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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/01/2024

Noutros estados perceptivos da música.

Manta Amniótica: um palco de son(h)o

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/01/2024

Num dia de festival, vive-se habitualmente meio-dia de músicas em concerto e é comum passar-se a noite nesse contexto, perdurando até ao amanhecer. Já experienciar doze horas de música em contínuo, confortavelmente instalados para que se adormeça, embalados numa atmosfera sonora, é de todo incomum. Foi disso que se tratou na iniciativa Manta Amniótica no Teatro Ribeiro Conceição em Lamego, na antepenúltima noite de 2023. O conceito de sleeping concert, vem dos happenings de Robert Rich na Califórnia, nos meados dos oitenta, convidando audiências em concertos para um sono conduzido pela música. Explorando as fronteiras de estados de consciência e percepção. Em 2016, na Nova Zelândia, o duo de electrónica Jeremy Mayall e Kent Macpherson, levam a cabo To Sleep, com o violoncelista Yotam Levy, num sentido de uma experimentação, no despoletar de sonhos através da música, explorando os estados hipnagógicos e hipnopômpicos — os estados perceptivos respectivamente de entrada e saída do sono. Ouvir para dormitar, sonhar e acordar, o propósito perceptivo aqui trazido. A esse respeito conversou o músico Sal Grosso, curador da iniciativa Manta Amniótica, com Miguel Rocha em entrevista para o Rimas e Batidas, dias antes do evento ter lugar. Na editora que coordena, Combustão Lenta, a música regista-se e ouve-se de espectro ambiental. Consciente de que esse mesmo campo musical pode ser usufruído para além de um mero adorno sonoro do espaço desvanecido, pretendeu instigar a acção da música que promove como rampa de acesso a outros estados de precepção desde a música de cariz ambiental e exploratória. 

Estamos em palco, num lugar que alberga literalmente a comunidade formada nesta noite, num sentido assumidamente de pernoita. Partimos de forma consciente que esta é uma expressão colectiva de arte, feita dos que aqui estão para nós mesmos, num espaço implicado para isso e tornado comunitário, reivindicativo da expressão da arte nada neutral, até antifascista mesmo. Um lenço da resistência palestiniana a lembrar o real, desfraldado que como bandeira assumida no centro da mesa da conferência dos comandos da música. Chão de palco preto, no esplendoroso Ribeiro Conceição, quase, quase secular, quase mimético do milanês alla Scala. Plateia vazia para receber antes um palco pejado de sonhadoras vontades, somos muito e muitas, esgotando os lugares disponíveis, quarenta pessoas na partilha. Exactamente trinta e dois colchões, justapostos em três filas, a tapetar o palco. Será dormitório sob a suspensão iluminada da teia e urdidura do vão e pé direito de cena do teatro. Espaço invertido na perspectiva do olhar deitado, desde baixo para cima, fruindo da sábia disposição lumínica, mostrando a fundura do espaço, convocando o infinito ao lugar, revelando texturas escondidas, visões da muralha imune ao tempo. Lá longe, no além boca de cena, na imensidão da plateia fica o grande candelabro, suspenso, citilante sobre a sala, convocando efeito estrelar em redor. Obrigado a todos por estarmos ali. Apenas para que conste e como derradeiro acto antes do embarque – a leitura da folha de sala, o alinhamento dos actores musicais programados, também eles de sacos-cama estendidos para pernoitar: Sal Grosso (trio) | Quatroconnection | Ricardo Cabral | Aires | Tiaavô | veabis&tubbhead | Ricardo Cabral | Sal Grosso (solo) | twistedfreak | Paulo Vicente | Bá & Sal Grosso.  Fio condutor, condutor onírico potenciado. Boa noite, durmam bem e já nos iremos encontrar…

Início da propagação sonora, lenta e aconchegante. Faz-me lembrar de tantas, sem saber quantas, as noites que passei em que o rádio ficou a tocar toda a noite, enquanto adormecia esquecido naquele embalo, dormindo no éter sonoro emitido. Agora, ali deitado, espero que isso surja em igual medida, mas sem descuidos, todo um propósito e vontade. Tenta-se contrariar o hábito, trazido de concertos, de querer ver de onde vem e quem faz acontecer a música. Vontade maior ao olhar um palco, mas ali o palco é lugar para fechar os olhos ou até antes ver um “céu” feito de cabos e bambolinas, varas suspensas e telas sucessivas, em cortinas que medeiam umas e outras possibilidades do olhar. Nós ali, irremediávelmente dispostos a adormecer, à mercê da vontade do sono. Procuram-se os melhores ajustes dos coprpos em repouso, para ficarem no limbo entre o sonhar acordado e o adormecer para um sonho. Recordo-me de ter ficado acordado quase toda uma noite, em noite de lua cheia, para ver a Sleep, o filme de Andy Warhol onde dorme e sonha durante mais de cinco horas. Um anti-filme na estética, de olhos fechados em movimentos involuntários do corpo a sonhar, também unido na expressão de outros alcances no dormir, no amniótico anti-concerto do que ali tem lugar. Ambos os exercícios artísticos na pretensão de outros estados, fruições estéticas em volta do sono. Ali volvido no pensamento, foco no cenário uma vez mais, na textura da muralha de pedra, como parede intransponível, imaginando a fuga pelas escadas metálicas em caracol para o infinito cimo, escapismo possível para libertar a mente. Os olhos de muitos de nós desafiam cumplicidades. Estamos juntos e juntas na viagem, corpos alinhados, como teclas multicoloridas, a diversidade humana e os padrões de mantas para dormir conjugados. Texturas sonoras a pairar como teia envolvente, timbres cintilantes, em densas tonalidades, espectro contínuo que convoca e embala. Espero pela chegada dos momentos sinestésicos, para ver no ouvir, sentir pelo ouvir, sonhar por fim. Lembro-me bem de estar ali para ver e ouvir, neste mesmo palco, a música aliáda à imagem em Fura Olhos (de Inês Malheiro e Miguel Pedro), fruindo as imagens e sons feitos em amálgamas de texturas brilhantes projectadas numa das telas agora subidas e recolhida na profundidade do urdimento. Nessa mesma noite em que se viveu ali o regresso dos Telectu à cena. Contínuo do vivido, a ligar o tempo e o espaço, como variáveis distintas na concepção física que noutros estados estabelecem o presente. Em palco, enquanto uns já dormem, outros fazem por isso, enquanto um ou outro saem para dar uma volta, ainda não têm sono.

