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Fotografia: Hugo Sales
Publicado a: 12/05/2021

Por onde começar?

Marcelo dos Reis: “Sinto-me um improvisador altruísta”

Fotografia: Hugo Sales
Publicado a: 12/05/2021

Enérgico, divertido e irreverente, Marcelo dos Reis é uma mente criativa. Em tom de brincadeira, confessou que se tivesse nascido no presente, provavelmente teria sido diagnosticado com hiperactividade, tal é a profusão de ideias que se lhe assomam, apesar da sua demonstrada capacidade de concentração. Voz eminente no campo da improvisação livre, Marcelo compõe regularmente música para cinema e teatro; dirige e ensina numa academia de música; e é presença assídua na organização de eventos e iniciativas de carácter musical, tais como, por exemplo, a série de concertos Double Bill.

Músico prolífico e de uma actividade criativa contagiante, só em 2021 já lançou três registos em que se pode ser ler o seu nome na capa. São eles o homónimo de estreia dos Light Machina (Multikulti Project/Spontaneous Music Tribune Series); The Fall dos Fail Better! e Turquoise Dream, ambos editados pela etiqueta Jazz ao Centro Clube Records. Apesar desta inaudita produção discográfica para um ano que ainda se encontra a meio, Marcelo dos Reis admite que muitos mais estão na calha, facto que fará de 2021 um “ano cheio de edições e sempre a trabalhar.”

À data da conversa aqui transcrita, o guitarrista e compositor encontrava-se na Casa Varela, em Pombal, a realizar uma residência artística. O motivo, revelou, prendia-se à imersão voluntária na composição e gravação de um disco a solo que se encontrava a preparar, de título Glaciar, inspirado por uma experiência estética nos Alpes suíços que apelidou de “surreal”.

Aceitámos igualmente o carácter livre da improvisação para, desprendidamente, falar sobre esta, discutindo, assim, várias idiossincrasias que lhe estão associadas. Foi também abordado, numa perspectiva longitudinal, o percurso musical do guitarrista e os vários grupos com que está envolvido.

Além desses temas, tópico incontornável foi o da cidade de Coimbra, localidade onde o músico lisboeta reside e exerce a sua actividade profissional há mais de uma década, e a partir da qual dirige, juntamente com José Miguel Pereira, a editora discográfica Cipsela Records, da qual é fundador e curador. Foram revelados pormenores dos próximos lançamentos da editora, assim como partilhadas histórias passadas envolvendo actividades que despontaram a partir do seio da organização do Jazz ao Centro.

Uma entrevista essencial para, de forma relaxada, submergir nos meandros da improvisação e perceber as dinâmicas dos músicos que nela trabalham.



Encontras-te neste momento numa residência artística. Qual o programa e objectivos do trabalho que te encontras a realizar?

Eu já tinha planeado este ano fazer um disco a solo. Na verdade, estava a pensar acabá-lo nesta fase do confinamento e gravá-lo no estúdio da Academia de Música que eu também coordeno. Só que, entretanto, já havia conversações há algum tempo para fazer uma residência artística aqui na Casa Varela, em Pombal, e em conversas com o Filipe Eusébio, que é o programador da Casa, pareceu-nos ser uma boa altura para fazer uma espécie de residência em desconfinamento. Portanto, já que ia estar aqui uma semana mais fechado sobre mim, a gravar, e a pensar no que estou a criar… e ainda por cima fora de casa! Nesta fase o que também nos inspira é estar a criar fora de casa. Só por aí, achei que era uma boa altura para gravar este disco a solo. Venho com as ideias já quase todas definidas, apesar de saber que ainda faltam muitas outras, porque é um disco que, ao contrário de muitas coisas que tenho feito, vai ter muita composição, ou seja, vai ser um disco com muito menos improvisação. Vai ser composto por material que fui juntando há algum tempo. Tenho a ideia de lhe chamar Glaciar, até porque é uma música com espaço, reverb e na qual vou usar efeitos. Aliás, vou fazer uma cena que normalmente nunca faço…. normalmente ligo a guitarra ao amplificador sem nada ou toco guitarra acústica, e aqui vou fazer uma coisa com efeitos, psicadélica até.

