pub

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 13/05/2021

Imergir no instrumento para se encontrar nesse movimento.

Marco Franco: “Sempre trabalhei assim um pouco como trapezista ou domador dos acontecimentos”

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 13/05/2021

O apelido deste artista faz pleno sentido porque o Marco é, de facto, franco. Não apenas nas directas e transparentes respostas que oferece às perguntas com que o confrontamos, mas sobretudo na música, dimensão em que revela uma humanidade tocante, um pensamento artístico sério e uma beleza transparente. Essa qualidade de Marco Franco pode também adivinhar-se conceptualmente na opção de gravar com o tampo do piano aberto, tornando parte da música a própria personalidade do seu instrumento, que também nos fala através do murmúrio da sua engrenagem mecânica, da vibração da sua madeira temperada pelo tempo.

Marco Franco é também um músico, um artista, um criador temperado pelo tempo: o seu percurso atravessa diversos géneros, do rock mais convencional ao mais exploratório, do jazz à música livre e improvisada, das nuances mais tradicionais às expressões mais vanguardistas. Já lá vão uns anos desde que o ouvimos nos Memória de Peixe, mais ainda dos que distam o presente dos tempos das experiências nos Mikado Lab, mas temo-lo escutado em edições recentes a tocar bateria como parte dos Fail Better! ao lado de Marcelo dos Reis e José Miguel Pereira (numa gravação de 2017), ao lado de gente tão diversa quanto JP Simões ou Rodrigo Amado e, claro, como membro dos Montanhas Azuis, projecto em que reparte responsabilidades com Norberto Lobo e Bruno Pernadas. Tudo gente boa. Como o próprio Marco, que confessa não ter passado bem no último ano, tempo de profundos questionamentos para todos, mas que o afectaram de modo muito particular.

Escutando a música que agora nos traz no novíssimo Arcos, que terá edição da Revolve amanhã mesmo, no dia em que se apresenta ao vivo na Culturgest, entende-se que Marco Franco conseguiu encontrar de novo o seu foco, abrindo o piano como quem abre a alma, expondo o mecanismo que o faz ser quem é. Não há franqueza maior.



Comecemos pelo que é mais simples: o que dirias que permanece e o que muda de Mudra para este novo Arcos… passaram uns anos…

Passaram uns anos sim, e as mesmas coisas transformaram-se noutras coisas que foram amadurecendo, mas existe sempre o entusiasmo da descoberta e o que permanece e muda funde-se numa mesma coisa. É difícil de responder!

Por alturas de Mudra hás-de, certamente, ter gasto algum tempo a falar sobre a tua para nós surpreendente adopção do piano, mas não comigo, por isso perdoa a insistência. O piano, como a bateria, é um instrumento percussivo, mas também harmónico e melódico. O que descobriste nessas dimensões que não exploravas enquanto baterista?

A bateria foi o instrumento onde passei mais tempo sem dúvida até aos dias de hoje, mas sempre me atraíram outros instrumentos, o caso do piano tornou possível e abriu-me novas possibilidades de composição e de poder expressar-me num outro horizonte. 

O que é que dirias que seria equivalente, noutros campos artísticos, à tua “repentina” adopção do piano? Um fotógrafo que de repente decide expressar-se com pincéis e tintas? Um poeta que escreve palavras e a dada altura decide também cantá-las…? Um cineasta que começa a encenar peças de teatro?…

O equivalente seria por um lado ter de reaprender do zero toda uma nova maneira motora… mas penso que qualquer artista se expressa ou expressaria em qualquer disciplina se lhe dedicar tempo e seriedade, conheço muitos músicos talentosos que tocam bem ou muito bem um segundo instrumento.

Vais apresentar o teu novo álbum no mesmíssimo dia em que sai, não dando ao público o conforto de uma familiaridade que se poderia construir com sucessivas audições. Há uma explicação artística para isso? Queres confrontar as pessoas com o inesperado, descartar a facilidade do “familiar”?

Não existe uma explicação artística para este facto, tinha planeado ter o álbum pronto mais cedo, mas não me foi de todo possível dada a fragilidade do panorama, eu próprio pus em causa muitas questões que me fizeram demorar mais tempo como gravar/regravar até ficar do meu agrado, mas para mim é, sem dúvida, um incentivo que o álbum saia e fique disponível para escuta no dia do concerto da Culturgest.

É importante para ti conheceres o piano, o instrumento em concreto em que vais apresentar isto? Vais tocar no piano da Culturgest ou levas outro para aquele palco?

Esta pergunta é muito perspicaz da tua parte. De facto, vou levar um piano vertical para o concerto da Culturgest e tomo esta opção porque quero que soe o mais próximo possível do som do disco.