Somos um colectivo convocado para a experiência, feito de individualidades no ritmo e fruir de cada um. A marcar, o olhar no Keffiyeh, lenço a simbolizar a resistência, estamos juntos no que teima e permanece como sonho, na liberdade dos povos, no antibelicismo definitivo, a afirmar um antifascismo, a um fascismo de agora. Prontos e dispostos a alcançar um sonho maior fora dali também.

Ouve-se o frio da noite envolta de inverno, e até uma chuva que goteja e vem de longe a pedir recolhimento para ouvir a calmaria consciente de nós ali deitados. Cedem ainda mais as pálpebras que resistiam no pestanejar, juntam-se mais amplas sonoridades, ainda mais, convocando o desligar da consciência do lugar. Linhas contínuas, sente-se o calor comunitário na união que aproxima mais. Acção lenta sonora apertando sem retorno, chama onírica sem fogueira, em combustão. Outras mãos no fazer, com o mesmo propósito, cada vez mais próximo da perda de noção do espaço. O pretendido alcance. Não me lembro do preciso instante, aconteceu. Lembro-me sim, de estar a permutar deitado, de lugar em lugar, rebolando num outro lugar, coincidente no propósito, a dormir e a ouvir. Seria como um fractal, em que no detalhe a figura dos que dormiam replicava a figura maior dos que viam acordados aqueles que dormiam, num alimento que pedia para ser alimentado, num elo em contínuo. Sim, era um elo sonoro, visual e emocional, sobretudo. A sempre desafiante linguagem dos sonhos, como centelhas dispersas noutros espaços. Ouvia-se um assobiar de quem caminhava na gélida noite, parecia “A garrafa vazia”, como a de Manuel Maria, trazida pelo Zeca Afonso. Num trautear que durou muito, recorrente, como na vontade em ter o mestre de volta aos palcos. Éramos mais em sonho, pela vontade expressa e respondendo afirmativamente à vontade útil em sermos mais, no propósito de sonhar.

Como pairar num sonho permanente, quem dera saber como hibernar, ter a capacidade de viver tempos de sonho em gasto mínimo energético, a descansar e a viver o sonho mais que no sono de uma só noite. Estender mais, para além deste sonho de palco.

Despertar depois, sentindo a leveza efectiva de uma noite de descanso curativo, acordar bem melhor, pronto. Mas acordar com a sensação de ter adormecido num apenas “passar pelas brasas”, por momentos, naquele dormitar que acontece a meio de um filme com a ilusão de nada ter perdido do enredo. Hipnopompico voltar ao consciente do palco, com outros em cena, outros vindos do seio dos adormecidos. Aos voluntários drones da música conjugam-se outras involuntárias ressonâncias do dormir de outros. Talvez até fomos protagonistas sonoros em igual medida, despercebidos do real a viver o sonho. Na luz servida na vez do que o crepúsculo trouxe ao lá fora, é mero artifício, ilusão ineficaz do tempo. Há quem queira ter mão nisso e revela que horas são, há quem contínua a dormir, há mesmo quem não queira abrir mão do son(h)o, a servir(-se) da dimensão do espaço sonoro. Convoca-se um despertar, faseado e demorado, no ritmo de cada corpo, no espreguiçar vagaroso do voltar de cada um. A música ouve-se na forma de encantatórios mantras desde foles conjugados, emanando o orgânico no meio de nós, portátil — veio ao nosso encontro, literalmente assim feita, sem disso nunca ter perdido a razão de ser ao longo de toda a noite feita para os son(h)os.

No voltar ao quotidiano dos dias, se perguntarem como foi o concerto daquela noite, responder num: “Não me lembro bem, adormeci!” Ou até num: “Lembro-me melhor do sonho que tive.” Será uma das melhores respostas pretendidas.


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