Em 2017, estive numa residência artística nos Alpes, na Suíça, que fiz com o Luís Vicente durante três semanas. E fomos tocar a Zurique, alugámos um carro e fizemos uma viagem brutal, lindíssima, assim super bucólica, pelos glaciares. Estava um dia incrível de sol. No dia seguinte tínhamos um concerto perto de onde estávamos a fazer a residência, ou seja, tínhamos de regressar, e estamos a falar de uma viagem de cerca de 300 km que nós fizemos de volta durante a noite. Claro que ninguém faz aquela viagem à noite. Imagina o que é passares pelos glaciares daquela forma. É super perigoso e, ainda por cima, estava a nevar. Ao mesmo tempo foi muito inspirador. Estava lua cheia e passámos por glaciares com extensões brutais. Acho que essa foi a imagem natural mais bonita que vi na vida. Foi mesmo surreal. Ninguém presencia aquilo daquela forma porque só dois “doidinhos da cabeça” é que andam por ali às quatro horas da manhã. Lembro-me de ir a conduzir mesmo devagar, a cerca de 5 km/h, e passavam veados ao lado do carro. Nunca mais me esqueci dessa experiência, e isto já foi em 2017. Essa ideia de fazer um disco inspirado por essa viagem foi maturando desde aí…

Houve ali uma fase, pelo menos até 2017, em que estava a editar muito. Por causa disso, apeteceu-me dar um bocado de espaço à cabeça, continuar a fazer concertos e pensar menos em editar discos. Em 2018 acho que só lancei dois discos, e em 2019 e 2020 só lancei um disco em cada ano. No ano passado, optei por conter os lançamentos e acabei por lançar apenas um trabalho. Depois dei por mim com imenso material acumulado que achava bom. Acabei por perceber que este iria ser um ano cheio de edições e sempre a trabalhar, o que é fixe…

 Sim, sem dúvida, até porque quando as salas de concertos abrirem vai haver trabalho a “dobrar”.

Espero que sim. Sabes… até tem dado para fazer algumas coisas. Quando isto começou não estava muito numa de fazer cenas online, mas depois foram acontecendo eventos. Apesar de tudo, o último trimestre, entre Setembro e Dezembro [de 2020], deu para fazer alguns bons concertos com público, etc…

Já que referiste que tens começado a editar menos, reparei que alguns dos teus últimos discos – por exemplo, The Fall e Turquoise Dream – têm sido gravados ao vivo. Gostas mais da experiência de gravar a tocar ao vivo ou da experiência de ir a estúdio?

Honestamente, eu acho que a música improvisada é mais real ao vivo. Eu acho que é uma música que vive do ambiente ao vivo. Em estúdio também é fixe, podes ter outro tipo de abordagem, mas acho que a música fica mais “viva” sendo tocada num formato de live music. A tocar ao vivo, deixas de te preocupar tanto com teres aquela alta fidelidade sonora e preocupas-te mais com aquilo que a música transmite. Por isso, honestamente, prefiro muito mais editar gravações ao vivo, é muito mais a minha cena. Em improvisação, claro, porque, por exemplo, aquilo que eu estou a fazer aqui [na Casa Varela], prefiro muito mais em estúdio. É um trabalho mais detalhado, envolve composição… quando é trabalho de composição prefiro fazer em estúdio, para poder trabalhar com stereo, etc. Há alguns discos que tenho que são encontros que aconteceram em concertos, mas, mesmo projectos que tenho mais definidos, prefiro fazer ao vivo. Acho que a música é melhor e o pessoal sente-se mais inspirado.

Em relação ao projecto que te encontras a gravar, podes revelar mais alguns pormenores?

Como já referi, o disco vai-se chamar Glaciar, a não ser que, de repente, chegue ao resultado final e pense “não te concentraste tanto e isto aqui não parece uma música de gelo” [risos]. E este disco também vai marcar uma transição na minha independência na edição de trabalhos mais pessoais, apesar de esse não ser um projecto assim tão importante. Ao princípio tinha muita aquela ideia em andar à procura das editoras. Há editoras que eu gosto e respeito muito como, por exemplo, a NoBusiness, Clean Feed ou JACC Records, que são editoras com quem tenho trabalhado e nas quais espero continuar a editar. Mas, cada vez mais, quero depender apenas de mim para fazer o que quero com o meu trabalho, em função da minha agenda. Basicamente tenho preferido tornar-me um bocado mais independente na forma como faço as minhas coisas. Assim, para não misturar isto com o trabalho da Cipsela, estou a pensar criar uma espécie de editora ou sub-editora para lançar os meus discos a solo, porque, dentro da minha cabeça, tenho montes de discos a solo para fazer. Quero ganhar independência total para ter total liberdade. Além disso, quero que a Cipsela seja uma editora mais transversal — é minha, mas não quero seja uma editora para lançar apenas os meus trabalhos e, por isso, acho que faz sentido criar uma cena nova.

Antes de abordarmos o trabalho da Cipsela, gostava de discutir mais algumas ideias sobre a improvisação livre. Na forma como te referiste à improvisação, assumiste, de certa forma, que acaba por ser um trabalho que vive muito da dinâmica de grupo. Há uns tempos falava com uma saxofonista sobre o que é mais importante fazer numa sessão de grupo de improvisação livre, e a resposta dela foi “não tocar”, no sentido em que o mais importante é parar e ouvir o que os restantes elementos estão a fazer. Concordas com esta visão da improvisação? Ou partilhas a visão do William Parker que acha um desperdício de energia tentar dissecar o significado de um acto tão livre e espontâneo?