E, já agora, diferentes pianos, suponho eu que nunca toquei nenhum, têm diferentes personalidades, certo? Há algum, para lá do que suponho que tenhas em casa, com que te “dês” melhor?

Sem dúvida, existem pianos agradáveis de tocar e outros menos agradáveis, depois um mesmo piano soa diferente consoante o repertório e a personalidade que o toca.

Sinto uma diferença sónica neste álbum, tendo em conta o perfil sonoro de Mudra, que era muito límpido e transparente. Neste parece que deixas também a “madeira” do instrumento falar, escuta-se o som das próprias teclas ao que parece… não sei se me estou a explicar tecnicamente da forma mais correcta. Mas caso assim seja, podes falar na razão para essa mudança de perfil sonoro?

Sim, estás! Retirei o tampo principal do piano e a captação foi feita relativamente próxima do mecanismo e daí ouvir-se um misto da nota propriamente produzida pelo martelo acrescida da engrenagem associada; usei ainda um pouco da surdina que a maioria dos verticais tem e que a função será abafar o som para produzir menos volume, mas que lhe confere um timbre mais aveludado que sempre me interessou. A mudança em relação ao Mudra é, de facto, grande em termos de perfil sonoro.

Podemos agora falar um pouco sobre os teus títulos? Alguns obrigaram-me a ir ao dicionário, como o “Orognosia” que me pergunto se terá algo que ver com o teu outro projecto, Montanhas Azuis, já que designa o estudo da formação das montanhas… “Anecóica” também é uma palavra curiosa… “que não produz eco”, ensina-me o dicionário, mas esse tema é originalmente do Norberto e já falaremos dele mais adiante. Como é que estes títulos se agarram a estas “canções”?

Os títulos quase sempre surgem espontaneamente durante ou depois da parte musical estar definida ou também me cruzo com eles. No caso do título “Orognosia”, gostei da estranheza, não fazia ideia do seu significado, fui perceber qual era e pareceu-me plausível como título para um tema instrumental que podia, de facto, ser para Montanhas Azuis!

Quando, onde e como foram gravados estes temas? Alguma coisa das sessões que seja curioso relembrar?

Estes temas foram gravados pelo engenheiro de som Nuno Monteiro num estúdio, na Estrela, em Lisboa. Sei que usou microfones de fita, entre outras combinações. Gravei bastantes temas e foi um dia muito exigente e intenso.

De onde nasce esta música? Como é que estas peças se materializam nos teus dedos? A mim soam como matéria que parece jorrar de forma intuitiva, mas não sei se será esse o caso…

Sim, de certa maneira, jorram intuitivamente gosto de compor e tenho essa prática bastante enraizada na minha relação com a música com as bandas os projectos onde colaborei. Agora, a parte de se materializarem nos dedos e cérebro já implica uma dose de muito trabalho e repetição que me ocupa muito tempo até as peças estarem seguras para conseguir executá-las e expressar-me o melhor possível.

Alguma relação deste Arcos com a reclusão pandémica… Parece-me música oposta a isso, na verdade, de grandes espaços e horizontes, de esperança e bonomia, de tempos tranquilos…

Acho que a reclusão pandémica afectou e pôs em causa muitas das expectativas legítimas que qualquer um de nós possa ter tido ou ter acerca da profissão e da existência. No meu caso, passei mal durante bastante tempo, senti-me paralisado e sem vontade de produzir e até de ouvir música, comecei com ideias para o álbum bem diferentes das que apresento agora em Arcos mas também sempre trabalhei assim um pouco como trapezista ou domador dos acontecimentos.

Resolveste abordar aqui um tema de Mikado Lab e outro de Norberto Lobo: traduzir esses temas para “pianês” foi difícil? O “Anecóica” já o conhecias bem, uma vez que tocaste nele, bateria, claro, mas o piano não constava na versão original…

Sim, trouxe um tema do álbum Coração Pneumático que, na altura, tocava na guitarra, instrumento onde compunha a música dos Mikado Lab. O tema “Anecóica” do Norberto Lobo já o conhecia muito bem e ele passou-me a progressão harmónica durante um telefonema. Mas sim, foram especialmente difíceis e, no caso da “Anecóica”, estive quase para desistir mas não o fiz e ainda bem! É um tema, como muitos outros dele, que me diz muito. Obrigado, Norberto!

Algo a reportar em relação a projectos paralelos que venham a caminho?

Sim, falando em Montanhas Azuis, temos música nova para um segundo álbum e juntar-se-ão ao trio Miguel Nicolau (bateria/guitarra) e Ana Araújo (baixo/teclas).

Penso também gravar o projecto “música para piano dulcitone e harmónio” com a Joana Gama e o Tiago Sousa, que apresentámos no Teatro Maria Matos, em 2018.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos