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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/09/2021

A grande fuga da distopia.

Marco Barroso (L.U.M.E.): “Cada peça é um pretexto para se experimentar qualquer coisa diferente”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/09/2021

Este fim-de-semana, mais concretamente no sábado, dia 2 de Outubro, o Lisbon Underground Music Ensemble dá o primeiro concerto da sua nova digressão no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, iniciando desta forma a grande celebração do seu 15º aniversário.

Seguir-se-ão, para já, seis datas até meados de Novembro — e há passagens garantidas pelo Reino Unido, Lituânia e Macedónia ou, no que diz respeito a território nacional, Seixal, Coimbra e Porto. Para a digressão, a trupe é composta pelos seguintes elementos: Marco Barroso no piano, Manuel Luís Cochofel na flauta, Paulo Bernardino no clarinete soprano, João Pedro Silva no saxofone soprano, Tomás Marques no saxofone alto, Gonçalo Prazeres no saxofone tenor, Gabriela Figueiredo no saxofone barítono, Gileno Santana, João Silva e Ricardo Carvalho nos trompetes, Rúben da Luz, Eduardo Lála e Mário Vicente nos trombones, Miguel Amado no baixo elétrico e Vicky Marques na bateria.

Através do Zoom, o Rimas e Batidas tentou perceber as dinâmicas deste particular colectivo pela voz do seu director, que também é o homem do piano e compositor de serviço, num momento em que regressam à estrada para apresentar o seu terceiro álbum, que sucede a L.U.M.E. (2010) e Xabregas 10 (2016), Las Californias, com edição prevista para Outubro através da Clean Feed.



A primeira pergunta é inevitável: estás num momento de celebração de um percurso com 15 anos, é um daqueles números que já impõe um certo respeito. Que balanço é que fazes dessa década e meia? 

É um balanço bastante positivo. Eu não sou assim muito dado a celebrações e a efemérides, não gosto de festejar os meus anos…

Mas olhando para esse percurso, há certamente coisas dignas de nota.

De repente lembrei-me de uma entrevista do Buzz Osbourne dos Melvins, que dizia: “eu nunca olho para trás”. É um gajo de 500 anos a fazer discos e está sempre numa de fazer o próximo disco ou uma cena assim [risos] Não é o meu caso, que L.U.M.E. só tem três discos. Mas o balanço é positivo, porque acho que L.U.M.E., apesar de ser uma banda que não está sempre a tocar em todo o lado e a toda a hora… em grande medida porque também é um projecto muito difícil. É difícil fazer qualquer coisa acontecer, é difícil fazer um ensaio [risos]. Mas é positivo porque L.U.M.E. conseguiu sempre ter um trajecto em crescendo, de enriquecimento dentro desse trajecto. Acho que foi evoluindo, foi melhorando, apesar das mudanças do próprio grupo, pronto, de pessoas que vão saindo, enfim, também é difícil de ter um grupo tão grande. Ter uma estabilidade absoluta a esse nível [é complicado], mas eu acho que musicalmente e esteticamente é um grupo que se foi consolidando, que foi imprimindo a sua marca no meio nacional. Conseguimos dar alguns passos a nível internacional e, até mais recentemente, as coisas têm funcionado bem a esse nível. Eu acho que o balanço é extremamente positivo, dada a natureza deste projecto, vive sempre com circunstâncias muito difíceis, mas tem sempre enriquecido, como eu estava a dizer, e temos tido a sorte até de dar [grandes] passos mesmo a nível dos sítios a que vamos tocar, estes festivais que agora aparecem, vamos tocar a Londres. Vilnius. Macedónia. Festivais bons. Quando eu comecei o L.U.M.E., estava longe de imaginar [risos] que alguma coisa destas fosse acontecer e parece que acontece um bocado… é uma coisa que tem vida própria. 

Sobre o novo álbum: explicas que é uma espécie de antídoto para o mundo em que vivemos. Tratando-se de um antídoto, pergunto-te: que veneno é este que tu achas que o disco vai contrariar?

Bom, os venenos podem ser infindáveis, mas eu acho que estava um bocado sugestionado pelo facto de nós estarmos a viver uma espécie de distopia. Eu fiz o disco durante a pandemia. Começou mais cedo, mas tem um bocadinho da conotação aí, tem directamente a ver com esta questão do momento em que estávamos a viver, que parecia um momento um bocado distópico. Era uma situação totalmente fora. 

Um ano em que se falou muito de distanciamento, isolamento, quase nos fez esquecer que há outras dinâmicas e realidades, como reunir um grande número de pessoas no mesmo espaço.

Sim, é sempre um caso de gregarismo, de celebração do conjunto, há quase sempre um aspecto festivo. A esse nível e nesse sentido é um completo oposto daquilo que estávamos a viver. Mas isso que eu falava também tem a ver com um certo sentido, com um certo aspecto simbólico, que tem a ideia de Califórnias, uma ideia de fantasia, de utopia e de escapismo que era totalmente oposto a essa parte da distopia. É uma utopia, ou seja, qualquer coisa escapista em sentido positivo por oposto a uma espécie de distopia. 

Quer dizer, uso precisamente o termo Las Californias, [que] é o termo original que os primeiros ocidentais, os espanhóis [usaram]. Aquilo é uma espécie de península e eles até acharam que estavam a chegar a uma ilha. Ou seja, usei esse termo para reforçar um certo sentido de subjectividade, mistério de quem está a chegar a qualquer coisa, um novo mundo. E era como quem está a chegar este disco estar a chegar às Califórnias [risos], que vai descobrir e que vai interpretar à sua maneira, que vai construir o seu próprio sentido. 

Não é um disco conceptual, quer dizer, nenhum disco de L.UM.E. o é, no sentido que há um fio programado, que há qualquer coisa que domina todas as músicas e tudo que está ali a acontecer. Há uma ideia qualquer que vai ser vertida da música. Não é bem isso, mas eu depois acabei por dar o título de Las Californias, porque achei que era representativo de um certo sentido de fantasia que havia nas próprias peças do disco. Na realidade, até nem começou por ser uma sugestão minha, a ideia do Califórnias. Havia várias pessoas a quem eu falava do disco, que gostavam do nome das Califórnias, nem era por razão nenhuma, só gostavam do nome. Inclusivamente o Pedro Costa. Ao princípio não ligava muito, mas depois aquilo acabou por crescer em mim.

Musicalmente e esteticamente, o que é que tu achas que este disco  traz de diferente e acrescenta à obra já lançada de L.U.M.E.?

Eu acho que há coisas que são comuns, mas é um bocado difícil responder a isso [risos]. Eu acho que quem conhece o L.U.M.E. reconhecerá certos traços ali. Além de coisas óbvias, quer dizer, a mesma formação, há aspectos estéticos que têm a ver com composição e improvisação. Há sempre uma ideia de energia, de groove, aspectos rítmicos, enfim, sendo um bocadinho mais especifico. O segundo disco era um disco com menos temas, mais pesado, mais denso e mais textural. Eu acho que tive vontade de contrastar com formas um pouco mais pequenas, e isso sente-se.

Acho que houve uma vontade de trabalhar com formas um bocadinho menos extensas, apesar do aspecto extensivo formal estar sempre lá presente. Relativamente a este disco, as pessoas dizem que cada peça é um mundo diferente e cada peça tem a sua cena, mas explicar isso parece um bocado paradoxal. Eu acho que abordo sempre cada peça como se fosse uma coisa nova, porque as peças têm procedimentos diferentes. Mesmo aqui há peças que têm, do ponto de vista da linguagem, coisas diferentes, bastante diferentes. Eu acho que penso sempre cada peça como um mundo próprio e que, eventualmente, vou experimentar qualquer coisa nova. Eu não estou preocupado em ser coerente. Não estou muito preocupado com a coerência. Cada peça é um pretexto para se experimentar qualquer coisa diferente. Eu acho que depois a personalidade e a identidade que o grupo tem, e que eu tenho enquanto compositor, estará lá, naturalmente, mas eu não estou preocupado em manter essa identidade ou fazer qualquer coisa que se reconheça aqui…

Há imensas solistas, saxofonistas, trompetistas, guitarristas mulheres na cena jazz europeia e mesmo na americana. No caso do L.U.M.E, a Gabriela Figueiredo acaba por, simbolicamente, representar a escassez de instrumentistas mulheres no nosso panorama jazz. Sentes que isso é um problema? 

