, entram seis músicos de grande craveira. Há o saxofone alto de Ricardo Toscano que surge de imediato em “Break The Loop”, para não mais voltar, além do primeiro dos temas servidos. Uma porta de entrada em conjunto, aqui todos os músicos estão presentes. Um tema que rompe os primeiros desenhos circulares feitos do alto de Toscano, e entra num sulco vincado pela bateria e o contrabaixo de André Rosinha, a que se junta o trompete de Diogo Duque e a guitarra, em rasgos amparos, de Tiago Oliveira, e onde o piano de Óscar Marcelino da Graça se intromete com uma mão dentro das cordas. 

Depois, em “Innerhome” a passagem é para a mais longínqua das memórias, a isso remete à ideia de caixa de música, e que o trompete distancia ainda mais num longe soprado. Aliás, é um deleite recuar assim, e parecem confirmar-se a ideia de maior fulgor criativo quando se tenta ir mais fundo no baú das memórias. Diogo Duque tem uma das melhores passagens do seu sopro neste desempenho.

À terceira faixa do álbum estamos no tema-título, e fica estabelecida a força motriz do disco —  num quarteto funcional e sonhador, que é embolo permanente, há bateria, contrabaixo, piano e trompete; numa segunda metade, uma guitarra entra para burilar mas as facetas do cristal estavam bem patentes.

Em “Awa”, o tema em que se vai querer voltar mais vezes, há um lugar de sonho, de mistério que se mapeia numa viagem de uma floresta nativa, onde habitam resilientes entidades que o trompete ajuda diferenciar uns e o piano outros, tudo envolto na bruma desenhada pelas cordas da guitarra cadente e do pulsar latente, numa paisagem sonora em que Marco Santos se remete a mínimas intervenções de timbres metálicos e chocalhos de frutos e sementes, como é da natureza da memória ameríndia. 

E estas alturas do álbum é mesmo de uma viagem que se tratam. Em “Limitless”, a flauta de pã e os desenhos da guitarra fazem ouvir uma melodia aventureira por cordilheiras que se convocam para uma história trazida ao presente. O desbravamento da bateria, contrabaixo e piano termina por redesenhar uma outra paisagem final, no sopé, olhando para o cume onde tudo começou.

“State of Being” retoma esse embolo de suporte do álbum. Piano, bateria e contrabaixo sobrevoados pela trompete, exímia planadora. É feito de uma complexa simplicidade sonora, que se traduz em leveza contínua. Liga-se de imediato, sem quebranto, “Humming for Peace” que decorre dum diálogo efectivo entre trompete e guitarra, e num dos mais felizes momentos do álbum a trompete desmaia num fôlego de surdina para dar lugar a outro diálogo, cristalino, entre piano e contrabaixo, a que se junta a bateria e mais toda a dimensão intemporal vinda do entoar colectivo. É aqui que damos conta, sem reservas, que Marco Santos segue na pele de coreógrafo, este tema dança-se em permanência e alimenta a música esses mesmos passos em movimentos imaginados sobre o linóleo. 

O fecho torna-se um jogo de contrastes com “Mankind vs. Kindman”, pese embora a dolência da guitarra tema adiante, em que há um lado abrangente e que celebra o que tem em mãos, que vai andando com a possibilidade de ver de perto quem se intrometa e reivindique protagonismo, é esse o peso que a guitarra representa e transporta invariavelmente como elemento neste álbum. Será caso para pensar se Marco Santos tem memória de querer ter sido guitarrista, em vez de baterista ou coreógrafo?


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