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Fotografia: João Duarte
Publicado a: 04/12/2023

Jazz contemporâneo embrulhado em rock psicadélico.

Marcelo dos Reis: “O Flora ao vivo ganha grande power

Fotografia: João Duarte
Publicado a: 04/12/2023

Marcelo dos Reis é um criador incansável que, como o próprio indica, se tem movido sobretudo nos terrenos da livre improvisação — como bem exemplificado na recente edição partilhada com o trompetista Luís Vicente, (Un)prepared pieces for guitar and trumpet, lançado pela Cipsela. Mas, em Flora, projecto em que tem ao seu lado o contrabaixista Miguel Falcão e o baterista Luís Filipe Silva, o guitarrista explora um terreno mais balizado por composições que ele mesmo assina, um terreno em que se acerca de uma certa energia rock e que se mostra aberto a outras tipologias, admitindo até, como, uma vez mais, o próprio aponta, ecos de música africana.

Em conversa aberta, via Zoom, Marcelo explora o que propõe em Flora e antecipa os concertos que tem por cá marcados para apresentação deste disco lançado pela JACC Records: já esta quinta-feira, dia 7 de Dezembro, na SMUP, na Parede, e ainda, a 5 de Janeiro, no Salão Brazil, na sua cidade de Coimbra, e no dia seguinte, 6 de Janeiro, na Sonoscopia, no Porto.



Começo por te perguntar se estes concertos são com o Miguel Falcão e com o Luís Filipe?

São. É este o meu formato de trio para o Flora.

Tu tens sido um criador prolífico. Como é que tu classificas o Flora no conjunto da tua carreira? O que é que tu sentes que traz de novo? Às vezes há aquela coisa de termos de dar dois passos atrás antes de dar um em frente…

Antes de mais, eu não gosto de me sentir limitado do ponto-de-vista criativo. Depois há a coisa de pensar no sentido que isto faz no bolo geral da minha obra, daquilo que eu crio ao longo da minha vida. Eu tinha a ideia de ter um trio que trabalhasse mais neste contexto de composições e não tanto só com improvisação livre. A improvisação livre é, se calhar, a arte que eu mais gosto de fazer e é aquela através da qual eu me expresso melhor. Mas também tinha a necessidade de ter um trio com o qual pudesse trabalhar com um outro tipo de influências e coisas que também me marcam e marcaram ao longo da vida. Eu considero-o como um passo em frente, porque, efectivamente, aquilo que acontece é o não ter a tal limitação criativa e o conseguir chegar a um outro tipo de música que eu também gosto. E eu fiz este disco desta forma, mas, se calhar, o próximo será doutra forma. Havia também a necessidade de ter um trio com o meu nome, porque nunca tive. Há outros projectos em que eu posso acabar por liderar, mas nunca foram algo assim, tão pessoal, que tivessem esse cunho das minhas composições.

Eu sinto aqui um piscar de olho a uma energia mais rock neste disco.

Sim. As primeiras bandas que tive e as primeiras coisas que comecei a fazer, há 20 e tal anos atrás, eram rock. Eu cresci a ouvir rock e continuo a ouvir, como ouço muitas outras coisas. Eu sinto essa energia do rock psicadélico, mas, na verdade, muitas coisas acabam por vir de um jazz que também tem esse groove, um bocado mais rock. Mas o pensamento inicial, se pensar em influências… Eu não pensei muito neste ou naquele artista, para a coisa soar desta forma. Depois, obviamente, quando tu tocas com outras pessoas, a coisa chega a lugares ainda mais inesperados. Eu estou habituado a trabalhar com a malta da improvisação livre, que faz as coisas de uma determinada forma, e se eu fizesse esta música com essas pessoas, se calhar as coisas iam chegar ao mesmo lugar que nós já conhecemos. Tocar com o Miguel e com o Luís traz isso, uma energia diferente, não traz muito só aquele drive do jazz. O jazz está muito presente no disco, tu encontras lá esse swing, mas depois também tem outras coisas do rock. Há ali uma mistura de muitas coisas. Tem partes de bebop, tem partes de improvisação livre, de world music assim numa vertente mais africana… Há uma série de coisas ali todas misturadas. Mas nunca foi uma cena muito pensada.

