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Fotografia: Alex Carvalho
Publicado a: 26/10/2020

Almas velhas, novas maneiras.

Marcelo D2: “Nessa pandemia a gente foi empurrada para um futuro que era inevitável”

Fotografia: Alex Carvalho
Publicado a: 26/10/2020

Por esta altura, o nome de Marcelo D2 não só é referência na cena musical e urbana brasileira como é, também, incontornável para se contar a história do rap escrito e cantado em português. Em 2020, o músico do Rio de Janeiro completa 25 anos de carreira: as “bodas de prata” foram celebradas de uma forma única e inovadora.

Para além de marco celebratório, Assim tocam os MEUS TAMBORES é um álbum vanguardista na maneira como foi criado. Dentro da conjuntura que se vive actualmente, D2 dedicou mais de 150 horas em directos no Twitch — um desafio da plataforma ao rapper — para compor o seu álbum mais colaborativo. 

O Rimas e Batidas conversou com o artista brasileiro sobre como a tecnologia se tornou uma mais valia na criação artística, o estranho contexto político e social do Brasil e, ainda, o caminho alternativo na luta contra o fascismo. Em Assim tocam os MEUS TAMBORES, Marcelo D2 escolhe o amor e a empatia. 



A 24 de Março é decretada quarentena no Rio de Janeiro. Como foi recebida essa notícia por ti?

Ah, cara, a princípio como todo o mundo eu achei que ia passar rápido, que era um vírus que ia ser controlado. Depois começou a bater aquela incerteza de futuro que é terrível para todo mundo. O país já não está num momento bom, a gente tem um governo negacionista, a situação política não podia estar pior para receber essa pandemia. O governo, além de negar a arte, a cultura, agora ainda nega a ciência, então, cada remédio que não tem comprovação… A gente não tem ministro da saúde no meio da pandemia, ele [Bolsonaro] mandou o ministro da saúde embora. Então, é o pior momento que o país está passando nas últimas décadas, o momento moral, o momento de valores… O Brasil está numa lama incrível e para piorar tudo vem essa pandemia. Eu sou um cara otimista, mas acho que não poderia estar pior, não tem pior lugar no mundo do que o Brasil para estar nesse momento, sabe?

Nem mesmo os Estados Unidos? 

Cara, pelo menos lá você tem uma economia, estados independentes, uma economia estável. Aqui além de tudo isso, a gente tem fome, cara, a fome voltou ao Brasil depois de décadas que já tinham erradicado a fome. A gente não acabou com o problema da fome, mas a gente tinha diminuído isso muito, sabe. A gente tinha negros nas faculdades, a gente tinha mais respeito. Pior momento, pior lugar do mundo para se estar e o pior presidente do mundo, né…

Enquanto artista que tens vindo a acompanhar os diferentes panoramas políticos e sociais do Brasil ao longo dos anos. Como é transpor toda essa vivência ao longo da carreira?

Cara, eu diria que o Brasil é um país ótimo para fazer rap, né? Porque, puta que pariu,  problemas é que não faltam. Para quem quer falar do contexto social, eu acho que não tem país no mundo que tenha um leque de inspiração como este. Nesse tempo todo, mesmo num governo popular como foi o governo do PT e do Lula, o país ainda tinha muito problema, a gente não virou um país perfeito, ainda tinha problemas. Mas para criar e fazer arte, o Brasil é um país muito bonito. Então, quando você tem menos problemas sociais, você consegue cantar essas belezas e mostrar um caminho dentro da arte de mais esperança e agora, no momento, o que a gente tem é uma luta. Lutar para sobreviver.

Ou seja, o Brasil acaba por ser uma fonte de inspiração um pouco bipolar no sentido em que tem as suas desvantagens políticas e económicas e em contrapartida tem toda uma beleza a ser demonstrada no seu rap? 

Cara, essa é a contradição e o maior exemplo disso é a cidade do Rio de Janeiro, uma cidade super violenta e linda. 

Dentro deste contexto estranho que vivemos hoje, Assim tocam os MEUS TAMBORES tornou-se num álbum pioneiro no seu processo criativo. Qual é a sensação de, com 25 anos de carreira, transpor os limites da criação musical e fazer algo que ainda não tinha sido feito desta forma?