Concordo tanto com a saxofonista como com o William Parker [risos]. Eu sinto que sou uma pessoa altruísta e que a improvisar também sou assim. Estou completamente desligado da cena de mostrar que consigo fazer alto solo ou outra coisa qualquer. Prefiro sempre tocar em prole do grupo, ou seja, servir a música e não propriamente pensar que a música é que me vai servir a mim para eu fazer alta cena na guitarra. Se estiver a tocar sozinho, faço o que eu quiser e bem me apetecer, mas a partir do momento em que estou a tocar com pessoas… gosto de me dar bem com as pessoas quer na vida quer a tocar. Mas há muita gente que só pensa naquilo que quer disparar para fora.

Sim, concordo… acho que a escuta é o mais essencial. Sabes, sempre fui assim desde que toco. E, obviamente, não comecei logo a tocar com improvisação. Comecei a tocar com bandas rock, etc., mas essa foi sempre a minha óptica. À medida que o tempo passa e começas a ter mais experiências, precisas de alguém que te valide determinados pensamentos. E acho que isso foi validado em mim – isto é, que devia ser assim que devia funcionar – por volta de 2011.

Na altura, tivemos um encontro com o pianista americano Burton Greene e ele também tinha essa lógica. Até gravámos um disco com ele. Depois, em 2012, houve um encontro muito grande com o Evan Parker – por acaso, olha, uma novidade… essa cena vai sair este ano em disco –, que também defendia sempre essa óptica da escuta e de ouvirmos os outros. Isso veio confirmar aquilo que eu já gostava de fazer, mas quando és mais miúdo tens sempre aquela emergência de mostrar que sabes tocar. Não é que eu seja velho [risos], mas chega uma altura em que ganhas alguma experiência. Se formos por aí, sinto-me um improvisador altruísta – não estou propriamente preocupado em fazer mil solos, mas, sim, em servir a música, que é de todos.

O teu instrumento principal foi sempre a guitarra? Como é que se despoletou o teu interesse pela música no geral?

Isto é um percurso um bocado grande. Pensando bem, quando era miúdo, se tivesse tido acompanhamento para ter uma formação musical como hoje em dia, felizmente, é feito com a malta mais nova, possivelmente tinha sido baterista. Era claramente o meu instrumento natural. Só que, entretanto, começas a gostar de música, vês que o pessoal que canta também toca guitarra e ficas do género — “isto é fixe”. Eu também sempre gostei de cantar e apercebi-me que tinha jeito para o fazer. Estudei canto e as primeira bandas em que toquei também cantava, sendo que, ao mesmo tempo, comecei a tocar guitarra. E, claro, isto foi um processo… aos 15 anos já tocava ao vivo! [Risos]



Eras muito novo ainda…

Sim, era muito novinho. Era brutal, nós tínhamos todos a mesma idade e depois era um filme porque nós não tínhamos carta. Ir para os concertos era um filme! Às vezes era o meu pai que nos levava. Estamos a falar há 21 anos — há 21 anos o meu pai era bué novo! [risos] O meu pai curtia vir connosco e acompanhar-nos. Ou então era um amigo ou amiga mais velha que tinha carta e que nos levava. Tempos fixes!

Mais do que na esfera do jazz, poder-se-á dizer que até tens gravado mais na área da improvisação livre. Como é que se deu essa transição do rock para a improvisação?

Como é que eu fui parar à música improvisada? Isso é uma daquelas questões fixes de pensar porque é longa. Sabes que, mesmo quando era puto e comecei a tocar guitarra, os meus amigos curtiam muito mais os guitar heros tipo o Satriani, Steve Vai, entre outros. Eu sempre gostei mais do rock psicadélico do Hendrix, dos Led Zeppelin, e até dos Sonic Youth, que tinham aquelas partes de guitarra supersónicas. Essas partes eram as que mais me fascinavam na música, não era propriamente o facto daquele guitarrista conseguir fazer um mega solo.