Eu sinto que é uma questão. Eu já tenho pensado nisso muitas vezes e estou sempre aberto, sempre que há possibilidade, e é um factor que eu levo em conta. Mas de facto é complicado encontrar mulheres e também não se pode ter mulheres à força só porque são mulheres. Tem que haver qualidade musical, tem que haver requisitos. E eu gostaria de ter uma banda menos masculina. Já pensei montes de vezes nisso, mas a banda ser masculina é um reflexo do meio que temos. Nós também temos trabalhado com outras mulheres, atenção, nós até gravámos com a Jéssica Pina e com a Mateja [Dolsak]. Nós gravámos com duas mulheres, que não puderam vir para a estrada. Mas são questões que passam… tem a ver com tradição, algo muito difícil de mudar. 

Não terá a ver também com o nosso sistema de ensino?

Eu acho que sim, naturalmente quando houver mais mulheres a aprender instrumentos de sopro, principalmente, isso mudará. Se fores para o mundo clássico já não é tanto assim. Há muito mais violinistas. Numa orquestra clássica vês uma percentagem muito maior de mulheres. O jazz é um meio muita masculino. É um meio complicado nesse aspecto. 

É uma realidade. 

É uma questão de preconceito, que os pais acham que é mais bonito ir aprender violino do que ir aprender trompete e depois, lá está, vais para o conservatório ou para uma escola de música… geralmente os instrumentos que eu uso, os saxofones, trompetes, trombones, não têm tanta tradição de ter muita gente a querer aprender aquilo. Toda a gente vai para o piano ou violino. Enfim, é uma tradição muito masculina. Tinha que se fazer campanhas. Coisas de quotas. 

Estás a fazer a tua parte, não é? Levando uma pessoa como a Gabriela para cima do palco. Estás a mostrar que é possível e que há espaço. 

Eu tento. Isto é uma questão delicada, porque eu próprio estou aqui… Eu estou a falar abertamente e assumir contigo, porque, imagina, é um meio muito masculino… Não é uma questão nada simples de… eu queria ter uma banda mais feminina. Quando eu comecei, não era uma questão de que se falava muito. Era toda masculina a banda. Mas depois começou a ser uma questão. Eu comecei a ficar alertado e tento evitar. Mas não é fácil. 

Falemos de outras coisas que também não são fáceis. Primeiro: manter uma banda desta dimensão durante tanto tempo, mesmo como gente a entrar e a sair, já é, em si, uma vitória, mas organizar uma digressão com um projecto desta dimensão é algo muito complexo, certo? 

É. Se dependesse de mim, estávamos feitos [risos] porque a minha parte é mais organizar a parte musical. Eu componho e depois ando atrás do pessoal para os ensaios e isso, que já dá água pela barba, mas a minha função é essa, basicamente, compor e depois passar essa visão aos músicos. De resto, todo o protagonismo que eu puder não ter [risos] agradeço que não [o tenha].

Como é que os públicos internacionais têm reagido ao L.U.M.E.?

Sempre muito bem. Sempre que fomos tocar lá fora tivemos reações mesmo positivas. Acho que é um projeto que consegue ter a sua particularidade estética e depois também vem de um país que é um bocado periférico. Sendo um grupo com estas características, não é uma coisa comum aparecer lá fora um projecto de Portugal assim deste tamanho, a fazer música original, com uma estética particular. Consegue chegar lá e se calhar não lhes soa a uma imitação qualquer de qualquer coisa. Acho que a esse nível conseguimos sempre marcar pontos. As reacções têm sido bastante positivas e também por isso é que vai havendo algum feedback disso. Mesmo quando tivemos cá naquela feira, a European Jazz Conference, tocámos para muitos estrangeiros e surgiram coisas boas daí. 

Um projecto destes só é viável com uma série de apoios institucionais. Seria difícil um grupo destes existir só com o mercado nacional, não? 

Seria impossível, basicamente. Quer dizer, na realidade sobreviveu durante 10 anos, nós não tivemos subsídios. Quando fiz o L.U.M.E nem tal coisa passava pela cabeça. Por falta de experiência, também, não tínhamos um agente na altura, não havia ninguém que me desse algumas dicas esse nível. As ambições também eram outras. Mas as coisas foram-se proporcionando também em função dos convites que vieram lá de fora e de ser depois imperativo teres apoios. Aí é que as coisas também se foram impondo um bocado, mas, pronto, felizmente, temos alguns apoios, não o ideal para estas saídas que estamos a fazer. É claro que ainda podia ser melhor, obviamente, se tivéssemos um país qualquer, escandinavo ou qualquer coisa do género. Mas eu não me posso queixar. O que L.U.M.E. tem feito, e contextualizando no caso português, é bastante bom. 


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