Quando fiz A Procura da Batida Perfeita, o meu segundo disco a solo, eu logo entendi que a procura é mais importante que a batida perfeita, sabe, aquilo que me ia mover na minha carreira. Em 2013, eu fiz Nada Me Pode Parar, nesse disco fiz 16 clips para 16 músicas e isso já me deu a ideia para álbum visual que me veio deslumbrar para um caminho novo para fazer música. É muito difícil para mim hoje pensar num disco e fazer só 10 músicas e fazer uma capa e lançar. Isso não me basta mais como artista. Eu quero trabalhar com artistas gráficos, artistas plásticos, filmmakers, fotógrafos, outros músicos… E isso tem sido o que me tem movido dentro dessa pandemia e dessa loucura. Como qualquer cidadão no mundo, fiquei no primeiros dias e meses a pensar no que eu poderia fazer. Eu tive esse convite da Twitch, que é basicamente uma plataforma de gamers que convidou alguns músicos, eu o Criolo e outros assim conhecidos como Lab Fantasma para trazer a música para dentro da plataforma, e a minha primeira ideia era fazer algum movimento de arte lá dentro, sabe. Eu comecei a fazer lives, batendo papo, lives de conversa, lives de DJ set, mas isso não me bastava. Eu queria fazer algo mais poderoso no sentido de arte e essa minha procura me levou até isso: fazer um disco todo via livestream e quando bateu na minha cabeça já sabia como ia ser o disco, como ia produzir, aliás, não sabia como ia fazer, mas sabia que ia ser interessante o processo criativo aberto em frente de todo mundo. 

Cara, deu super certo, estou muito feliz com o resultado disso tudo. Me levou para um lugar onde adoro estar, um lugar quente, de estar fervendo, de estar com a cabeça pensando em algo novo, me deixa jovem, deixa minha arte jovem. Vou partir para o volume dois agora, vou fazer um segundo número, em Novembro. Esse primeiro, eu fiz talvez, um caminho que me apontou ali na hora que era um caminho de chamar beatmakers para me mandar batidas e eu só pôr a rima em cima. Agora eu vou fazer um caminho mais demorado, que é de fazer as batidas diante do público, de chamar músicos, de compor as músicas todas lá do começo. Vamos ver se sai outro disco legal. Porque este disco eu estou bem satisfeito, estou-me sentido bem realizado como artista, sabe? Um disco que fotografou bem o que eu queria desse momento. Me tirou de um lugar de raiva e ódio, de tudo o que eu estava passando, o que o país está passando… Seria muito fácil botar tudo isso num disco. E [este] me apontou um caminho para mostrar pras pessoas que há um caminho diferente, de amor e empatia. 

Assim tocam os MEUS TAMBORES foi descrito por ti como “uma residência artística na frente de todo mundo”. Os lives chegaram a ter cerca de cinco mil pessoas em simultâneo, como foi interagir com um público escondido atrás de um ecrã? 

A gente passou de cino milhões de views nesse mês, passaram mais de cinco milhões de pessoas nessas lives, cara, é gente pra cacete! Foi inacreditável, foi uma surpresa para mim. A Twitch também não era como o YouTube, o Instagram ou o Facebook, uma plataforma que tivesse muita gente. Então foi interessante ter essa quantidade de pessoas lá participando e é uma nova descoberta para mim, um lugar novo. Eu vou ficar na Twitch mais um ano, no mínimo. E eu quero descobrir mais lugares, mais projectos, mais coisas para fazer em frente à câmera. Me mostrou um mundo novo. Acho que nessa pandemia a gente foi empurrada para um futuro que era inevitável, que era se falar por tela, conversar com todo o mundo via a tela do computador e, sei lá, acho que esse avanço vou levar para mim na minha maneira de fazer arte.

Foi um avanço obrigatório mas necessário, vês como algo essencial no processo criativo ou como uma mais valia? 

Eu acho que no começo foi uma obrigação pelo que estava rolando no momento. Agora para mim é necessário usar essas ferramentas. Eu não sabia que tinha esse mundo que eu poderia me comunicar assim, foi ótimo pra mim. 

Tendo em conta esta relação com o público em directo, as críticas foram sentidas mais a peito ou com maior compreensão?