Sensivelmente em 2004, comecei a gostar já mais de jazz por influência de amigos, e também com a curiosidade de tentar perceber o que é que era aquilo. Pensava: “então, mas como é que estes gajos tocam tanto?” [Risos] Por essa altura estudei jazz em Lisboa e comecei a ouvir outras coisas. Depois de começares a ouvir jazz, inevitavelmente vais parar logo àquela fase final do Coltrane e apercebes-te que ele já estava a fazer cenas muito fora. E claro que te questionas, “mas o que é isto?” Então aí vais parar ao Eric Dolphy, Ornette Coleman, e por aí fora. Houve ali uma fase, enquanto andava na escola de jazz, que o pessoal não ouvia tanto isso. Atenção! Eu adoro jazz de quase todos os quadrantes. Além disso, havia também ali algumas lacunas… o pessoal tinha medo de tocar – o que é compreensível – porque ainda não sabiam as coisas como deve ser. E eu e mais algumas pessoas vínhamos de um ambiente em que estávamos habituados a tocar na garagem, a malhar e a fazer jams durantea noite toda. Ali na escola não acontecia tanto esse intercâmbio.

Em 2008, fui para Coimbra e pensei: “tenho que tocar com malta, qual é que é a cena aqui em Coimbra?” Foi aí que me envolvi com o Jazz ao Centro Clube. Houve ali um ano que também estudei guitarra com um professor que foi muito fixe para mim, o Serafim Lopes, que era óptimo guitarrista. Eu acho que ele nem sabe da importância que pode ter tido para mim, mas foi muito importante porque me motivou a criar a minha cena. Quando me envolvi com o Jazz ao Centro, para mim foi brutal. Eu já era músico, já tocava e comecei a tocar com montes de pessoal ligado ao free jazz e à improvisação e pensei: “eu quero é fazer esta cena, eu quero é tocar assim” [Risos] Não é que não goste de tocar música composta; aliás, adoro, até porque não me sinto totalmente completo apenas a tocar música improvisada, e às vezes compenso esse lado com o meu trabalho a solo, onde componho mais, etc. Depois, claro, a cena do Jazz ao Centro foi um boom porque conheci pessoas de todo o mundo… foi brutal! E estas coisas estão todas interligadas. Na altura, o Jazz ao Centro estava super envolvido com a Clean Feed e eu ia trabalhar muitas vezes para o Trem Azul, no Cais do Sodré. É malta com quem sempre estive ligado e aí conheci imensos músicos com quem comecei a tocar. Obviamente que depois comecei a produzir e pensei: “bem, vou fazer a minha cena”.

Já que falaste de Coimbra, gostava de ter a tua visão sobre a cidade. Para uma localidade de dimensão média, Coimbra sempre teve uma expressão muito vincada no panorama da música nacional, a fazer jus à sua grandeza histórica. Particularmente ao longo das últimas décadas, transitou de cidade rock, onde havia muito rockabilly e psychobilly à mistura…

E isso continua!

 … para ser também cidade do jazz, sendo que o Festival Jazz ao Centro e os Encontros Internacionais de Jazz são marcos dessa transição. Como alguém que vivenciou pelo menos parte dessa evolução histórica, consegues fazer uma retrospectiva dos momentos-chave que a definiram e falar um pouco acerca dos principais intervenientes nesse movimento do jazz e da música improvisada conimbricense?

O meu primeiro contacto com Coimbra foi por volta de 2004, ano em que passei lá uns meses a viver. Na altura, tinha acabado o secundário, que terminei tarde porque tirei um curso profissional de gestão, assim uma cena muita fora. Os meus pais na altura disseram-me: “espera aí, tu queres ser músico, mas… pensa lá um bocadinho na tua cena!” [Risos] Lá na escola onde eu estava havia uma candidatura para ir trabalhar para uma loja de discos, a Valentim de Carvalho.

Na baixa, pois claro, foi lá que comprei os meus primeiros discos….

Sim, e lá foi o Marcelo trabalhar para a Valentim de Carvalho. Essa tinha sido a fase em que Coimbra tinha sido a Capital Europeia da Cultura e tinha acontecido o Festival do Jazz ao Centro. Eu acho que essa foi a primeira vez que ouvi falar, por exemplo, do William Parker ou do Jemeel Moondoc. O cartaz de 2003 era brutal! E também é nessa altura que o Jazz ao Centro é fundado. Acho que o Jazz ao Centro é super importante, inclusive no desenvolvimento institucional com a cidade, porque isso era uma coisa que não acontecia, não havia nada institucionalizado. O Quebra também sempre teve uma ligação ao jazz, mas era uma coisa mais de clube. Só mais recentemente, com o Quebra Jazz nas escadas do Quebra Costas, é que a coisa ficou mais institucionalizada com o município — o que é excelente, porque a cidade está a acabar por, finalmente, se desenvolver. Tem sido um trabalho longo, mas tens o exemplo da Câmara ter adquirido o Salão Brazil, que passou a ser uma estrutura municipal e pública. A Câmara sempre foi um parceiro muito importante do Jazz ao Centro.