O processo de composição é solitário ou é uma coisa muito trabalhada na sala de ensaios?

Riffs e melodias componho sozinho. Também penso nas linhas de baixo e… O core da música vem de mim. Obviamente que, depois, chegam-me ideias, porque isto não é uma ditadura [risos]. Gosto de ser eu a liderar, até porque faz parte de ter um grupo em meu nome. Mas os músicos com que eu toco têm de se expressar da forma que eles querem. Posso dar uma indicação ou outra. Mas sim, o processo de composição acaba por ser um pouco mais solitário, porque eu gosto de pensar nas coisas e essa é uma parte do processo que me interessa.

Em relação ao título do disco e das próprias canções: há aqui uma referência ao mundo vegetal e, lá está, à flora. Porquê isso? Estás a tentar transmitir a ideia de um som que é orgânico, natural?

Vou-te ser sincero. Quando comecei esta cena, pensei no nome que ia dar ao trio. Uma cena na qual pus logo uma cruz em cima foi “Marcelo dos Reis Trio”. É uma ideia um bocado bacoca e não metia piada. Depois pus-me a pensar em nomes e surgiram-me uma catrefada de cenas. Gostei da onda da Flora, inicialmente até mesmo por uma questão visual, porque Flora pode trazer-te uma série de questões visuais com as quais um artista visual pode trabalhar com o projecto. Não tem de ser muito virado para a cena da botânica, pode ser uma coisa mais abstracta, que pode dar uma série de ideias que podes trazer para aqui. Também havia a cena de alguns dos temas já terem título, porque quando os fiz já lhes tinha colocado esses títulos. Acabei por direccionar para aí, também, por causa da imagem que a Joana Monteiro trouxe para o disco. Liguei os títulos a essa realidade, não propriamente por causa dessa questão de… É claro que a música é orgânica, é música feita ao vivo. Mas não tem propriamente uma conexão directa.

E isto é música com a qual tu te sentes mais confortável num live set ao vivo a tocar em pé ou sentado?

Em pé, claro [risos]. Isto é rock, meu. E o rock toca-se de pé [risos]. Tens de ver ao vivo, porque, efectivamente, ao vivo tem um grande power. Tenho a certeza que vais curtir. Até porque a música já evoluiu tanto desde que está no disco… Neste momento está muito mais livre, até está um bocado mais dark, com outras ideias muito mais interessantes. Quando gravámos eu aceitei a gravação, até porque as gravações marcam um período, um determinado tempo. Obviamente que, nessas coisas, vais sempre dizer que farias melhor no futuro. É inevitável e acontece com toda a gente. É claro que se fosse gravado agora, o disco estaria muito melhor. A história de quando fomos gravar o disco é brutal. O Miguel é um fã acérrimo do União de Coimbra e tinha tido um jantar com essa malta, então deitou-se para aí às 4h da manhã. Eu e o Luís Filipe Silva fomos jantar, começámos a comer para aí às 23h da noite e primeiro que fossemos para casa… Tu estás a ver, não é? Começámos a beber copos — “Só mais um, só mais dois, só mais três…” Acabámos por beber uns gins até às 4h da manhã. Vamos a descer em direcção ao Pátio da Inquisição e está uma cena de forcados. “Que é esta merda? Mas olha, os gajos vendem cerveja!” Entrámos e aquilo é uma realidade paralela. Nós éramos uns freaks lá no meio dos gajos e começámos a discutir sobre touradas, a dizer que éramos contra isso e a explicar-lhes o bullying que eles sofrem por parte da malta anti-touradas [risos]. Com esta brincadeira toda, era tipo 7h da manhã e estava eu a ir para casa, quando a gravação era às 14h. Acordei do género: “Vou cancelar esta cena.” Portanto, foi um processo de gravação um bocado incrível [risos]. Foi uma grande pedra e foi super-engraçado.

E como é que esses concertos que fizeste lá fora correram? Que reacções tiveste por parte do púbico?