Assim, o público foi o principal que me levou para esse lugar de empatia e amor, a comunidade no Twitch, os assinantes do canal, as pessoas que seguem o canal, as pessoas que mandam dinheiro… Toda essa comunidade que se formou ali, para mim, foi muito importante porque me levou para um lugar para escrever as letras e no contexto geral aquilo ali imprimiu no disco. Esse público foi muito influente no que aconteceu. Porque não estava escrevendo nem fazendo a música sozinho como é de costume, no meu canto, no meu estúdio, com poucos amigos. Dessa vez tinha gente pra caramba. E essas pessoas influenciaram, essas pessoas acabaram.. sei lá, no dia a dia ali falando, comentando, dando opinião e isso foi muito bom. As críticas que vieram depois do disco, talvez foram as melhores críticas que já recebi dos meus discos. Foi um projecto muito bem recebido pelo público e pela crítica também. 

Em comparação com Amar é para os Fortes, este novo álbum-filme não é encenado. Vemos um Marcelo mais cru. Qual foi a intenção de escolher a realidade invés da ficção?

Eu não tinha muitas opções, eu estava trancado em casa, não tinha muito que fazer, né? A única maneira de me expressar é aqui dentro de casa, não tinha outro jeito a não ser ser intimista, trazer as pessoas aqui pra dentro de casa e mostrar um pouco. Teve uma coisa que nesse disco foi muito importante, foram as referências. As referências que eu tenho de cinema, de artes plásticas, literatura, música, arte no geral. Essas referências foram muito importantes para a feitura do disco. Eu queria muito que elas estivessem no filme também. Então tinha que trazer as pessoas pra dentro de casa, pra verem meus livros, pra verem meus quadros, os artistas plásticos que me influenciam, os cineastas que me influenciam, e que são de alguma forma citados no disco, no filme, então não tinha outra maneira senão ser intimista. Foi uma obra do acaso, a gente tava dentro de casa, mas a gente teve uma equipa muito reduzida. Diferente da equipa do Amar É Para Os Fortes, que foram 20 e tantas localizações. Esse filme a gente fez com duas locações só: aqui dentro de casa e numa outra casa que é da avó da Luiza, a minha companheira.  

Foi trazer todo um mundo de referências e inspirações e tudo o que normalmente levamos connosco, para casa e criar uma obra nova.

Total. A ideia era essa, pegar tudo o que tenho dentro de casa e criar alguma coisa com isso daqui.Talvez eu não fizesse isso noutro momento do mundo, sabe? 

Que foi o momento perfeito, então? 

É, foi o momento perfeito. As coisas foram levando a isso. Esse disco tem uma coisa muito intuitiva, eu não sabia o que ia fazer até ao primeiro dia em que eu abri a live e falei, “agora vamos lá, como é que eu vou fazer o disco?”. Então eu deixei as coisas acontecerem. 

Em relação às coisas aconteceram, os nomes das colaborações e das participações que o álbum conta, surgiram naturalmente ou tiveram uma razão de ser?

Foi super natural. O chat foi muito influente nisso, eu botava um batida e alguém falava “chama o Criolo, chama o Don L, chama o Bk’, chama o Baco”… Eles foram muito influentes nessas decisões, é uma coisa interessante desse álbum: eu fiz dentro de casa, no meio de um isolamento, mas é o que tem mais colaborações de outros artistas, e do público também. É uma contradição, porque dentro de toda essa loucura preso de casa, isolado dentro de casa, foi o meu disco com mais colaborações de todos, sem dúvidas. 

Uma vez concluído, qual é a mensagem principal que fica deste projeto?

Eu acho que nos meus últimos discos a cultura hip hop vem ficando cada vez mais clara dentro deles, sabe? Aquela coisa do Afrika Bambaataa, de “peace, love, unity”, “having fun”, sabe, ele gritava lá atrás com o James Brown. Eu acho que é isso que tem ali nesse disco, que tem um caminho diferente do caminho louco que o mundo está tomando. E acho que tem gente que quer isso, então vale a pena a gente não se entregar e entrar no sistema. A  gente está num momento difícil pra caramba no mundo todo, eu falei do Brasil, você falou dos Estados Unidos, do Trump, porque o pior do Brasil é que a gente tem um Trump falsificado, sabe? Um Trump de araque, nem um Trump de verdade é. É um fascista de merda. Mas isso é uma onda que teve no mundo inteiro, cara. A Europa teve uma onda fascista, que parece que foi varrida, e agora é a vez da América Latina. Meio assustador isso. Mas acho que com esse disco eu descobri que tem mesmo um caminho diferente, porque no campo do ódio eles já venceram, não tem como lutar com eles. Eles sabem como odiar, eles sabem como mentir, eles não têm escrúpulos, eles não têm valores. Então se a gente quer lutar contra isso, é melhor nesse lugar aqui: de amor e de empatia.


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