Para além da importância no desenvolvimento da cidade, acho que o Jazz ao Centro teve um papel muito importante também na educação. Imagina o que era as pessoas pensarem: “um festival de jazz, super fixe!”. Depois chegavam ao TAGV e levavam com o David S. Ware a soprar no saxofone [risos]. Continua ainda a haver muita aquela lógica de que o jazz é música que não questiona, que dá o ambiente que as pessoas querem num clube. Mas se as pessoas ouvirem Charlie Parker com atenção, aquilo é hiper complexo, apesar da tendência de dizer que aquilo é que é o som do jazz.

Sem dúvida, e eu partilho exactamente dessa experiência com a cidade. Eu já ouvia jazz em casa, mas quando comecei realmente a interessar-me por descobrir outras sonoridades jazzísticas foi através do Festival Jazz ao Centro, especialmente depois de assistir aos concertos de Peter Evans e Mostly Other People Do The Killing.

Nessa altura eu estava muito envolvido com o Jazz ao Centro, era vice-presidente. É muito fixe estares a falar do concerto de Mostly Other People Do The Killing, em 2010. Nunca mais me esqueço de chegar ao Salão Brazil e pensar que a sala parecia que estava parada no tempo. A banda estava a partir a loiça toda, e toda a gente – até as pessoas do bar – estava num silêncio total, espantada e a pensar: “o que é que é isto?”. Sim, gostei muito desses concertos, foram altamente [risos].



E falando dessa tal relação que o jazz trouxe com a parte mais institucional da cidade, realmente Coimbra tem permitido aos músicos o acesso a espaços de um valor patrimonial inestimável, tais como o Convento de São Francisco, o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, ou até mesmo os mais modernos como o Salão Brazil e o TAGV. Qual é, destes espaços, o mais especial em termos de acústica?

Há uma sala na qual eu gostava de gravar um disco a solo com guitarra acústica, que é a Igreja do Museu Nacional Machado de Castro. Nos Encontros Internacionais de Jazz que aconteceram em Outubro [de 2020], o Luís Vicente tocou lá a solo, trompete, e tem um reverb fixe. Mas também adorei tocar no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. Além disso, o Convento de Santa Clara-a-Nova tem um reverb incrível, para aí de 20 segundos, também gostava de tocar lá, mas para fazer uma espécie de instalação. Também gostei muito de tocar na Igreja do Convento de São Francisco, mas, lá está, esse espaço já tem uma preparação totalmente diferente. O Convento de São Francisco é uma estrutura super bem equipada, super moderna, possivelmente até mais bem equipada do que o Centro Cultural de Belém. Aquilo é surreal…

A Cipsela Records, da qual és fundador e curador juntamente com o José Miguel Pereira, tem já um catálogo com nove edições, a grande maioria envolvendo artistas internacionais. Como é que surgiu a Cipsela e como é gerir uma editora que, estando sediada em Coimbra, se encontra completamente virada para o mundo?

A Cipsela foi logo das primeiras ideias que tivemos em 2009 quando fui para Coimbra. Na altura tínhamos um colectivo, o AJM Collective, do qual és capaz de apanhar umas gravações a tocarmos no TAGV. Nós fazíamos gigs de música improvisada em todos os sítios. Havia malta que gozava connosco e dizia que nós pensávamos que Coimbra era Nova Iorque. Trazíamos muita malta de todo o mundo para aquele ciclo.

Entretanto começámos a receber esta malta toda e pensámos: “bem, já que esta gente toda vem, se calhar podíamos fazer uma editora”. A ideia foi maturando, e o primeiro motor para isso acontecer arrancou em 2009. O Joe McPhee veio tocar aos Encontros de Jazz com um quarteto — ele, Peter Brötzmann, Kent Kessler e Michael Zerang –, para além de também ter tocado a solo. Esse concerto a solo não era para ser gravado, mas eu passei um fim-de-semana altamente com o Joe e disse-lhe, “então vais fazer um solo e não vamos gravar isso?”. E ele disse-me, “epá, era fixe! Ainda por cima está cá o Niklaus”. O Niklaus Troxler é o programador do Willisaw Jazz Festival e, juntamente com o pessoal da Hatology, foi um dos principais propulsores da cena do Joe na Europa. Trazia-o sempre para cá… estamos a falar da década de 60 e 70. E assim foi! Fiquei com aquela gravação para mim. Era a única pessoa no mundo que tinha aquilo. Chegou 2014 e decidimos que estava na altura de fazermos a editora porque havia muita coisa para sair. Tínhamos a gravação do Joe e a do Carlos Zíngaro também a solo.

Mas vê lá! Isto ainda demorou quatro anos e tal até se materializar. Eu meto-me a pensar em malta da minha geração, quando começámos a improvisar, nós não lançávamos logo discos. Estivemos quatro ou cinco anos a tocar ao vivo e a improvisar antes de nos preocuparmos em lançar alguma coisa. Houve uma fase de aprendizagem e partilha muito grande e de partilha com vários músicos. Acho que isso foi essencial!