Correram muita bem. Tivemos sempre salas cheias, o que foi espectacular. Foi uma pena não termos levado discos, porque tínhamos vendido montes de cópias. Lá fora há um poder económico maior por parte das pessoas. No primeiro concerto fizemos no Hot Club em Gent e estava completamente à pinha. O espaço também não é muito grande, mas eu já la tinha tocado algumas vezes e nunca tinha tido essa experiência. Foi uma noite espectacular. A reacção foi muito boa, porque a banda está com uma grande força e a cena ao vivo funciona mesmo bem. Sinto que ela chega a diferentes quadrantes das pessoas. Às vezes tenho velhotas no público a curtir, como também vejo malta mais do improviso a sério que também curtem. Isso é fascinante de perceber. Às vezes posso até pensar que o disco, se calhar, não ficou com o power que agora temos em algumas partes… Mas não posso dizer que não esteja satisfeito com ele, porque estou, se não, não o teria lançado. Mas, ao vivo, a cena está efectivamente com a energia certa, está a resultar muita bem. A reacção foi mesmo muito, muito positiva. Foi altamente, mesmo.

A merch table é mesmo muito importante para a sobrevivência dos músicos desta área, não é?

Claro. Em Portugal vendes muito menos discos após um concerto do que num destes países de que estamos a falar, como Áustria, Bélgica, Holanda, Alemanha… Também existe uma tradição maior de adquirir um objecto, tanto por coleccionismo como por forma de agradecimento por parte das pessoas que gostaram do concerto. Por isso, claro, o merch é importante. Nós somos músicos que trabalham muito com outros músicos e, por isso, acabamos por editar muitos discos diferentes, também por causa dessa coisa de ter material que se possa vender ao vivo. Por acaso, noutro dia estava a falar com a Alexandra Neto Ferreira sobre essa cena dos discos. Não sei se te lembras do Estrela Decadente, um sítio curioso, assim “fora”, meio abandonado, meio kitsch. Uma vez toquei lá a solo e, nesse dia, vendi 150 euros em discos, num sítio assim, meio inesperado. Às vezes vais a um festival grande à espera de vender bué de discos e não vendes. Depois, no Estrela Decadente, vendo num dia 150 euros em discos [risos]. É uma cena um bocado fora-da-caixa.

Diz-me uma coisa. Por teres agora um trio em que tu comandas e em que as tuas composições são centrais, isso representa também uma responsabilidade. No mundo da música mais improvisada e dos encontros semi-planeados as coisas são mais informais, talvez. Mas aqui tu acabas por ter uma certa responsabilidade, até porque, imagino, este é um trio para o qual tu vês futuro e continuidade, não é?

Isso é daquelas coisas em que tu já deves ter reparado. Nos últimos anos, tenho trabalhado mais com grupos de pessoas com quem quero trabalhar, não tanto através de encontros fortuitos. É claro que essa coisa da improvisação é essencial e, obviamente, rica. Mas a ideia de ter grupos que duram mais também me interessa, para poder trabalhar com espectáculos melhores, para ter concertos com melhores condições. Quando se trabalha com grupos que não existem, acabas só por ter um conceito ou uma ideia. Depois, como é que os vais apresentar para uma sala grande? Quando não tens propriamente uma estrutura em torno daquilo, tu idealizas. Mas traz-me essa responsabilidade de que falas, o estar à frente de um grupo. E existem outros grupos que vão continuar, como é óbvio. É claro que isto é por fases. Como músico e artista, tenho alturas em que me apetecer criar uma coisa, outras em que me apetece fazer outras coisas, e eu gosto disso. Não gosto de estar só a… Às vezes acabo por sentir isto até como improvisador: a música livre também vive muito de clichés, porque tu já estás à espera que a coisa vá por aquele caminho ou por outro. Isto fascina-me, a capacidade de impor a mim próprio este desafio e ter a capacidade de, artisticamente, criar outros objectos diferentes. Sei lá, um pintor ou um escultor também passa por fases diferentes da sua criação. Eu sinto a música nessa onda. Fazer coisas diferentes é algo que me fascina e me dá pica.

Dirias que, entre festivais e salas, a cena para um músico de jazz português nunca esteve tão boa como agora? Ou já houve momentos melhores?