Sim, até porque medir o output de um músico pelo número de discos é uma métrica um bocado insignificante.

Claro, até porque a música improvisada é muito tramada de se avaliar. Por norma, em quase todos os estilos musicais, há uma base teórica, escolas e universidades que te validam uma determina forma de tocar. Consegues perceber que se tocares uma determinada escala ou arpejo de uma certa forma, isso vai resultar e é valido para fazer música. Como é que vais dizer a alguém que bater com um pau numa guitarra é uma coisa válida? É complicado… [risos]

Precisamente, existe uma linguagem própria que se tem de desenvolver com o tempo… Há alguma edição da Cipsela que esteja a ser preparada?

Vai sair o número 10 da Cipsela, que será uma edição do Simão Costa de piano preparado. Vai ser uma cena brutal! Este décimo número vai ser uma edição de autor, uma peça de origami. É um projecto que o Simão tem vindo a desenvolver já há algum e tempo e está mesmo na fase final. Contamos lançar o mais rapidamente possível. Vai ser um disco muito bonito, especial. Queremos promovê-lo da melhor maneira possível.

Temos também uma gravação na gaveta do Fred Frith, a solo, que ele fez no Salão Brazil em 2017 ou 2018. Mas, entretanto, a coisa tem ficado um bocado parada, tenho de lhe escrever. Vamos lançar também um duo meu, com o Miguel Falcão, de guitarra e contrabaixo. Lá está, este é um disco em que podia ir à procura de editoras, mas que, para ser dentro das nossas agendas, será lançado — e muito bem — pela bela Cipsela.

Num plano mais pessoal, vai ser um ano atípico, com imensos lançamentos. Tinha planeado oito discos, mas há dois ensembles grandes que também vão sair. Então, chego ao final do ano e participo em 10 discos. É uma cena que acho que não vou querer repetir, mas ao menos fica despachado. A música sendo boa, como acho que é, fica melhor editada do que perdida nalgum disco externo. [risos].

Quais são os grupos em que participais que se encontram activos?

São alguns… sabes que a música improvisada por vezes sofre um bocado de falta de condições, e cheguei a uma fase que me fartei de tocar em sítios que não nos dão condições. Como em qualquer trabalho, claro. Na tua área não vais fazer um trabalho sem condições. Cansei-me um bocado disso. Então, os grupos, mesmo existindo, passam algum tempo sem tocar, e depois num certo dia voltam a tocar. Ao menos, quando vamos tocar, que toquemos com condições, até porque, no meu ponto de vista, não faz sentido andar a ensaiar improvisação livre, pois assim deixaria de a ser…

Há muitos grupos activos. Com os Frame Trio estamos a planear fazer uma tour este ano para gravar. Os FAIL BETTER! também lançaram um disco este ano. Lá está, os FAIL BETTER! é daqueles casos em que também não tocamos assim tão regularmente, mas no ano passado tocámos, por exemplo, no Festival de Jazz em Serralves.

Os FAIL BETTER! já tiveram várias formações, certo?

Sim. Inicialmente FAIL BETTER! era com o João Guimarães, no saxofone alto, e com o João Pais Filipe, na bateria. Mas depois a malta, por causa de objectivos pessoais, segue caminhos diferentes. Lembro-me que quando o disco na NoBusiness estava para sair, eles estavam muito indecisos em relação àquilo que devia sair. Pronto, são timings… claro que somos grandes amigos hoje em dia, mas são timings.

Além disso, sempre toquei com o Marco Franco e nunca tinha feito nenhum projecto com ele. Tínhamos já tocado em vários grupos, assim meio ad hoc. FAIL BETTER! foi uma forma de fazermos algo que já queríamos fazer há algum tempo, isto é, estarmos juntos a tocar, porque, para além de sermos muito amigos, também adoramos tocar um com o outro.

Participo também nos In Layers e nos Chamber 4, que vão lançar o terceiro disco — Dawn to Dusk — este ano. Chamber 4 também é um grupo que faz dois ou três concertos por ano, mas são bons concertos. É uma banda super especial… Nós os quatro também temos a agenda sempre super ocupada. Tocámos nos Encontros de Jazz de Coimbra no ano passado. Há dois anos em Saalfelden, nas montanhas da Áustria. E também tocámos num festival na Bélgica por essa mesma altura. E, pronto, vamos gerindo as nossas agendas assim…

E, claro, também gosto muito de tocar a solo. Era como te estava a dizer há bocado, tenho sempre montes de ideias para fazer. Acho que nunca acabam! Trabalho em duo com a Eve Risser… este ano vamos tocar ao Konfrontatioen, na Áustria, um concerto que já devia ter acontecido o ano passado. Gostamos muito de tocar um com o outro — é muito fixe! Planeamos fazer muitas mais coisas em conjunto.

Tantas coisas… Gosto que os grupos existam e que existam alturas próprias em que eles toquem. Nesta área do jazz e da música improvisada, toda a gente tem sempre tantos grupos, que é altamente ser assim, fazer uma tour durante uma semana e depois ficar um ano sem tocar com esse mesmo grupo. Não tem que ser uma coisa obsessiva, mas, sim, especial…



Claro, o importante é desfrutar da viagem…

Há várias visões e todas são válidas. Podia andar sempre à procura de tocar com os nomes mais conceituados, mas essa não é muito a minha cena. Gosto de tocar com pessoas que fazem música que eu gosto de ouvir e que ache que irão acrescentar à música que eu faço, e não propriamente de andar à procura dos dinossauros só porque eles têm aquele nome. Prefiro construir a minha cena naturalmente e não andar muito preocupado com isso. E o engraçado é que de forma natural já tive a oportunidade de tocar com imensos músicos que admiro [risos].

Lembrei-me agora de outro grupo em que participo, os Open Field, que sou eu, o João Camões e o José Miguel Pereira. Nos últimos anos temos andado um bocado parados, mas que planeamos coisas para o último trimestre deste ano.

E o que aconteceu com a série de concertos Double Bill? Queres falar um pouco da história desta iniciativa?

O Double Bill foi sofrendo muitas transformações ao longo dos anos. Em determinada fase fazia sentido esse trabalho com os AJM Collective. No início, fazíamos, pelo menos, um concerto todos os meses…

Quem eram as pessoas envolvidas?

Era eu, o José Miguel Pereira, a Katia Sá, que hoje em dia faz as capas da Cipsela e que é uma irmã, um saxofonista da Madeira, o Manuel Ara Gouveia, que hoje em dia já só toca em casa porque dedicou-se ao que estudou na universidade, o João Apolinário, baterista e percussionista, que também seguiu o seu caminho, e o João Camões, que toca viola d’arco. Este era o núcleo da iniciativa.

Foi uma série que foi sofrendo algumas mutações. Os últimos concertos que fizemos foram em 2015 ou 2016, com a Mette Rasmussen e o Nate Wooley. Continuámos a organizar concertos com outras designações, mas, entretanto, começámos a criar outras coisas. A Cipsela transformou-se numa associação cultural e começou a fazer mais sentido organizar as coisas por aí. Ou seja, o nome Double Bill acabou por se desvanecer um pouco…

Mais recentemente, começámos a fazer um outro festival, o Here & Now, onde foi tocar o Théo Ceccaldi, a Eve Risser, o projecto In Igma que foi gravado nesse âmbito para Clean Feed.

Pensava que o In Igma tinha sido gravado em Serralves…

Sim, também estiveram no Jazz no Parque, festival em que os FAIL BETTER! também tocaram, mas a gravação foi feita em Coimbra no Salão Brazil. O Here & Now começou em 2019. Houve concertos no Salão Brazil, Machado de Castro e no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. O festival era para ter ainda mais potência em 2020, mas aconteceu a pandemia e não deu para continuar.

És igualmente coordenador e docente na Academia de Música do Centro Norton de Matos. Ensinas aos teus alunos, principalmente os que se encontram num estádio de aprendizagem mais avançado, algumas das técnicas não-convencionais que usas na feitura da tua música ou tens uma abordagem mais tradicional ao ensino?

Depende sempre até onde o aluno quer ir. Em fases iniciais e até intermédias, sou um professor com um método clássico que envolve leitura de partituras, ritmo, formação musical, harmonia, e improvisação clássica. Basicamente, tudo normal… Também faço trabalhos mais informais com os miúdos e oficinas de improvisação. Mas isso já são trabalhos mais específicos. No dia-a-dia de aulas depende muito do trabalho que o aluno esteja a desenvolver. Eu acredito que o ensino da música, particularmente nas academias — já que não estás num conservatório, universidade ou escola de jazz –, deve ser adaptado às crianças para não as “assustares” logo ao início. Não devemos assustar os miúdos com música. Há ainda aquela ideia, e por vezes até dos pais das crianças, que os filhos vêm aprender música e que vão levar reguadas ou que irão ser o fetiche deles a verem os seus filhos a interpretar o que eles imaginam. Eu acho que não deve ser, de todo, por aí. A minha teoria é que é preciso exigir organização e metodologia, mas os miúdos têm de se sentir bem, ir com pica e energia. Todas as semanas têm de curtir ir ter aula de guitarra ou de qualquer outro instrumento.