Honestamente, sinto que há muita precariedade. Neste caso em particular, falo da improvisação e desta música mais de vanguarda. Sinto que a malta está a fazer coisas e está a procurar um caminho para que elas sejam financeiramente viáveis. Pelo menos eu, quando penso em mim, tenho de me desdobrar por entre as muitas áreas em que trabalho dentro da música. Faço música para teatro, dou aulas de música… Faço estas coisas para que a minha vida possa funcionar. Eu não sou rico por trabalhar nestas coisas nem tenho grande hipótese de o ser. Eu vejo pequenas coisas a acontecer e acabo por não me envolver tanto, mesmo por causa de: como é que eu me vou justificar perante uma sala grande se ando a fazer coisas em sítios que não dão retorno financeiro? Porque a entrega será sempre a mesma num sítio ou no outro, essa questão nem se coloca. Ainda agora tive nas Carpintarias de São Lázaro com o Luís Vicente e aquilo encheu, foi alta noite. É um sítio onde nunca tinha ido e que também oferece as condições mínimas para conseguir fazer as coisas. Tem de haver esta lógica do respeito. E a classe dos músicos também tem de lutar pelos seus direitos. Sei de histórias de malta que anda a tocar em spots onde ganham 20 euros ao final da noite e isso não me faz sentido nenhum. Para isso, mais vale trabalhar para vender uns discos, porque numa noite em que vendas 4 ou 5 discos compensa-te muito mais. Isto é uma discussão complexa e sem fim. Eu não defendo que os sindicatos sejam o caminho. Acho que a comunidade é que pode estar mais estruturada. Tens, por exemplo, os putos da Robalo, que estão a fazer um trabalho muita fixe, estruturado. Tens o pessoal aqui e Coimbra, com o Jazz ao Centro, que faz um trabalho estruturado. Tens o pessoal do Porto, da Sonoscopia, que também faz um trabalho estruturado e oferece condições para tu trabalhares. Depois há sítios que se tentam aproveitar das novas gerações, porque a malta quer é tocar, quer aparecer e fazer cenas — e eu acho isso muito bom —, mas com condições um bocado precárias. Que há mais festivais, é um facto. Há salas que estão a tentar fazer com que as coisas sejam melhores. Mas isto vai ser assim até morrermos [risos]. Vai ser uma luta constante.

Ser-se músico de jazz é escolher não ser rico, portanto [risos].

É possível [risos].

Estamos mesmo no final do ano e o Flora vai fazer um bocadinho a transição entre 2023 e 2024. Que mais podemos nós esperar de ti no próximo ano? Que outros projectos estão aí na calha?

Tenho aí umas quantas coisas. Tenho a edição de um disco de um projecto com o Gonçalo Almeida e o Philipp Ernsting, que é um trio que temos que é o The Monkious, em que pegamos nos temas do Thelonious Monk, ostracizamos aquilo e improvisamos à volta daquilo. O disco está muito fixe. É uma coisa para sair este ano e estamos a planear concertos para o início do ano que vem.

Vai sair com que selo?

Vai sair pela JACC Records. Nós gravámos o disco durante um concerto muito fixe no Salão Brazil. Foi altamente. Também está planeado lançar um disco de Frame Trio, um projecto que tenho com o Nils Vermeulen no contrabaixo e o Luís Vicente no trompete. Lançámos o primeiro disco, salvo erro, em 2018, pela inglesa FMR. Agora até somos capazes de lançar pela Cipsela Records, porque cada vez mais sigo esta lógica de que trabalhar com a malta independente acaba por ser o mais viável, até porque a industria discográfica está cada vez mais ingrata para os músicos. Hoje em dia tenho de pagar para editar, então para isso faço as coisas por mim. Depois, também tenho um duo com a pianista francesa Eve Risser. Nós temos um disco que gravámos num festival austríaco, o Konfrontationen, em 2021. A gravação tem estado um bocado em águas de bacalhau mas está planeada para ser lançada no próximo ano. Depois, tenho outra cena mais pessoal, tipo o Glaciar, uns temas mais folk que até já toquei ao vivo algumas vezes. É um projecto sobre o qual já cheguei à conclusão para o título: Just Songs. São composições que já andam comigo, para aí, desde 2009. Eu quero fechar isso. Quero metê-las numa gravação. Nem sei se planeio fazer concertos com isso. Mas pelo menos o material fica gravado para a posteridade.


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