Também tenho muitas lutas. Hoje em dia já sinto confronto geracional em termos de gostos. Às vezes pensas: “o que é que é isto que eles estão a ouvir?”. Nesses momentos, tento explicar que há coisas mais fixes para tocar. Em vez de tocarmos uma cena pop com três acordes, podemos pegar numa outra música pop mais interessante musicalmente. Acima de tudo, tento sempre fazer com que eles estejam bem.

Há também pessoal que vem para aprender jazz. E em relação ao jazz, também tenho de ser sincero, só ensino até determina altura, porque também não investi o tempo necessário para ser um pedagogo de jazz. Para ser um pedagogo de jazz, tinha de me dedicar completamente à pedagogia, e, nem tenho tempo para isso, nem é a minha cena. Sou professor de música e coordenador da Academia — o que ocupa parte do meu tempo –, mas, acima de tudo, sou músico e artista. Sinto-me um criador, não um pedagogo oficial que dedicou 15 ou mais anos da sua vida a saber tudo e mais alguma coisa para poder transmitir esse conhecimento. Consigo transmitir conhecimento até um determinado nível. Quando isso é ultrapassado, eu próprio até o posso saber fazer, mas não o consigo transmitir teoricamente, e aí passo a pasta a pessoal mais preparado.

Já referiste vários trabalhos em que participas e que serão lançados este ano. Além desses, há mais algum projecto que gostarias de destacar?

Para além de todas as edições que referi e que já vão dar imenso trabalho [risos], há outros processos criativos. Eu acho que as quarentenas vieram trazer coisas de que me lembrava, mas que já não experienciava há muito tempo. A quarentena trouxe-me aquele feeling de chegar ao Verão e ter vontade de tocar bué. Então voltei a ficar super viciado em material de música, o que é terrível. Voltei a curtir bué material, a comprar e a vender guitarras.

 Pois! Eu reparei que compraste uma Gibson e que na tua colecção também tens Telecasters Stratocasters. Qual é a tua guitarra favorita?

[Risos] Ouve! Eu faço isto, mas sou super económico. Neste momento, só tenho quatro guitarras. Cometi um erro: vendi uma acústica de cordas de aço e agora tenho de comprar outra. Não gosto de ter muitas guitarras. Todas as que tenho agora são brutais. Portanto, tenho esta Gibson ES-120T — que é uma coisa rara, de 1963 — é uma guitarra brutal; duas Fenders, uma Stratocaster e uma Telecaster, americanas; e também tenho uma guitarra clássica feita pelo Luthier Adérito Marques, que é um instrumento brutal.

Já tive muitas guitarras, só que depois vendo-as. Por exemplo, agora quando comprei a Gibson, tinha uma Epiphone Casino e um caixote gigante de jazz e pensei: “bem, agora comprei esta guitarra, não preciso dessas duas, o que é que eu vou fazer?” Tenho um grande amigo meu que toma conta do espólio e organiza as coisas dos Beatles em Portugal. Então pensei: “isto era a guitarra que o John Lennon usava, deixa-me cá ligar ao Filipe Ladeira que eu tenho a certeza que ele compra-me já isso”. E assim foi. No mesmo dia ele veio buscar a guitarra. Para além disso, como tenho imensos alunos na Academia, já sei os que curtem certos instrumentos. Foi assim que vendi o caixote de jazz.

Um dos projectos que vou fazer para o ano é um álbum de guitarra folk, uma cena na onda de John Fahey e Peter Walker. Essas músicas andam a ser feitas há… sei lá! Devo ter mais de 30 composições folk. Tenho andado a matutar nisso, mas nunca tive a guitarra certa para gravar aquilo. Então pensei: “ok, comprei a Gisbon e vou gravar isto para o ano. Vou vender a guitarra de cordas de aço e depois compro uma boa”. Passado uns dias telefonam-me para me convidar para musicar um filme do Festival Caminhos do Cinema Português. É um filme que se chama Recado, de 1971, que parece um western português. A cena é que aquilo ficava mesmo fixe era com uma guitarra de cordas de aço e eu tinha acabado de a vender! [Risos]

Estou a preparar um duo de guitarra e bateria com o João Valinho. Vai ser uma cena mais rockeira e a partir, que seria para arrancar em tour em Maio. Tinha andado a preparar material para isso, mas já não sei se vai acontecer ou não. Além disso, estou a organizar uma série de duos que espero poder concretizar em conjunto com a Casa das Artes da Fundação Bissaya Barreto para serem editados numa box.

Também trabalho muito com música para teatro. Estou a compor para uma peça que vai estrear no fim de Abril, no TAGV, que é uma viagem dentro de um telemóvel, assim uma cena super-hiper-mega científica com um ambiente meio electrónico. Tenho de acabar de compor isso para a companhia Marionet, com que trabalho regularmente.

Há muita coisa para fazer, muita coisa no ar!


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